sábado, 8 de junho de 2019

Babuche, ficção histórica meio surrealista


“Já este nosso terceiro António, o “babuche” Costa, durará enquanto mantiver as pessoas tranquilas, mesmo que o país vá ficando cada vez mais na cauda da Europa.” 
                                  José Manuel Fernandes, em Observador, 2019-05-30

A jovem mulher negra, de corpo bem lançado, evidenciado pela camisola justinha sem mangas e as calças não menos justas, chamou o cão que se aproximava de mim, no seu passeio pelo parque, e voltou-se para o filho: “Calça as babuchas”.
E eu lembrei-me daquele artigo em que o jornalista indignado se escandalizava com o primeiro ministro por hipnotizar os eleitores, chamando-lhe “babuche”. Na minha ignorancia pensei eu que babuche significava qualquer coisa como palhacinho, boneco, criança irrequieta, ou qualquer coisa pior, mas que no contexto se poderia interpretar como carinhoso, como quando chamamos terrorista ou sacaninha a uma tal criancinha irrequieta.
Ignorancia minha, que só contrariei depois de ouvir a Vénus negra a reprovar o filho, “calça as babuchas”. Cheguei a casa e foi ao Houaiss, à Enciclopédia Luso-Brasileira e ao Priberam da internet, significado de “babuche”. E só encontrei o prosaico chinelo sem tacão nem contraforte, mostrando o calcanhar.
Teria sido mesmo “babuche”, o que o jornalista quis chamar ao primeiro ministro convencido? Chamar chinelo ao primeiro ministro?
Sim ou não, depois de ver a etimologia do termo e uma descrição breve da sua história, resolvi ficcionar. Toda e qualquer semelhança com a realidade ou com factos históricos é pura coincidência, e certas passagens foram escritas para terem efeitos dramáticos (pena se não tiverem, insuficiência minha). Quase nada há na historiografia que suporte esta ficção.
A cultura clássica grega e romana elegeu as sandálias com tiras como o calçado ideal. Até puseram o nome de calígula a um imperador. Calígula significava sandalinha. Será que o nosso jornalista afinal queria mesmo chamar chinelo ao primeiro ministro? Atenção que Calígula era um bocado sanguinário... Também ficou registado o episódio do pintor Apeles que acolheu de bom grado a correção do sapateiro mas que recusou quando este quis que o pintor alterasse a musculatura do joelho. Não suba o sapateiro além da sandália, ditou Apeles para a história. 
Seria sapateiro que o jornalista quis chamar ao primeiro ministro, tão hábil numas coisas, mas ignorante noutras? Ou, reparo agora, de Houaiss aberto, será que o jornalista quis chamar ao primeiro ministro “babuchka”, que é um termo russo de uso carinhoso, sim, como avôzinho, ou avozinha, ou, melhor ainda, termo respeitoso da India, “babu”, senhor, pai, com algum sufixo diminutivo que o corretor ortográfico, impiedoso, alterou para “babuche”?
Mas então, o jornalista quis chamar pai ao primeiro ministro, na senda dos adoradores dos pais da pátria? O que se chamava na India a Nerhu? Não estava a criticá-lo? Ou era uma crítica filial?
O cadáver de Hipatia assassinada pelas milícias fanatizadas pelo cenobita  asceta Pacómio, foi encontrado profanado e de pés nus. Hipatia sobrepunha às crenças religiosas a visão da observação científica, e tentava por todos os meios opor-se à barbárie que se via crescer como uma onda imparável. Era matemática, física e astrónoma. As milícias da religião ascendente dominavam Alexandria, reforçadas pela ordem do imperador romano de acabar com qualquer vestígio da cultura egipcia dos hieróglifos. Pacómio criticou violentamente o uso por Hipatia das velhas sandálias greco-romanas. A moral da nova religião oficial definia claramente como tentação de satanás a visão dos dedos dos pés femininos nus que as sandálias clássicas permitiam. Aos dedos associavam os cascos dos ungulados com chifres. Aí se inspirou Alexandre Herculano para a sua dama pé de cabra.
Por isso Pacómio reuniu com os outros cenobitas. Estava-se no período de expansão das correntes que triunfaram no concílio de Niceia, desprezado imprudentemente o sensato Ario, e as várias seitas uniam-se num tronco comum que ia do Egito à Persia, à Arménia e ao interior da península arábica, propagando-se as ideias pelas caravanas comerciais, mais do que pelos guerreiros, estes curiosamente anestesiados pela nova religião, que assim conseguia sublimar a turbulência guerreira com as imposições virtuais.
E foi da Persia que veio a ideia, a execução do protótipo e a palavra para o novo calçado substituto da sandália clássica. Os trabalhos foram realizados pelos especialistas de couro de Susa, seguindo as instruções do seu cenobita Palemon, grande amigo de Pacómio. Estes especialistas eram famosos pela construção de barcos de couro que desciam o Tigre sem necessidade de barcos de madeira para transportar o couro, que aliás não conseguiriam vencer a corrente para o regresso.
Papuxe, palavra persa, como paridaeza, donde veio paraíso, portanto eivada de religiosidade, designava o pedaço de couro que delicadamente envolvia os pés femininos deixando no entanto a ver-se o calcanhar. Pacómio autorizou este desnudamento parcial, Palemon explicou-lhe que por razões de ventilação, mas Pacómio insistiu que tinha tido uma visão e que cumpria as instruções que recebera ao interditar rigorosamente que o pedaço de couro deixasse ver a junção do segundo e terceiro dedos, contando a partir do maior. Isso era inadmissível, por suscitar desejos lúbricos nos cenobitas e nos membros mais impetuosos das milícias. O pedaço de couro tinha de cobrir a junção.
E assim se fez e assim se propagou o uso das papuxe, babuchas, eficazmente levado pela ainda mais nova religião que estava prestes a aparecer, a longínquas regiões, como aquela em que eu vi o menino de babuchas.

PS em 10 de junho - Por coincidencia, o Publico de 9 de jun homenageia Tignous, cartoonista assassinado no atentado ao Charlie Hebdo com alguns dos seus desenhos sobre a censura religiosa


PS em 11 de junho - duas notícias triste de hoje: 
- a Arabia Saudita, de religião oficial sunita, ameaça executar um rapaz de 18 anos, Murtaja Qureiris, de religião xiita, por o que considera crimes cometidos quando ele tinha 10 e 13 anos. Este não é um exercício de whataboutism, são condenáveis os assassínios e execuções da praça de Tianamen e do general cubano corrupto em Angola.
- O New York Times decidiu deixar de publicar cartoons também no seu setor internacional. O cartoon acima não poderá ser publicado no New York Times. Compreendem-se as razões comerciais por trás desta reação ao cartoon de António caricaturando Netanyau e Trump, mas desgosta. 
Quanto à pena de morte, ficava bem à ONU pronunciar-se.
PS em 12 de junho - segundo informação prestada gentilmente pelo autor do artigo, "babuche" é o nome por que a família e os amigos tratam o dr António Costa. Permanece a origem da alcunha, mas isso pertence à vida privada, embora isso não impeça a associação a alguma coisa do que ficou escrito.


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