Homenagem à minha sogra
A senhora já não está cá.
Tinha ideias muito diferentes das minhas sobre como se educam crianças.
O que deu em conflitos.
Sempre achou que a filha merecia uma pessoa mais animada do que eu.
O que contribuiu para mais conflitos, embora nisso ela tivesse razão, porque eu sou razoavelmente maçador.
Nasceu em Montachique, na região saloia, que é a maior região saloia da Europa.
Saloia no sentido da preservação de muitos elementos árabes e islâmicos. Desde provérbios, à entoação semelhante à do Algarve e de Palmela, aos nomes árabes (Montachique significa monte dos amantes, ou se quiserem, monte gracioso). E tudo isso aqui junto de Lis-buna, mais perto do que a aldeia da roupa branca.
Bom, talvez na Andaluzia a região assim caracterizada seja maior, mas a nossa região saloia tem a superioridade de ter sido a terra da minha sogra.
A senhora veio trabalhar para Lisboa com 11 anos como aprendiza de modista.
Trabalho infantil.
Pai morto muito cedo.
Sapateiro na pequena terra, que por ser local de vilegiatura, lhe proporcionou o convívio republicano com senhores importantes do movimento republicano que aí tinham as suas casas de férias.
Alta burguesia florescente, Grandella e amigos, de inconcebível aceitação da ideia de um rei por delegação divina, com hábitos de cultura e de prazer sofisticado. Ainda lá estão, junto ao Cabeço, em Tocadelos, as ruínas do casino fora de portas, com muitos gabinetesinhos, que a sociedade dos Macavencos quase concluiu.
De modo que em casa do pai da minha sogra havia livros. Que a filha não leu porque os deixou na terra e passou os anos seguintes a fazer costura.
Mas a neta leu quando criança, dispensada da obrigação de aprender um ofício fora da escola, o que lhe aumentou os encantos.
Por isso eu insisto tanto que é o acompanhamento educacional e financeiro das crianças que garante o sucesso escolar, não é a avaliação dos professores nem ministras convencidas das suas estatísticas…
Eu a querer embirrar com a senhora, porque genro deve embirrar com a sogra, e eu a embirrar mesmo nesta frase que ela dizia: “Já encabei a enxada às minhas filhas”, querendo dizer que as obrigou a seguir o percurso escolar até ao fim (é no que eu acredito de mais importante, a educação das crianças) e exprimindo a longa tradição da sua região saloia, historicamente ligada à cultura árabe e helenística do Mediterrâneo.
Ficou assim na memória de criança da minha sogra o ideal republicano da educação e da cultura popular.
Por isso dizia, quando via uma procissão na rua: “Nem parece um país republicano”.
Pois, não parece.
No dia 16 de Maio de 2009 é fechada a estação de Terreiro do Paço porque à superfície se reza uma missa, no meio de uma procissão.
Perde o Metropolitano alguma receita, mas isso não importa.
Importa que não parece um país republicano, laico como estatui a Constituição.
Vejamos.
Uma imagem religiosa é transportada numa corveta da Marinha Nacional.
Eu contribuinte ignoro se a Marinha cobrou ao Cardeal a despesa de combustível, da quota da manutenção da corveta, da ocupação dos marinheiros.
Eu contribuinte admito que a corveta cobre os seus serviços. À igreja católica, ou à igreja ortodoxa, ou à igreja de Jeová, ou ao íman da Mesquita, ou ao templo hindu, ou à comunidade de Ismael.
Eu contribuinte tenho de admitir isso, pese embora no meu íntimo estar convencido de que as manifestações religiosas são um comportamento desviante intimamente ligado à capacidade do cérebro para criar imagens de entidades virtuais – o papão do escuro, o homem do saco, o deus dos oceanos, o espírito do ecstasy…
Mas não posso afirmá-lo com certezas absolutas. Só posso dizer que a probabilidade de isso acontecer é grande, como resultado dos estudos do cérebro, das sociedades ao longo dos séculos e da comparação das características dessas entidades virtuais.
Por isso tenho de aceitar a possibilidade de alugar a corveta de todos os contribuintes a quem quer que se apresente de boa vontade.
Por isso não posso deixar que nenhuma comunidade religiosa se sobreponha a qualquer outra em privilégios. Até porque sabemos da história como elas se matam umas às outras. Ui, que ainda no tempo do bisavô do avô do pai da minha sogra a fogueira aqui neste local (ali mais ao lado, ao pátio do Arsenal) queimou o último condenado da Inquisição…
Por isso o estado tem de ser laico.
Se a mulher do primeiro ministro quer usar lenço, use, mas não obrigue ninguém a usar.
Pela Paz.
Para que não se possa dizer como a minha sogra dizia, contrariada, “Nem parece um país republicano…”
Tradições?
Então vamos aos dados históricos.
A imagem religiosa que foi transportada era de N.S.Fátima.
Antes da recristianização do território a sul do Mondego, a mão de Fátima era o amuleto que mais crentes agregava, para dar saúde e afastar o mau-olhado dos invejosos. Está intimamente ligado às figas e à “cambulhada” que se põe ao pescoço dos bebés. Figas de azeviche estão representadas no espólio museológico do convento de Santa Clara de Coimbra, recentemente resgatado do estado de abandono em que vegetava (como foi possível?).
Esta a verdade histórica da tradição, demonstrando que o cérebro é capaz de criar entidades virtuais com capacidades imaginadas.
Mas devemos manter algumas tradições.
Como ficou contente, a minha sogra, quando viu as netas casarem-se com uma coroa de flores na testa, como as noivas pagãs antes da cristianização. Bem não queria o sacerdote que elas usassem a coroa…mas foi a tradição pagã, afinal, a prevalecer. Não deviam ter perseguido os pagãos…
“Este país nem parece um país republicano”
Saravá, sô Dona Lucília.
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