segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Análise evolucionista de comportamentos perante propostas técnicas

 O cérebro humano resulta de uma evolução em que estádios anteriores regulavam o comportamento perante a aproximação de perigos fundamentalmente de dois modos: ou o sujeito fugia, ou o sujeito parava e avaliava a situação. Provavelmente a taxa de mortalidade no segundo caso seria superior. Já depois do desenvolvimento do cortex préfrontal, no primeiro caso a tribo, verificando que estava num contexto adverso, tentava adaptar-se (por exemplo, refugiando-se em cavernas e apelando à criatividade para encontrar sustento). No segundo caso, a tribo procurava paragens mais pacíficas. Felizmente haveria uma mistura dos comportamentos, senão ter-se-iam gerado graves desigualdades.

Depois desta introdução, consideremos uma das histórias de Bocage, sem esquecer que a categoria intelectual do poeta também se revela nalgumas dessas histórias.

Um belo dia Bocage apareceu no seu querido Rossio, envolto numa peça de fazenda, sem fato que se visse. Questionado pelos passantes, Bocage respondeu que estava à espera da última moda, porque de cada vez que comprava um fato novo havia sempre alguém que lhe dizia que esse fato já estava desatualizado, ou que por menos dinheiro poderia ter comprado noutra loja um fato melhor, ou que estava para sair um fato de desenho completamente novo.

Vamos chamar a isto o complexo do fato de Bocage. Se Bocage aparecesse com um fato, os cérebros com tendencia para fugir perante um perigo, ou simplesmente para repudiar um facto novo, diriam que Bocage teria feito melhor em escolher outro fato, até mesmo um fato que ainda não existisse, de acordo com uma moda que ainda não estivesse espalhada. Enquanto outros diriam que terá feito bem em escolher um fato de feitio já aprovado. No primeiro caso o complexo misturar-se-á com alguma insegurança, que precisa de um ideal, ainda por concretizar, portanto virtual, para desculpar a insegurança de, no fundo, não ter uma solução concreta para apresentar. Já o segundo caso poderá revelar a preocupação por avançar para uma solução já testada, de seguir uma norma testada, depois naturalmente de parar um pouco para avaliar o que haverá para escolher.

Ainda antes de dizer porque estou a escrever isto, vamos dar um salto à história longínqua do império bizantino. Tive a sorte da minha professora de História nos contar que no desenvolvimento deste império, a seguir à separação do império romano do ocidente (lembram-se do imperador Justiniano e da sua Teodora?) as corridas no Hipódromo desempenharam um papel político fundamental, e que havia dois partidos principais, os azuis e os verdes, que eram mais do que as claques de apoio das equipas de quadrigas, eram mesmo partidos políticos. Digamos que era um estádio evolutivo da democracia ateniense,  então alargada às classes populares que se distribuiam pelos lugares do Hipódromo segundo as cores dos seus partidos e convenientemente segregadas das elites.

Antes de prosseguir, devo declarar que não estou a defender os fundamentos históricos das atuais lutas partidárias e das declarações de protesto de ser impensável fazer alianças com os membros do partido adversário. Pelo facto de um cérebro estar mais afeto à solução rejeição da nova proposta isso não significa que não possa interagir com outro cérebro vocacionado para a análise da nova proposta, de modo a, pela diversidade, se atingir uma hipótese mais fiável cujo teste experimental deverá ser acompanhado pelos dois e por eles melhorada a proposta em função dos resultados observados. 

A recusa de colaboração entre quem pensa de forma diferente ou tem outros afetos, poderá ter explicação num complexo de inferioridade associado ao já citado sentimento de insegurança. Não vou negociar com o outro porque tenho medo de ficar a perder, por isso vou fechar-me no meu grupo, em que me revejo e que me protege, e para facilitar as coisas arranja-se um chefe ou um grupo pequeno de eleitos por nós, que definirá o que devemos pensar e fazer, e quem não tiver a disciplina partidária para aguentar isso que mude de partido, se pensarmos pela nossa cabeça tornamos o partido ingovernável. Também podemos chamar a isto o complexo da endogamia ou da segurança uterina.

Numa recente entrevista, um dos técnicos alemães que colaborou no desenvolvimento do sistema audio MP3 explicou à entrevistadora portuguesa que, perante uma nova proposta, em Portugal se ouvem imediatamente críticas ("isso não é assim") e sugestões de alternativas, mesmo virtuais ("o que era bom era..."), enquanto na Alemanha o mais frequente é ouvir-se nessas circunstancias "certo, como vamos fazer isso?", o que facilita o início do trabalho de concretização. Isto é, quando se pergunta "como fazer?" está-se longe do complexo de insegurança e do receio de iniciar algo  (existem outras entrevistas em que o pensamento alemão, especialmente o financeiro, não ficará tão bem, mas isso é outro tema). 

Mas vamos aos exemplos concretos do complexo do fato de Bocage, sendo que, nos tempos que correm, não é preciso ir passear para o Rossio com uma nova proposta ou, no caso da peça por costurar, com uma intenção apenas, porque basta propor-se qualquer coisa para as chamadas redes sociais se carregarem de sapientes e agressivos comentários que deixariam Bocage sem fôlego para as suas habituais respostas. Os números apresentados baseiam-se em estimativas mais ou menos grosseiras e deverão ser confirmados.

1 - Proposta: recurso à utilização do hidrogénio para tração através de células de combustível, beneficiando do excesso de produção  de eletricidade eólica.

Imediatamente se levantaram vozes dizendo que o futuro da mobilidade é o das baterias de lítio, e quando se chama a atenção para a péssima densidade de energia em peso (300 Wh/kg) a resposta é que os progressos tecnológicos permitirão melhores rendimentos com eletrólito de estado sólido e com baterias de sódio e zinco, mas não se indica uma data para a sua comercialização.

Sem querermos ficar à espera da melhor solução (peça de Bocage por costurar), atualmente já se veem em exploração comercial automóveis, camiões, automotoras e locomotivas com soluções mistas, tração por célula de combustível, serviços auxiliares a partir de baterias de lítio. Isto é, retirando os benefícios de ambas as soluções, da diversidade.

2 - Proposta: precisamos na Europa de uma rede única ferroviária que una as capitais e que assegure o transporte energetica e ambientalmente eficiente de passageiros e de mercadorias em todo o território.

Imediatamente se levantaram vozes a dizer que é mais económico aproveitar a rede existente, mesmo com limitações ou, para substituir as viagens aéreas até 2000 km, construir uma rede de hyperloop .

Fazendo o paralelo com o episódio de Bocage, aproveitar as linhas existentes equivale a remendar o fato antigo, e construir o hyperloop equivale a andar de peça por costurar.

Justificação técnica: no caso das linhas existentes, foram construidas com parâmetros não compatíveis com as atuais velocidades da ordem de 300 km/h, com curvas e pendentes desfavoráveis, que limitam o rendimento do transporte de mercadorias. No caso do hyperloop, por razões de custo e de consumo energético as dimensões dos veículos são incompatíveis com o transporte de quantidades significativas de mercadorias. Não têm sido apresentadas estimativas realistas com os custos de construção (tubos de 3 m de diâmetro em viaduto, com raios de curvatura e pendentes mais rigorosos do que nas linhas de alta velocidade ferroviárias e com necessidade de suportar elevadas velocidades). As velocidades possíveis serão competitivas com o avião, possibilitando as referidas distancias de 2000 km, mas a energia poupada com vácuo para permitir essas velocidades é contrabalançada pela energia necessária para a levitação e afastamento das paredes,  e para a produção do vácuo. Por razões de segurança (espaçamento entre veículos a velocidades da ordem de 800 km/h) a capacidade de transporte é limitada comparativamente com a ferrovia.  Admitindo uma desaceleração de emergencia máxima de 4 m/s2, a distancia entre veículos será de 6000 m e a capacidade de transporte da via única será a velocidade  x densidade de ocupação = 800 x 1/6 = 13,6 veículos/hora. Para uma ocupação de 30 passageiros teremos cerca de 400 passageiros/hora.

Em resumo, existem reservas sobre a viabilidade do hyperloop como transporte mais económico e eficiente, nomeadamente pra mercadorias pesadas.

3 - Proposta: Por razões ambientais, devemos substituir o transporte de mercadorias por camião,  pela ferrovia.

Imediatamente se levantaram vozes a dizer que com os camiões elétricos por bateria ou por hidrogénio, ou até mesmo por catenária (experiencias na Alemanha e na California com camiões de bateria de lítio e com pantógrafo) a vantagem se mantem nos camiões por permitir o "porta a porta".

Mas omite-se uma questão essencial que é a da energia necessária para vencer a resistencia ao deslocamento. No caso dos camiões, o coeficiente de resistencia ao rolamento da roda de borracha sobre o asfalto é maior do que o da roda de aço sobre o carril, porque o atrito entre a borracha e o asfalto é superior. 

Para o transporte de 1400 toneladas de carga útil, necessitaremos de 40 camiões de 35 toneladas de capacidade cada ou de 1 comboio de 750 m . A resistencia ao deslocamento a 100 km/h dos 40 camiões será de  250 kN e a do comboio  70 kN , conduzindo a um consumo específico de energia de  160 Wh/ton-km no caso dos camiões diesel e de   40 Wh/ton-km no caso do comboio. Valores para camiões elétricos: 80 Wh/ton-km .

Dado que os camiões têm a grande vantagem de poder fazer o "porta a porta", a melhor solução para o transporte de mercadorias, que tem também a vantagem de reduzir o congestionamento nas estradas, é o transporte de camiões ou semirreboques pelo comboio. É a solução já praticada entre Espanha e Barking, na Inglaterra.    Ver        http://fcsseratostenes.blogspot.com/2020/05/hoje-falamos-de-cenouras.html

É também por causa do balanço de energia que o consumo específico de energia no transporte de mercadorias numa linha nova é inferior ao consumo específico de energia numa linha existente cujos raios de curva e pendentes são mais desfavoráveis. Estimativa: comboio em linha nova de parâmetros conforme  a norma 40 Wh/ton-km ; comboio em linha pre´-existente 60 Wh/ton-km.    Ver   https://1drv.ms/w/s!Al9_rthOlbwehiNTEh_xoxbZe16C 

Em resumo, relativamente a uma linha nova segundo os parâmetros da norma da interoperabilidade, nem é mais eficiente o camião elétrico nem o comboio numa linha pré-existente.

4 - Proposta: Por razões ambientais, devemos substituir as viagens aéreas de menos de 800 km pela ferrovia.

Imediatamente se levantaram vozes a dizer que, com os progressos tecnológicos, já previstos pela própria Airbus para 2035, os aviões serão movidos por hidrogénio obtido por fontes renováveis (lá terá o nosso Bocage de andar mais uns anos com a peça por costurar).

Consideremos Lisboa-Madrid por avião e valores mais ou menos aproximados. 

A energia associada ao movimento de um avião de 60 toneladas com 180 passageiros de uma cidade a outra a uma altitude de 10.000 m e uma velocidade de 800 km/h será de cerca de 8 MWh  ((energia cinética=1/2 mv2) + (energia potencial=mgh) + (energia de sustentação ca 7 MWh)).     Ver        http://large.stanford.edu/courses/2013/ph240/eller1/            e      https://es.wikipedia.org/wiki/Consumo_de_energ%C3%ADa_del_tren_y_de_otros_medios_de_transporte

Essa será também a energia aproximadamente associada ao movimento de um comboio de alta velocidade para o mesmo percurso, mas transportando o dobro de passageiros.

No primeiro caso, considerando um rendimento de 35%, será necessário consumir no avião  8/0,35= 23  MWh.  No segundo caso 8/0,85= 9,4 MWh no comboio. Em termos de energia primária suporemos que em ambos os casos se aplica um fator de 1,3 (do poço ao posto de abastecimento, ou da central de produção elétrica à subestação da transportadora). 23x1,3=30 MWh para a viagem do avião e 9,4x1,3=12,2 MWh para a viagem do comboio. Terá ainda de se agravar a alimentação do comboio com um fator de 2,3 para as perdas na rede elétrica de transmissão da transportadora, o que dará 28 MWh  [correção: admitindo um fator de perdas na rede de 40% teremos 1,7 para o fator entre a potencia útil e a potência de produção, o que dará 20,7 MWh em vez de 28 MWh].

A vantagem do comboio é contrariada por aproximadamente o dobro do tempo de percurso, embora isso possa ser reduzido graças à localização das estações, mas demos mais importância à energia em si.

Diziam então as vozes proféticas que vai ser possível num futuro próximo produzir hidrogénio a partir de gás natural sem emissão de CO nem CO2, através da pirolise do metano, para produção de hidrogénio e carvão sólido (destinado a armazenamento neutro) com um rendimento de   7 kWh/kg de H2 (valor teórico). Como se trata de uma reação que não produz CO nem CO2, tornaria obsoleta a utilização do comboio.

Considerando que em 1988 o Tupolev 155 voou com as suas turbinas alimentadas diretamente por hidrogénio (e pouco depois por gás natural) [correção: a alimentação por hidrogénio foi apenas a um dos três reatores do Tupolev], podemos admitir que os Airbus voarão também com as suas turbinas alimentadas por hidrogénio, solução mais simples e fiável do que com células de combustível, estando dominada a tecnologia da compressão do hidrogénio e do seu arrefecimento no estado líquido.          Ver                  https://en.wikipedia.org/wiki/Tupolev_Tu-155       e       https://en.wikipedia.org/wiki/Hydrogen-powered_aircraft

Sabendo-se que 1 kg de H2 contem 10 kWh [correção: o conteúdo energético de 1 kg de H2 é de 33 kWh dos quais com um rendimento de cerca de 30%  se pode retirar 10 kWh úteis], teremos como consumo de hidrogénio no avião Lisboa-Madrid    23.000/10=2.300 kg H2   . Mas esta quantidade de hidrogénio precisou [correção: teoricamente] de 2.300 x7 kWh = 16.100 kWh para ser obtida, preferencialmente a partir de energia elétrica renovável. Aplicando o fator acima de 2,3 [correção: de 1,7x1,1] para as perdas de transporte na rede elétrica de transmissão da produção de energia até à central de produção de hidrogénio, incluindo a distribuição do gás natural para a pirolise e o armazenamento do carvão sólido, temos       16.100x2,3 = 37.000 kWh de energia primária [correção: 16.100x1,7x1,1=30.100 kWh] (notar que de acordo com a tecnologia atual, com 50 kWh/kgH2, teriamos  259.000 kWh).

Comparando com o comboio, contando com as perdas de transporte nas linhas de transmissão elétrica e nos motores e transmissões do comboio, temos como visto acima 28.000 kWh no comboio em vez de 37.000 kWh do avião com hidrogénio [correção: 20.700 kWh no comboio em vez de 30.100 kWh no avião com H2 ].

Considerando 200 passageiros para o avião e 400 para o comboio, teremos em energia primária:

avião de hidrogénio        185 kWh/passageiro ou 0,308 kWh/pass-km (28 gep/pass-km)
                    [correção:   150 kWh/passageiro ou 0,250 kWh/pass-km (23 gep/pass-km ]

comboio                           70 kWh/passageiro ou 0,117 kWh/pass-km ( 10 gep/pass-km)
                   [correção:     52 kWh/passageiro ou 0,087 kWh/pass-km (  8 gep/pass-km) ]

Em resumo, a alimentação do avião por hidrogénio não o torna mais eficiente do que o comboio.












2 comentários:

  1. Muito completo. sem dúvida.
    Mereces um aplauso.
    E um abraço, LCS

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  2. Espectacular ! Muito se aprende aqui com o Eng. FSSilva.
    Proponho a sua contratação como assessor do ministro PNS...........para que as decisões tomadas no seu Ministério possam, finalmente, conseguir fazer progredir este nosso Portugal.
    Felicitações por este brilhante trabalho, com um abraço do
    MRibeiro

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