A castração do povo e os fetiches
Entre a vasta contribuição que o pensamento português ofereceu à cultura mundial encontra-se a palavra feitiço.
Durante o esforço expansionista das relações comerciais europeias com os mercados asiáticos, em que as principais casas comerciais portuguesas (família Lencastre, família Albuquerque, etc.) estiveram envolvidas, verificaram os marinheiros portugueses que em África os povos dedicavam muita fé a amuletos, figuras ou rituais para conseguir objectivos por via indirecta.
O que testemunharam foi um esforço de abstracção e de construção de modelos simuladores da realidade desejada.
Os marinheiros portugueses vinham de uma cultura que, entre outros meios para o triunfo emergente da religião que se afirmava na altura como dominante (o papismo de Roma), tinha recorrido à bruxaria pagã como alvo a abater.
Pobre deusa celta Brixta com os seus delicados ademanes e procedimentos intimamente ligados à Natureza (o que a religião dominante não suportava, lembram-se do que o Sean Connery sofreu no nome da rosa?, com os dominicanos a apertá-lo e os franciscanos do santo antónio de Pádua, que o de Lisboa não ia ser tão intolerante, a assobiar para o lado?), deu talvez origem ao nome Bruxa, ela, que nada tinha de bruxa, feia e má.
Faltava a este ambiente de perseguição (que efectivamente não agradava à ideia geral da cultura portuguesa, insensíveis sim, mas não exageremos com o sangue) um elemento que ajudasse a acabar com as perseguições maníacas da Inquisição às bruxas (a ideia está retratada no Crime da Aldeia Velha, peça de Bernardo Santareno, e nas Bruxas de Salem, filme com a Winona Ryder - acontece uma desgraça, foi aquela mulher solteira ou viuva que atraiu o mal e a desgraça), sem extinguir o sentimento do extra-natural (é impossível, a religião ou a crendice religiosa podem ser um desvio, mas são um desvio de algo que está agarrado aos genes e aos neurónios).
E a observação dos feitiços africanos resolveu o assunto. Rapidamente os portugueses exportaram a nova ciência esotérica para o Brasil e agora é ver as telenovelas brasileiras cheias de vudu e outras coisas.
Feitiço foi o nome que os portugueses foram buscar ao latim (o jeito que o Priberam dá para estas coisas) para designar algo que não existe, que é fictício (pena o “c” ir caindo com o novo acordo), que não existe, que é artificial, ou que é imaginário, que em latim se diz ficticiu.
Assim mesmo, fictício, bons meninos os marinheiros portugueses, muito amigos do latim, como dizia Camões (claro que entre os marinheiros iam jovenzinhos saidos dos Estudos Gerais com nota máxima e que não conseguiam arranjar emprego nas empresas públicas da altura porque as grandes casas comerciais portuguesas andavam já a cortar nos encargos de pessoal – não admira que a bordo duma caravela com 60 tripulantes houvesse quem soubesse latim).
Era então o feitiço algo que não existia mas que existia. Pronto, a Inquisição teve de engolir, pois que se era fictício faltava o corpo do delito para incriminar o “feiticeiro”. E de feitiço saiu não só o feiticeiro mas também o fetiche (tradução do português para o francês, que os franceses andaram muito interessados nas terras do Brasil, pleno de fetiches, tanto assim que ainda hoje o navio escola francês se chama Belem e até sobrou a Guiana Francesa, ainda colónia).
Fetiche como objecto que não existe mas que existe, porque representa o que não é, mas se associa ao que é, e com ele se podem conseguir objectivos (escuso de ser explícito, não é assim?).
Isto é, fetiche é a realidade virtual.
500 anos à frente do pensamento universal, o pensamento português, a criar o fetiche, que só tem existencia virtual mas em torno do que tudo gira, como a informática veio agora querer impôr...
E o pensamento científico universal aceitou de bom grado a inovação teórica do século XV.
Passados três séculos, quando o pensamento universal começou a sedimentar no século das luzes, vem o conceito científico de fetiche, através de Charles de Brosses, um enciclopédico que desenvolveu uma teoria materialista das origens da religião, com base nos fetiches “descobertos” pelos portugueses.
Curiosamente, Karl Marx tornou-se devedor do pensamento português quando extrapolou a teoria de Brosses para o valor fictício ou ilusório da mercadoria (desactualizado Marx? o que é o mecanismo de fixação do valor em bolsa? um mecanisno real ou fetiche? as equações da mecânica newtoniana também estão desactualizadas? queremos ver ou queremos não ver?).
E o pensamento português contemporâneo , mesmo contemporâneo porque está a acontecer sempre, cria a ilusão de que a gazolina e o gasóleo são o grande fetiche da nossa sociedade, são o desvio das necessidades essenciais (o pão, a saúde, a educação, a justiça, a paz e a solidariedade) criado pela castração destas necessidades (vem tudo nos manuais da psicologia, só mudei os nomes a algumas naturezas). São a ilusão de que o transporte individual (TI) pode dispensar o colectivo.
Fetichista, o povo português, muito fetichista.
Pobre iconoclastas, não vão conseguir convencer ninguém em Portugal com tantos fetichistas.
Como os pobres adoradores do transporte ferroviário não vão conseguir convencer ninguém.
Os burocratas de Bruxelas já expediram as suas recomendações. O tráfego de mercadorias nas auto-estradas da Europa atingiu níveis incomportáveis para a capacidade das vias de comunicação e para os limites das emissões de CO2.
As recomendações falam claramente em investir nas infraestruturas ferroviárias. A “contre coeur” o governo deixou a RAVE fazer os seus projectos.
Claro que à portuguesa, sem os contrastar com outras opiniões e sem os benefícios de um debate aberto.
Claro, em Portugal ainda se depende do messianismo bacoco e dos esquemas institucionais rígidos; ainda se pratica o fetiche de criar uma imagem pública do que é o correcto (para que servem os programas de televisão e os “opinion makers”?), mas como fetiche que é, a probabilidade de coincidir com a realidade é expressa pela assíntota zero.
Calma porém, que os projectos até nem estão muito mal feitos. Estão claramente acima da positiva, coisa que não acontecia com o aeroporto da Ota.
E chegados aqui, quem teve a paciência de me seguir pergunta: e que tem tudo isto a ver connosco?
Resposta: tudo, porque o nosso governo tem instruções para investir na estrutura ferroviária de transportes metropolitanos (espera-se aumento da procura com o aumento dos combustíveis).
E sendo assim, temos a equipa organizada para responder à solicitação? sendo certo que não devemos competir com a RAVE, a REFER, a CARRIS ou as Rodoviárias. Se querem competir compitam com o TI.
Temos a equipa organizada? Pelo exemplo do nó de Alcantara parece que não.
O problema é que os vencimentos, um dia destes, serão função dos passageiros.Km transportados...
Não percamos os próximos episódios.
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