quarta-feira, 28 de abril de 2010

Economicómio XLIX - Adam Smith e Joseph Stiglitz num concerto na Gulbenkian

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Os instrumentistas e o coro já estavam instalados quando Adam Smith se sentou discretamente no plano desnivelado à esquerda do palco.
Do outro lado, atrás dos contrabaixos, entrou logo a seguir Joseph Stiglitz, prémio Nobel da Economia de 2001, que se sentou também num plano desnivelado, pousando ao seu lado a pasta com o computador portátil.
No centro, uma harpa imponente, dando a sua esquerda ao piano, enquanto o coro, predominantemente feminino, se dispunha em escada até ao órgão.

Ia cantar-se a Cantata Misericordium de Benjamin Britten.

Adam Smith não chegou a conhecer Benjamin Britten porque Benjamin Britten escreveu a sua cantata misericordiosa, com texto em latim de Patrich Wilkinson, sobre um episódio bíblico, em 1963. Por isso, de semblante carregado, aguardava a execução. Da peça, a execução, a sua performance, como ele diria.
Do outro lado, Stiglitz, com o seu ar despreocupado e engravatado de professor da universidade de Columbia e de antigo conselheiro de Bill Clinton, mantinha, por detrás dos óculos de lentes grandes, uma expressão de expetativa.

O maestro baixou com energia ambos os braços e um som metálico das trompetes e das trompas, de vozes claras e sincopadas, e de fortes acordes do piano só aparentemente incompatíveis, encheu a sala.

- En viator qui descendit ab Ierusalém in Iericho (um viajante descia de Jerusalém a Jericó).

Stiglitz pensou que estávamos perante uma exibição do direito à mobilidade e, provavelmente neste caso, do direito ao comércio.
E pensou bem, mas Adam Smith, com a sua infinita permissividade, não devia ter estranhado o que se passou a seguir.

- Cave, viator, cave! Latent istis in umbris latrones (cuidado, viajante, cuidado! Escondem-se ladrões nessas sombras)

Stiglitz lançou um olhar irado ao colega do outro lado.
As políticas liberais e de concorrência desenfreada, o funcionamento irracional dos mercados, que não são propriamente uma fonte de sabedoria, porque são predadores e muitas vezes estúpidos, podem danificar toda a economia europeia (citação); as políticas liberais de contenção dos preços e redução de salários podem também enfraquecer a economia  (citação) e estimular o fecho de empresas e o desemprego.
Entretanto a globalização falhou estrondosamente porque são os paises desenvolvidos que mantêm a proteção dos seus próprios produtos contra a importação dos países pobres (ver "Globalização, a grande desilusão"   em   http://www.terramar.pt/20019.htm ;   Stiglitz sabe do que fala porque foi vice-presidente do Banco Mundial, muitas vezes em rota de colisão com os economistas insensíveis do FMI).

Tudo isso só podia contribuir para o aumento da criminalidade que iria culminar com o assalto ao pobre viajante.

- Eheu relinquor humi prostratus, semivivus,solus, inops (ai de mim, prostrado no chão, meio morto, só e sem dinheiro)

Assim se lamentava o barítono, enquanto o coro ondulava chocado e a orquestra sublinhava o dramatismo da situação, do viajante e da economia.
O coro introduziu a cena seguinte, anunciando a aproximação de um sacerdote:

- Is certe sublevabit (Certamente te salvará).

Mas a orquestra respondeu com o repudio do sacerdote, que se afastou em andamento rápido, sublinhado pelos acordes agressivos dos violinos.
E o coro novamente solidário, a anunciar a aproximação, agora de um professor de direito, mentor de um partido confessional ligado ao poder, e dos seus guarda-costas, enquanto o barítono geme:

- Fer opem atrociter mihi vulnerato (ajuda-me, estou muito ferido)

Mas o professor de direito, receoso de um assalto, também passou de largo.
Adam Smith teve um movimento de impaciência. Devia aquela economia ter musculado a defesa dos seus empreendedores. A polícia já devia ter prendido os ladrões, e o viajante se não estava já a ser tratado era porque não tinha pago um seguro eficaz.
E eis que chega o samaritano, que seria assim como um cidadão rústico, sem o polimento das classes altas.
O barítono entoa:

- Miserere mei, hospes, afflicti (Tem piedade, desconhecido, eu sofro)

E o tenor, que era o samaritano:

- Quid ante pedes iam vídeo? (que vejo a meus pés?)

Alegra-se o coro, cantando sobre a orquestra triunfal que o samaritano tratou o ferido e o levou até à estalagem onde o alimentou e o fez recuperar.

- Optime hospitum, quis es? (bondoso desconhecido, quem és?)

- Quis sim, parce quaerere (quem sou não interessa)

Os violinos, as violas, os violoncelos e os contrabaixos acompanham os harpejos da harpa e o coro prossegue, apoiado no piano, uma canção doce em crescendo progressivo

- Morbus gliscit, Mars incedit, fames late superat. Sed mortales alter quando alterum sic sublevat e dolore procreate caritas consociat (a doença grassa, a guerra espreita, por toda a parte impera a fome, mas quando um mortal ajuda outro a dor e a compaixão geram a solidariedade).

Stiglitz estava radiante (teria preferido acrescentar o desemprego aos cavaleiros do apocalipse citados e a vencer com a Declaração Universal dos Direitos do Homem : a doença, a guerra e a fome). Adam Smith impassível.
O coro e a orquestra continuam o seu crescendo. Embora moderna, a musica é um canto chão quase gregoriano.
O maestro pediu e os intérpretes dão o seu máximo.
O som do coro e da orquestra é fortíssimo.

- Vade et tu fac similiter (Vai e procede da mesma forma).

Os braços do maestro estão levantados. É o acorde final. Os dedos das duas mãos muito abertos, que assim se mantêm durante vários segundos depois de todos se calarem.

A minha mensagem é esta, gritou Stiglitz a Adam, por cima da orquestra, no meio dos aplausos ao maestro, ao coro, à orquestra e aos solistas: assim como Keynes apelava ao intangível da confiança e ao aproveitamento da capacidade instalada nas fábricas, eu apelo ao intangível da solidariedade contra os especuladores e as politicas restritivas.
Adam Smith saiu, zangado.
Não tinha gostado da musica, nem do texto, nem do que Stiglitz tinha dito.
Fez mal, ao menos podia ter apreciado a beleza da musica, já que é insensível à mensagem.


Benjamin Britten, Cantata Misericordium, op.69, texto de Patrich Wilkinson, coro e orquestra Gulbenkian, maestro Fernando Eldoro, tenor Toby Spence, barítono Hugo Oliveira, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, em 23 de Abril de 2010; as intervenções de Adam Smith e de Joseph Stiglitz foram imaginadas, mas procuraram aproximar-se da realidade e contêm algumas citações verídicas.


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terça-feira, 27 de abril de 2010

Diálogos de Siracusa. 4º diálogo – in PEC probationem nostri (no PEC as nossas provações)

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Publius Coletius atravessava apressado o Forum de Siracusa, de manhã cedo, dois dias depois das festas da Florália, quando encontrou Caio Indivisio.

Publius Coletius - Amicus Caius, ainda bem que te encontro. Vem ajudar-me na Ágora. Chegou uma nave de Roma. O imperador expediu ordens de PEC.

Caio Indivisio – Ordens de PEC?!

Publius Coletius - Sim, ignorante, as propositionem exequo compositus advenio (proposições para equilíbrio e compatibilização do crescimento). Trata-se de um plano destinado a compensar os disparates que os imperadores têm cometido, gastando demais com atividades não produtivas, guerreando em vez de negociar os preços do trigo e de investir na construção, na marinha, no comercio, na agricultura, nas ferrarias e nas canalizações. Têm deixado à solta os patrícios e banqueiros que emprestam dinheiro e eles têm enganado a plebe e explorado os escravos, os artesãos e os soldados até ao tutano, e pior que isso, especulam, especulam e arrasam as empresas honestas. Eu bem tinha avisado.

Caio Indivisio - Publius, Publius, sabes que eu sou pela iniciativa privada. Nem todos os empreendedores e banqueiros são assim. Eu próprio vou diversificar as minhas empresas e vou abrir um banco. Estudei os textos de Apolodorus sobre o pai, Pasion; os êxitos do seu trabalho nos bancos de Antistenes e Arquestratus, do Pireu. Aprendi com eles e com o banco de Delos a emitir títulos de dívida de modo a não ser preciso andarmos sempre com bolsas cheias de sestércios.

Publius Coletius - Sim, sim; nem eu queria ofender tão ilustre empreendedor como tu és. Também não queria que pensasses que menosprezo a capacidade matemática dos banqueiros, desde os primeiros babilónios que sabiam calcular juros compostos; nem sou fundamentalista como a nova religião do médio oriente que condena os juros sobre os empréstimos; e acho muito bem que estudes a história da banca, para evitares  os erros que outros cometeram e evitares ser  enganado como os outros já foram pelos especuladores. Mas as ordens do imperador são muito claras, e são para cumprir. Aumento de impostos e cortes nas despesas. Vamos ter de prescindir de enviar os escravos ao topo das montanhas para trazer neve para fazer gelados, vamos ter de nos contentar com os carroções da Etruria e da Iberia e deixar de comprar os carroções da Germânia. Adeus às sedas e brocados de Bagdad e de Samarcanda. Os bois e as vacas que mandamos vir das planícies da Panónia vão ter de ser criados aqui na Sicília. Temos de libertar uns quantos escravos e dar-lhes terras para criarem galinhas , coelhos e ovelhas. Não podemos continuar assim, a importar mais de oitenta por cento do que comemos.


Caio Indivisio - E recuamos também as fronteiras do Oriente, para pouparmos nos gastos militares; deixamos os territórios de entre o Eufrates e oTigre para os Partos e os Persas…

Publius Coletius - Acho bem, folgo muito em ouvir-te dizer isso.

Publius e Caio mergulharam absortos no estudo das bulas do imperador. Ao fim de algum tempo de grande concentração, Caio exclamou:

Caio Indivisio – Publius, devias ser tu a dizer isto, mas eu dou-te a ideia de graça. Qualquer resolução deve ser baseada em factos e em números bem concretos, como diziam os alunos de Pitágoras. Isso nos ensinam os economistas do tempo daqui a 80 gerações. Recolhem-se os dados, classificam-se e armazenam-se em bases de dados e depois, interpretam-se , ou tenta-se interpretar através dum modelo que simule a realidade; que a simule, como dizia Bertrand Russel, nunca a pode reproduzir exatamente.

Publius Coletius – Explica-te.

Caio Indivisio – Disseste que o problema só podia resolver-se com aumento de impostos para o nosso imperador. Então, temos de saber que percentagem da riqueza do império foi produzida pelos escravos, artesãos e soldados, e que percentagem da riqueza foi produzida pelos patrícios e pelos banqueiros.

Publius Coletius – Isso não sei dizer-te, qual a riqueza produzida por cada grupo; mas, como as contas são feitas, sei dizer-te qual a riqueza que entra nas bolsas dos escravos, dos artesãos e dos soldados , e qual a que entra nos cofres dos patrícios e dos banqueiros. Conta com 20% para os escravos, artesãos e soldados, e com 80% para os patrícios e banqueiros.

Caio Indivisio – Então é simples: 20% do aumento dos impostos tem de ser aplicado aos escravos, aos artesãos e aos soldados, e 80% aos patrícios e banqueiros.

Publius Coletius – E se os patrícios e os banqueiros fugirem para a Germânia ou para outros sítios bárbaros, podemos pôr grandes massas de escravos, artesãos e soldados a trabalhar nos campos e nas minas desses patrícios e banqueiros… e podemos dizer aos chefes das tribos germânicas que os sestércios que eles levaram sem autorização do imperador já não valem o mesmo que os sestércios do imperador.

Caio Indivisio – Publius, já temos a solução para a nossa Sicília e para o nosso imperador. Já podemos mandar a nave de volta com a nossa posição. Esperemos que o Senado em Roma concorde. E não nos esqueçamos de escrever na mensagem que o aumento da produção de bens alimentares e a redução dos gastos com campanhas militares são absolutamente necessárias.

Publius Coletius – Amen (assim seja). Agora vamos fazer como se honrássemos os deuses da mesa e depois voltamos para escrever a mensagem para o Senado de Roma. Ainda temos tempo depois para assistir serenamente ao crepúsculo.



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domingo, 25 de abril de 2010

Economicómio XLVIII - a taxa FTT

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Encontrei já há uns dias, na página de Finanças do DN, um breve editorial de um dos seus comentadores.
Parece-me que o DN não contrata para esta sua secção economistas não ortodoxos.
Por isso fiquei agradavelmente surpreendido quando li a sua sugestão: porquê montar um esquema complicado e burocratizante para taxar as mais valias em bolsa, aliás relativamente fáceis de camuflar, quando seria muito mais simples e eficaz taxar as transações financeiras?
Passados uns dias, vejo numa manifestação de um partido de esquerda este cartaz: Financial transaction tax, NOW, 0,05% (tão pequena!?).
Afinal, o que separa as pessoas não é a extensão das suas divergências, nem a distancia que vai do ultimo lugar à direita do hemiciclo do Parlamento ao ultimo lugar à esquerda; é a dureza das suas razões e das suas emoções, é a insensibilidade que não quer ver os problemas de outros.
Como dizia o doce rabi (Eça de Queirós), que não sabia nada de finanças (Fernando Pessoa), era tempo agora de tornar menos duros os corações dos financeiros. Talvez lembrar-lhes que nos tempos que correm, a metáfora é que estamos todos no mesmo avião com problemas. Os poucos em executiva e os muitos em económica.

Dava muito jeito ao PEC esta taxa, não dava?





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Domingo, 25 de Abril de 2010


                                  
                                             DOMINGO, 25 DE ABRIL DE 2010


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Rodoviarium XV - As passadeiras

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http://www.ansr.pt/Default.aspx?tabid=315&language=pt-PT


Das estatísticas de 1 de Janeiro a 21 de Abril da Autoridade nacional de segurança rodoviária (ver a ligação supra):
Mortos no local do acidente ou chegados mortos ao hospital (números para o continente):
Em 2010…………………. 205
Em 2009…………………. 191
Em 2008…………………. 218
Números para o distrito de Lisboa
Em 2010…………………. 34
Em 2009…………………. 18
Em 2008…………………. 29
Números para o distrito de Faro
Em 2010…………………. 15
Em 2009…………………. 13
Em 2008…………………. 8

Percentagem de vítimas mortais por atropelamento em 2009 relativamente ao total de mortes em acidentes em estradas e povoações : 18% (130 em 740)
Percentagem de atropelamentos em passadeiras em 2009 relativamente ao total de atropelamentos : 40% (i.é, 130x0,4=52)

Apreciação:
Apesar de existir uma tendência decrescente para a taxa de sinistralidade, verificam-se agravamentos pontuais, de que o período de 1 de Janeiro a 21 de Abril e os distritos de Faro e Lisboa são exemplos.
Por outro lado, a tendência para agravamento em valor absoluto dos atropelamentos é um fator de grande incomodidade.
Dir-se-á que, enquanto a segurança dos passageiros de automóvel melhora, a segurança dos peões piora.

Factos, não medidos, mas altamente prováveis:
1) uma percentagem significativa de condutores não tem aptidão física para, numa situação imprevista, conseguir travar o carro antes de atropelar o peão numa passadeira
2) uma percentagem significativa de atropelamentos é impossível de evitar à velocidade a que se encontrava o automóvel atropelante a um segundo antes de atingir a vítima (esta distancia é, em metros, igual à velocidade em km/h a dividir por 3,6  ; para diferentes velocidades obtêm-se as seguintes respetivas distancias percorridas durante 1 segundo; este é o tempo de reação médio, i.é, as distancias indicadas são o espaço percorrido sem que o condutor tenha tempo de reagir:

10 km/h…….. 2,8 m
20 km/h…….. 5,5 m
30 km/h…….. 8,3 m
40 km/h ……. 11 m
50 km/h……. 13,8 m
60 km/h……. 16,7 m
72 km/h……… 20 m
108 km/h……. 30 m
144 km/h……. 40 m
180 km/h……. 50 m )

Por exemplo, se a aproximação a uma passadeira se fizer a 60 km/h (valor acima do permitido pelo código da estrada) e um qualquer obstáculo impedir o condutor de ver que um peão já iniciou a travessia, a distancia a que o condutor vê o peão, necessária para evitar o atropelamento será:

A soma da distancia percorrida durante o tempo de reação com a distancia de travagem (esta é igual ao quadrado da velocidade a dividir por duas vezes a desaceleração de travagem, suposta igual a 4 m/s2).

Para 60 km/h será:
                 
16,7 + (16,7elev.2/2x4) = 50 m

Isto é, a 60 km/h, o condutor precisa de avistar o peão na passadeira a 50 m de distancia.
Se não, atropela-o.

Mais seguro será considerar um tempo de reação de 2 segundos. O que aumenta a distancia de avistamento para 67 m.

De quanto será uma distancia razoável de avistamento? O correspondente ao comprimento de 6 automóveis (24 m)?

Então a equação será :

2xV + (Velev.2/8) = 24            donde se tira       V=8m/s ou 30 km/h

Deveria ser esta a velocidade máxima permitida para um automóvel cruzar uma passadeira.
Em vez disso, o código da estrada determina que o automóvel deverá abrandar à aproximação da passadeira de modo a poder parar se um peão já tiver iniciado a travessia.
Isto é, o código pede ao condutor que faça aqueles cálculos, que, embora não complexos, levam mais tempo a executar do que a percorrer a distancia até atropelar o peão.

Entretanto, atrás do automóvel que vai atropelar o peão vem outro cujo condutor acha que a estrada está livre, embora não disponha da informação suficiente para ter essa opinião. E vai bater-lhe por trás, se o primeiro automóvel travar a fundo, e invocará o artigo do código da estrada que condena travagens bruscas não justificadas (porque deveria ter abrandado antes).

Então, concluamos:

1) o código da estrada, embora esteja correto quando fala no abrandamento à aproximação da passadeira, deveria fixar uma velocidade máxima autorizada: 30 km/h;
2) o código da estrada, embora esteja correto quando condena as travagens bruscas, deveria voltar ao conceito antigo, quando atribuía as culpas a quem batesse por trás, porque a velocidade é excessiva sempre que não se consegue parar no espaço livre visível à frente do veículo.

Assunto e argumentação aborrecidos e contrariando os ideais de velocidade da vida provincianamente chamada moderna, não é?

Será, mas será também por isso que a sinistralidade continua.

Como diz a campanha,
                                            “PELA VIDA, TRAVE”



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quarta-feira, 21 de abril de 2010

Ruínas, um filme documentário de Manuel Mozos





http://aeiou.expresso.pt/ruinas-o-filme-sobre-um-pais-a-desaparecer=f574028



Tenho-me esquecido de vos informar sobre este filme, que por enquanto faço mais coisas na vida do que blogues, e agora o filme já deve estar por pouco tempo no King, onde se sente a passagem dos comboios da linha da cintura e do metro de Roma para o Areeiro.

Não sei se gostarão de ver, porque ver ruínas não dispõe bem, porque tem histórias, mas não tem atores a fingir o que não foram, porque não é propício a ser visto em DVD ou na televisão, antes no ritual escuro da sala de cinema (somos uma espécie de rituais, não? Como as outras, não é? e as salas escuras do cinema ainda são um ritual).
Os críticos disseram muito bem das imagens e mal dos textos. Estranho, porque achei os textos muito bons.
Mas eu sou suspeito.
Da extensa relação de ruínas ali documentadas, exibindo olimpicamente a superior capacidade dos portugueses para desprezar o património construído (citação de cor, com a devida vénia, da senhora diretora da cinemateca nacional), possivelmente corolário da sua superior incapacidade de se organizarem sem privilegiar individualismos provincianos e novos-ricos (mistura não doseada de citações esparsas de Sofia de Melo Breyner e deste escriba, pretensioso por citar assim Sofia), fazem parte duas de que estive perto.
Pode ser um jogo ir ver o filme e ver se alguma ruína nos tocou: um cemitério no Porto, o sanatório das Penhas da Saúde, as estalagens abandonadas do Gado Bravo ou perto de Peniche, a estação do caminho de ferro condenado e executado de Barca d’Alva…
De fora ficaram montões de pedras para que o filme não fosse infindável, como por exemplo o paço de Avis, o mosteiro de Seiça, a Torre de Brotas, que já fazem parte deste blogue. A fotografia que ilustra este texto também não é do filme, foi tirada perto de uma estancia de turismo florescente.
Ah! Claro, não há dinheiro para a recuperação.
Continuamos a comprar 200 milhões de euros de automóveis ligeiros por mês ,cuja compra podia ser adiada por um ou mais anos, temos em contas de off-shores, contabilizadas às claras, cerca de 16 mil milhões de euros.
Mas não há dinheiro.
De facto não pode haver, quando se importa mais de 80% dos alimentos que consumimos.
Dir-se-ia que, já havendo uma estratégia nacional para a energia, falta uma estratégia nacional para a alimentação.
Fará falta no PEC, uma taxazita sobre as transferências para as off-shores, pequenina para não assustar ninguém, ou, mais sibilinamente adamsmitista ou struggleforlifista, fará falta pressionar os “mercados “ financeiros internacionais para revalorizar as moedas dos países exportadores de alimentos para Portugal (citação libérrima do senhor economista Daniel Bessa; i,é, começávamos a comprar doses maciças dessas moedas para lhes subir o preço; comprávamos a descoberto, claro, com o dinheiro dos outros).
Assim baixávamos as importações e aumentávamos as exportações; e já podíamos dispensar as taxazitas sobre os depósitos dos temerosos e sensíveis depositantes dos off-shores…
Mas voltemos ao Ruínas. Não percam, se puderem.
Pela minha parte, impressionou-me ver o abandono da pousada da EDP no Picote, onde estive um mês, na central hidro-elétrica do Picote, entre as centrais de Miranda do Douro e de Bemposta, no tempo em que era preciso fazer estágios em empresas para se ter o “canudo”.
O texto diz a verdade histórica. Havia uma ementa para engenheiros e outra para engenheiros técnicos (na altura chamados agentes técnicos) ou técnicos qualificados; os eletricistas ou serralheiros só lá podiam ir almoçar se convidados por um engenheiro ou engenheiro técnico. O técnico qualificado de telecomunicações (era, seguia informação codificada por portadora sobreposta nas linhas aéreas de alta tensão), dado que as correntes fracas ainda eram consideradas parente pobre nesta região de intensa produção de energia, era equiparado aos eletricstas e serralheiros, mas estava sempre convidado. Havia também na pousada a Rosinha, transmontana solteirinha ainda aos 37 anos, e havia umas costeletas de vitela que se cortavam com o próprio garfo.
Agora é uma ruína.
A EDP, que como se sabe é gerida por semi-deuses, fez o que qualquer exploradora de redes faz, telecomanda as suas centrais.
Mas abandonar a pousada do Picote? Já não há turistas?
A outra ruína está mais perto de Lisboa e é apresentada como a construção inacabada de um sanatório em Cabeço de Montachique, ao lado da A8 (mais precisamente em Tocadelos, que nesta região foram deixados étimos árabes nos nomes das povoações; Montachique, por exemplo, significa o monte dos amantes); podem ver uma fotografia no Google Earth, em 38º53’46,16’’ N / 9º11’17,50’’ W.
O sanatório foi mandado construir pela sociedade dos Makavenkos, ligada a burgueses endinheirados e republicanos do fim do século XIX e princípio do século XX.
http://aeiou.expresso.pt/a-sociedade-secreta-dos-makavenkos=f561905
Dele fazia parte Grandella (o das vilas operárias, aliás para os empregados de comércio, da estrada de Benfica). Capitalismo esclarecido, que sabia que a produtividade está correlacionada fortemente com a comodidade das condições de vida (correlação esquecida com o correr dos anos por muito boa gente, quiçá não tão esclarecida).
Mas dizem as más línguas, conforme me transmitiu a minha sogra que era de Cabeço de Montachique, onde eu ia aos fins de semana primaveris e outonais durante o período pré-nupcial de acasalamento, que o sanatório não era sanatório, era um casino fora de portas, com salas para o jogo e compartimentos celulares para oferendas a Afrodite. As paredes das celas ainda lá estão.
País de ruínas, como disse Luis Vaz (citação também libérrima), “nesta apagada e vil tristeza” (citação rigorosa), surdo a tantas propostas que se vão fazendo para que a resposta à crise seja um esforço coletivo…
Não percam. Só é possível a reconstrução depois de se conhecerem as ruínas.

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segunda-feira, 19 de abril de 2010

Manuel Bandeira - Vou-me embora pra Pasargada

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Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
Lá sou amigo do rei 
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada



Não, não é ainda o discurso de despedida de quem parte para a reforma.
Se sou incómodo, ainda não foi desta vez que dei essa alegria aos incomodados.
Reproduzo o poema de Manuel Bandeira, apenas porque o ouvi hoje de manhã na Antena 2.
Devia ser mais ouvida, a Antena 2.



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PARE, ESCUTE, OLHE - Um documentário de Jorge Pelicano

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Eu pedia-vos para irem ver este documentário sobre a linha do Tua.
É verdade que defende abertamente a não construção da barragem e isso pode não ser simpático para muitos cidadãos, os quais poderão não apreciar o trabalho de engenheiros do século XIX, apesar de ser uma vergonha perder-se o património de arqueologia e o potencial turístico.
O próprio documentário mostra exemplos na Suíça de caminhos de ferro de via estreita.
Está muito bem feito e é muito bonito.
Aproveitem, vão ao novo cinema de bairro, o City Alvalade, ao lado da estação de metro de Alvalade, e revitalizem a vida de bairro em Lisboa.
É o problema de Lisboa, a desertificação. Perdeu 34% de habitantes nos últimos 30 anos.
Tal como o distrito de Bragança perdeu 34% da população nos últimos 30 anos.

Não é preciso ser sociólogo para perceber que a estratégia (ou a sua ausência) falhou, em Lisboa e em Bragança (em 1992 fechou-se a linha entre Mirandela e Bragança com o pretexto de que as ligações rodoviárias seriam suficientes e comprou-se material circulante ligeiro usado na Bósnia, cuja bitola teve de ser adaptada, para funcionar no troço restante: Mirandela-Tua). É sempre possível o abandono, a degradação. Em 1936 a viagem do Tua a Bragança (133 km) demorava 4 horas; em 1990 demorava 4 horas e meia.
Deste ponto de vista podíamos tentar abordar o problema.
Outro ponto de vista podia ser o de alguns habitantes entrevistados: que façam a barragem, mas cheguem-na para lá para ser compatibilizada com a linha, que até podia ser em túnel, como um dos habitantes explica.

Pela voz dos simples, como diz o aforismo, é apontada a estratégia correta: compatibilizar a barragem com a linha (claro, não pode chegar à cota 185, enquanto o rio está à cota100; teremos de nos contentar com menos energia produzida;  porém, se se utilizar conduta em carga até à cota 90 para evitar um muro tão alto e completarem a barragem com uma instalação eólica para bombar para a albufeira, minimizam-se as perdas), eventualmente com sacrifício da parte mais baixa, dos primeiros 5 km, até à cota 160. Que é o que diz a declaração de impacto ambiental, tirando a cota que fixa em 170 m, a qual inunda os primeiros 16 km da linha : autorização de construção da barragem condicionada ao estudo de uma alternativa à linha.

E aqui bate o ponto.
Eu andei na mesma escola em que andaram os senhores projetistas importantes da empresa importante que está autorizada a construir a barragem. E lembro-me como os colegas destinados a ter muito sucesso na sua vida profissional já faziam os projetos. Otimizando o tempo gasto com eles, porque tempo é dinheiro (nesse tempo, despachar um projeto permitia fazer outro para rapidamente se ter boa nota).
E estudar uma alternativa que salve a maior parte da linha, que permita a conservação de alguns troços, que construa túneis ou funiculares de cremalheira (há povoações à cota 300 e 400) para fugir às águas, custa muito tempo.
É mais fácil assinar uma declaração em como não é técnica-económicamente razoável construir alternativas…
E eu direi que poderá não ser economicamente razoável, mas que há soluções técnicas. Até para Abu Simbel houve. E há coisas que não têm preço. Como diz um político no filme, não pode haver só o critério económico (eu sei, há dificuldades financeiras).
Mas se não quiserem maçar-se com análises, apreciem no filme a performance artística de um antigo funcionário da CP (julgo que trabalhador da manutenção de via, que me lembro dele numa entrevista na televisão a seguir ao último acidente, a dizer que não compreendia como se deixava chegar a linha férrea a tamanha degradação, reduzindo como reduziram o quadro do pessoal afeto a essa manutenção – critérios de gestão da manutenção que tão bem conhecemos todos).
São exemplos de cinema de muito alto nível os diálogos dele com a mulher (a culpa é tua por não ter ido para o Brasil), com a jovem emigrante de férias em Ribeirinha (o teu irmão mais velho onde está? Está em França. E o teu irmão mais novo? Em França está), com um conterrâneo a descrever a queda do fogueteiro na festa de S.Lourenço (a velhota, que era nova, disse-lhe que devia ir agradecer ao santo que o salvou de uma queda de um telhado, ao fogueteiro - o que deitava os foguetes – e o fogueteiro disse: eu? Ao santo? que por causa desse f… é que eu rebolei pelo telhado e me ia partindo todo?)
Vá, vejam o filme e, como cidadãos, exijam alternativas técnicas para salvar a linha do Tua. Os turistas deixam cá divisas, vá.

http://www.youtube.com/watch?v=RX9u7AtjLxU&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=CbnR9EKqUBI&feature=related


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domingo, 18 de abril de 2010

Proposta para uma primeira medida de contra-eiafialaioculização

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A fotografia no DN mostra importantes senhores da comitiva presidencial numa paragem numa área de serviço duma auto-estrada alemã, na sua viagem Praga-Barcelona, por estrada.
Sorriem.
Afinal não é assim tão mau viajar de autocarro, como os “emigras”.
Os “emigras” que são responsáveis, como o meu professor Daniel Barbosa ensinava, juntamente com os turistas, pelo equilíbrio da balança de pagamentos.
Mas passava-se isso em 1969.
Agora há outros responsáveis pelo equilíbrio da balança, os que trabalham nas empresas que exportam, para compensar as empresas de sucesso que importam 80% do que comemos e suprimem 1,5 postos de trabalho do comércio tradicional por cada posto de trabalho criado nas grandes superfícies.
Mas voltemos aos senhores importantes.
Vão dizer que se faz bem, a viajem.
E se pensarem que de TGV viajariam 3 vezes mais depressa, então talvez tenhamos ganho mais apoio para o “up-grade” do transporte ferroviário, a alta velocidade TGV. Pode ser que os senhores jornalistas também tenham ficado convencidos.
Como às vezes se ouve dizer, a melhor maneira de se fazer um plano de transportes eficaz é obrigar os senhores ministros, os senhores secretários de estado e os senhores importantes, a ir de transporte coletivo para o trabalho.
Para ficarem mais perto da realidade.
Porque a segurança, a rapidez e o conforto de um modo de transporte são um fator de produtividade das empresas da área.
Salvo melhor opinião.
Proponho portanto, como primeira medida contra-eiafialaioculização, isto é, medida para resistirmos melhor às contigencias externas, que todos os senhores importantes da comitiva presidencial participem no plano de compatibilização da rede TGV portuguesa com a rede espanhola de TGV para 2025.



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sábado, 17 de abril de 2010

A eiafialaioculização (do nome do vulcão eiafialaiocul)

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Estamos habituados a falar da globalização.
Falamos dela quando queremos uma desculpa ou uma justificação.
Deveríamos produzir mais, mas não vale a pena porque outros, do outro lado do globo, produzem mais barato para nós.
Não é saudável, a globalização, se pensarmos assim.

Assim, ignoramos o que já David Ricardo ensinava no princípio do século XIX, que devíamos produzir mais vinho, para o vender do outro lado do globo, ou, pelo menos, para o vender a quem o fosse lá vender.
Ou repetimos à exaustão as histórias curiosas, como a do bater de asas duma borboleta na China a provocar um tornado na Europa…

Isto a propósito de uma expressão que saiu com uma grande simplicidade a uma senhora retida na Republica Checa por causa da erupção do vulcão Eiafialaiocul: “Aqui estamos, por causa de um vulcãosinho de que nunca tinha ouvido falar, na pequena Islândia”…

Talvez haja aqui alguma despreocupação de viajante, viajante pela vida, digo, porque não sabemos desde sempre que uma pequena coisa é suficiente para parar uma coisa grande? E que matar uma mulher no Afeganistão por ensinar numa escola pública é matar uma de nós? Porque não há compartimentos estanques. E que nem um vulcão nem a Islandia são pequenos?

Deixem-me pôr a hipótese de que não estávamos preparados para o que aconteceu, apesar dos vulcões existirem e produzirem erupções.
O que me deixa zangado.
Porque os técnicos de aviação já sabiam que as cinzas em suspensão param os reatores.
E eu não sabia nem mo disseram.
Nem sei o que fizeram para evitar o perigo associado.

Como técnico de transportes fico contrariado, faz-me lembrar os atropelamentos no metro sul do Tejo e ainda estamos à espera das passadeiras de peões enquanto se desculpam que não podem baixar a velocidade dos veículos (é por isso que se fazem túneis e viadutos, e foi isso que lhes foi dito, na altura do projeto…).

Querem os fabricantes de reatores dignar-se informar os cidadãos sobre o que podem colocar nos reatores como proteção contra cinzas? o que podem pôr nos injetores de combustível para que não se entupam com as cinzas? e os fabricantes de aviões como podem tentar proteger os vidros da cabina?

Não quero chamar eiafialaioculização à globalização. Quero chamar eiafialaioculização a este fenómeno de estarmos demasiado confiantes, de nos sentirmos auto-suficientes, ou pelo menos alimentados pela suficiência de outros, de não estarmos preparados para o dia em que alguém ou algo fecha a torneira e então paramos, como se o bug do ano 2000 tivesse finalmente triunfado.
Ser-se vítima da eiafialaioculização é não ter alternativas quando se foi atrás da solução mais fácil.
Durante anos o liberalismo económico triunfante exultou com o abaixamento dos preços das viagens aéreas enquanto combateu o desenvolvimento do transporte ferroviário de alta velocidade.
O liberalismo económico acha que devemos deixar o mercado funcionar (coitado do mercado, só pode funcionar em liberdade se não houver informação assimétrica, nem escassez, nem externalidades coletivas).
O liberalismo económico não viu com bons olhos o Eurotunnel (demasiados capitais públicos, via SNCF pelo meio). E é agora o Eurotunnel que serve de alternativa, não chegando para a procura.

Este é um princípio básico da técnica de transportes: quando tem de se transportar pessoas e bens entre dois pontos, nunca se assegura a ligação entre dois pontos apenas por um modo de transporte.
Devem ser previstos percursos diferentes, e não necessariamente de recurso. Isto é, uma malha de transportes.
Não esquecer, por favor, que a velocidade comercial de uma ligação aérea anda à volta de 600 km/h e de uma ligação ferroviária de alta velocidade à volta de 250 km/h.

Donde, não parece que uma viagem de 7 horas entre Lisboa e Paris, de comboio, seja assim uma coisa que ninguém vai querer fazer, como dizia o senhor fundamentalista especialista de economia mas pouco seguro em técnica de transportes, quando comparada com as 3 horas de avião.

Compare-se também a produção por passageiro, ente Lisboa e Paris, de 300 Kg de CO2 de avião e 150 Kg em comboio de alta velocidade.
Ou, se entrarmos com a reação molecular do carbono e das outras moléculas do combustível e do ar, para produzir o seu dióxido, cada passageiro consumiu, só para ir de Lisboa a Paris, 0,9 toneladas de petróleo de avião ou 0,2 toneladas de petróleo se for de TGV (é o peso do nuclear na tração elétrica em França…).
Farão os leitores o favor de perdoar as imprecisões que estes números têm devido à variabilidade das taxas de ocupação é à omissão nos cálculos de dados como os custos complementares necessários ao funcionamento dos modos de transporte.

Então, vamos lá projetar uma rede de transportes europeia como deve ser, sem fundamentalismos de liberalismo económico, cujos economistas, parafrasendo Pancho Guedes, não percebem nada de transportes.
Dirão os fundamentalistas: o vulcão vai voltar ao seu sono de décadas, e o caminho de ferro também sofre com a neve; voltemos ao espaço aéreo.
Então voltem, mais cedo ou mais tarde as redes ferroviárias vão ter de se desenvolver, e provavelmente graças aos economistas.

Talvez que tudo isto suceda porque o próprio primeiro ministro justifica a situação eiafialaioculizada “derivado a que…” .
(ver      http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=11512        )
O que me deixa perfeitamente atónito e preocupado com a forma como se fala português nos sítios onde se tomam as decisões da res publica.

Eis a questão, deixem-me parafrasear Shakespeare: não estarmos preparados enquanto não quisermos, com todas as letras, dizer que contra-eiafialaioculizar é preciso.



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terça-feira, 13 de abril de 2010

Uma coisa de encantar - o sistema multi-air

Uma coisa que me encanta nas técnicas de engenharia (e de arquitetura) , é poder fazer-se uma espécie de reconstituição do que o autor da solução pensou quando estava à procura dela. Olha-se para a solução , vê-se como funciona e imagina-se o técnico ou a técnica a imaginar hipóteses de soluções, até que foi aquela a escolhida.
Como dizia o professor Carvalho Rodrigues, é também uma espécie de sonda no tempo que nos leva até ao ato da conceção e fabrico.
É o contacto com uma pessoa desconhecida, doutro tempo.
Mas permanece vivo o seu vestígio no pequeno ressalto que sobressai do bloco do motor, para servir de apoio a uma chave de fendas e assim facilitar a retirada da tampa do motor quando é preciso substituir a junta da cabeça; ou aquele carreto que foi acrescentado à transmissão para não ter de se inverter a posição do motor do mini de 1956, quando se verificou que o protótipo tinha 3 velocidades para trás e uma para a frente.
Isto a propósito duma coisa extraordinária que se passou em 2009 na tecnologia automóvel.
O motor de explosão utilizado no automóvel é uma máquina alternativa e, como tal, de rendimento limitado. Mas as preocupações de poupança energética e a concorrência têm conduzido os fabricantes a melhorar continuamente esse rendimento, isto é, a conseguir obter, reduzindo o consumo de combustível e a cilindrada, a mesma potência do motor (potência – capacidade de aplicar uma quantidade de energia num intervalo de tempo, isto é, a taxa de variação no tempo da produção duma forma de energia).
A definição de potência é importante para as preocupações de economia de energia. Se queremos economizar energia, então, para transportar uma massa M de um ponto A para um ponto B, como a resistencia do ar aumenta com o quadrado da velocidade, deveremos aumentar o intervalo de tempo durante o qual estamos a consumir energia entre os dois pontos. Isto é, deveremos estabelecer limites de velocidade efetivos nas auto-estradas e não requerer toda a potência que o motor é capaz de fornecer.
Não é esta a perspetiva dos vendedores de automóveis, que os promovem enquanto capazes de, num intervalo curto, retirarem do combustível elevadas quantidades de energia, isto é, capazes de se deslocarem entre dois pontos dissipando uma taxa elevada de consumo de energia.
Mas não há duvida, os fabricantes estão mesmo a melhorar a eficiência energética dos seus motores.
Foi o desenvolvimento espetacular dos motores diesel (tecnologia common rail, onde o combustível é submetido a alta pressão e donde é distribuido pelos cilindros por injetores com válvulas piezo-elétricas), que são de momento os mais eficientes, ainda mais do que a tecnologia híbrida comercializada atualmente; esta só poderá ser competitiva com baterias de maior capacidade e de melhor rendimento de peso do que as que equipam os híbridos em comercialização.
E foi também esta coisa extraordinária que motiva este texto: o ter sido possível, recentemente, desenvolver a tecnologia dos motores de gasolina no sentido da eficiência energética de modo a torná-los competitivos com a tecnologia diesel.
Trata-se da tecnologia multi-air desenvolvida pela FIAT desde 2000. O curioso é a FIAT apresentar-se na sua publicidade como o fabricante de motores de menor emissão de CO2, o que é verdade também, mas omite sistematicamente este feito extraordinário: investiu na investigação (como dizem os economistas, investiu, em período de crise, a contra-ciclo) e conseguiu melhorar o rendimento do motor de explosão de gasolina – com uma cilindrada menor, obtem a mesma potência.
Parecerá que tem pudor em publicitar o seu êxito.
Quando seria positivo fazê-lo.
Estimularia as empresas a investir na investigação.
Mas chamaria a atenção para uma coisa interessantíssima: o projeto multi-air esteve parado na FIAT entre 2001 e 2005.
Porquê? Porque nesse período a FIAT esteve associada à GM e os gestores acharam que não deviam perder dinheiro com investigações para melhoria de eficiências energéticas.
Eu, que como sabem tenho tendência para ser faccioso, retiro duas conclusões:
1 – os gestores têm muita dificuldade em ver para além do curto prazo; interessar-lhes-á obter resultados em menos tempo, possivelmente porque não terão a responsabilidade da gestão a médio ou longo prazo; donde a dificuldade em ver para além do curto prazo poderá significar que não querem ver; em termos marítimos, por razões de segurança, devem evitar-se os comandantes que navegam à vista e preferir-se os comandantes que estimam as rotas de longo curso; em termos económicos, por princípio convirá associar excelentes resultados a curto prazo a: atividades económicas especulativas, ou depreciadoras de ativos, ou contrárias à concorrência;
2 – a economia funciona, muitas vezes, em sentido contrário ao da ciência; ao longo da história, desde a afirmação do método científico no século XVII, de que a criação da academia das ciências britânica é um bom exemplo quando impôs aos seus membros a obrigatoriedade de partilha da informação adquirida, tem-se sucessivamente verificado que o segredo não é a alma do negócio; o que faz avançar a sociedade técnica e científica é a difusão da informação e a necessidade do bem estar coletivo. Não as leis do mercado que condicionam os gestores das multi-nacionais. Embora os economistas sejam depois os primeiros a querer que os mercados beneficiem das conquistas do método científico. Se queremos progresso científico, temos de refrear as leis de mercado;
3 - tudo indica que vale a pena, mesmo do ponto de vista da economia, investir na investigação sobre a eficiência energética (melhor utilização dos recursos, especialmente dos não renováveis)

Mas o sistema multi-air, o que faz?
Simples (só na ideia, claro, porque a realização técnica é complicada). Com recurso a árvores de cames clássicas (falharam as tentativas de comando "by wire", i.é, só elétrico) e dispositivos eletro-hidráulicos , comanda o tempo de duração, no ciclo, da abertura das válvulas de admissão (o que anteriores sistemas da Toyota, Honda e BMW fazem) e a extensão da abertura dessas válvulas (o que mais nenhum sistema faz). Assim se elimina a borboleta do acelerador (diminuíndo as perdas de carga na admissão) e se controlam as quantidades mínimas de combustível necessárias.
Uma maravilha, quase inesperada. Pena quando os beneficiários destas conquistas da tecnologia aceleram depois nas passadeiras de peões ao mesmo tempo que cidadãos idosos tentam atravessá-las.

http://www.fptmultiair.com/flash_multiair_eng/home.htm

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Uma coisa extraordinária no meu país - o serviço educativo da Casa da Musica do Porto

Dou um grande viva e um apoiado à Casa da Musica do Porto e à sua ação interventiva junto das populações de menor capacidade económica.

Refiro-me especialmente ao serviço educativo e aos seus objetivos de integração social com o apoio da musica.

Se cultura é o que se pode fazer depois de ter satisfeitas as necessidades essenciais, também a arte pode ser utilizada para ajudar a satisfazer as necessidades essenciais.

De quem?

Por exemplo, o serviço educativo da Casa da Musica já colaborou com uma associação de surdos (não ouvem a musica mas sentem as vibrações propagadas através da estrutura do instrumento e do pavimento) , com a pediatria dum hospital, e até com os serviços prisionais, pondo presos a tocar e a cantar.

Isto ( a colaboração com a polícia e os serviços prisionais) pode contribuir efetivamente para a integração social dos presos. Por exemplo, se a droga estimula os centros de prazer a produzir dopamina, e se se arranjar um sucedâneo para isso que também produza dopamina, como a música é capaz de fazer, então podemos baixar a taxa de criminalidade com o desenvolvimento de atividades como as do serviço educativo da Casa da Musica.

Não é só no nosso país que se fazem essas experiencias em prisões.
Seria bom que o OSCOT e as secretarias gerais de segurança se abrissem a isto.

Um grande viva ao serviço educativo da Casa da Musica do Porto.

http://www.casadamusica.com/Education/default.aspx?channelID=6CD07B4A-532F-4929-90FD-2024946B3CCD

http://calhaumusical.blogs.sapo.pt/

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domingo, 11 de abril de 2010

Histórias da Carris de Lisboa

Passo os olhos por uma história da Carris e encontro motivos de admiração e de interesse.

O contrato para as linhas com tração elétrica é de 7 de Julho de 1899 e resultou de uma visita do administrador da Carris, Alfredo da Silva, em 1892, às principais cidades europeias, para recolha de informação sobre o melhor sistema de tração. O primeiro elétrico circulou em 1901.

O contrato de concessão da Carris, por 99 anos, data de 10 de Abril de 1882 e era apenas uma entre várias concessões de exploração de vias férreas concedidas pela câmara da capital, entre tração animal e tração por cabo funicular movido por máquina de vapor.

(ver em:
http://cid-95ca2795d8cd20fd.skydrive.live.com/self.aspx/Hist%c3%b3ria%20dos%20ascensores%20de%20Lisboa/historia%20ds%20ascensores.pdf                                                                                               )
Destaque para uma companhia dirigida tecnicamente pelo engenheiro francês do elevador de Santa –Justa (Raul Mesnier du Ponsard) que explorou ascensores de tração por cabo entre a Praça de Camões e a Estrela, e entre a Rua da Palma e o Largo da Graça.

Também muito curiosas as linhas de monocarril Larmanjat para Sintra e entre o Martim Moniz e o Lumiar; e o ascensor por cabo funicular entre o Largo D.João da Câmara e S.Sebastião, em 1899, pela rua de Santa Marta e Rua de S.Sebastião, que rapidamente foi substituído pelos elétricos na Avenida da Liberdade.

Viviam-se tempos de liberalismo económico, com várias companhias a utilizar os mesmos carris, o que faz lembrar agora a preocupação da Comissão Europeia em liberalizar os caminhos de ferro de modo a que vários operadores possam utilizar a mesma infra-estrutura de via.

A evolução económica e política foi no sentido da concentração pela Carris, que adquiriu sucessivamente os concorrentes. Ou estes faliram, simplesmente.
Interesses económicos e políticos àparte, existem razões de segurança que aconselham a que a mesma infraestrutura não seja partilhada.
Mas falta sensibilidade aos políticos e aos economistas para aceitarem isto. E ficam muito escandalizados quando acontecem apagões nas malhas partilhadas de distribuição de energia elétrica em alta tensão.
Faltará sensibilidade e algum conhecimento das experiencias históricas, como se as receitas liberais fossem uma grande conquista da ciência moderna.

Mas também na evolução do urbanismo em Lisboa se encontram vestígios muito interessantes de desagrado dos cidadãos.
Citação de José Rodrigues Migueis, em 1928, na Seara Nova nº 126: “Lisboa é um acampamento erguido à pressa por uma legião de construtores gananciosos, bárbaros, ignaros… guindados a orientadores da estética da capital, a ditadores da urbe nova”.

Voltando à história da Carris, mais duas anotações:
1 – O contrato de 7 de Julho de 1899 foi assinado entre a Carris e a sociedade Wernher-Beit (dois ilustres capitalistas alemães que tinham feito fortuna na África do Sul, em negócios de minas de diamantes, e que tinham a sua sede em Londres); daí a dias a sociedade Wernher-Beit transferia todas as suas obrigações para a Lisbon Electric Tramways, também de Londres. Não admira que a ligação entre alemães e ingleses fosse tão estreita; ambas as nações disputavam a África meridional, sem esquecer que o kaiser Guilherme II, o da I Grande Guerra Mundial,  imperador da grande Alemanha enquanto estes factos ocorriam, era filho da filha da rainha Vitória de Inglaterra.
2 – Embora a sociedade Lisbon Electric tenha feito um bom trabalho técnico, é uma pena assinalar que a câmara de Lisboa desde o princípio se manteve alheada das questões técnicas do transporte em Lisboa, delegando na concessionária, sem nunca ter criado uma tradição de “know-how”. Nisso contrastou, pela negativa, com outras capitais europeias.

PS - Na primeira versão deste texto, referi erradamente o nome e o parentesco do imperador da Alemanha quando começaram a circular ascensores de tração por cabo em Lisboa (1890). As refer~encias já foram corrigidas, graças à colaboração dos leitores.

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Economicómio XLVII – Imaginem





Imagine there's no Heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace

You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world

You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one


Ouvi hoje John Lennon num programa da Antena 2 (Um certo olhar) .
Uma das comentadoras das atualidades escolheu esta canção, a propósito dos ideais de união e paz, e para contrapor ao desprezo pelo bem estar das comunidades que vai por aí.
John Lennon não era um ativista político no sentido estrito (embora perseguido pela polícia política de Richard Nixon devido às suas canções anti-guerra do Vietnam).
E talvez seja esse o caminho, retomar o espírito dos anos 70 de libertação humanista.
Recordo-me que a esperança morreu quando Milton Friedman, a Goldman Sachs, o reaganismo e o tatcherismo aproveitaram uma conjuntura económica e energética favorável para impor o neo-liberalismo.
Quase dois anos depois do Lehman Bros, recordo o poema de John Lennon e leio a seguir no DN a entrevista de um dos principais banqueiros portugueses.
Não defende uma estratégia de concentração, não acusa de nada a Caixa Geral de Depósitos, formula votos de que os fundamentalistas do neo-liberalismo tenham aprendido a lição do Lehman Bros, que a economia deve ser real, não especulativa…
Será possível, o futuro?
Imaginem que “Imagine” nunca será esquecida… que será uma espécie de luta usando a não violência, apesar de Gandhi e John Lennon terem morrido assassinados.


Imagina que o paraíso não existe
É fácil, basta tentar;
Que não há inferno
E que acima de nós só o céu
Imagina toda a gente
A viver o seu dia a dia

Imagina que não há países
Não é difícil;
Que não há nada por que matar ou morrer
nem nenhuma religião, também.
Imagina todos
A viver a vida em paz

Podes dizer que sou um sonhador
Mas não sou só eu;
Espero que um dia te juntes a nós
e o mundo será aquele mundo

Imagina não haver a posse
Gostaria,  se o conseguisses;
Não haver necessidade de ganância ou fome
Antes uma fraternidade humana.
Imagina todas as pessoas
A partilhar todo o mundo.


Podes dizer que sou um sonhador
Mas não sou só eu;
Espero que um dia te juntes a nós
e o mundo viverá unido



http://www.paralerepensar.com.br/lennon.htm



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quinta-feira, 8 de abril de 2010

Diálogos de Siracusa - 3º diálogo: Teoria política

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Publius Coletius não trabalhava nesse dia. Eram as festas da Floralia, pela cidade preparavam-se os jogos e os teatros , e Publius aproveitou o dia para se refastelar à beira da praia, comentando com Caio Indivisio as últimas decisões do prefeito de Siracusa.



Publius Coletius – Não são os disparates que o prefeito decide que me chocam. Pelo menos não é o que me choca mais.
É o ar de auto-suficiência com que diz na Ágora que só o plano dele serve o bem comum e quem não concorda com ele é irresponsável e está errado. Quando o plano até nem é dele, que ele nunca foi discípulo de nenhum discípulo de Vitruvius, como foi o seu edil adjunto, que se considera a reencarnação de Vitruvius e que lhe fez o plano.
Só um grupo de discípulos dos discípulos de Vitruvius , com as mentes mais abertas, poderia ajudar a resolver os problemas de Siracusa, mergulhando bem fundo nos podres da cidade, conversando com os cidadãos, acolhendo as propostas de patrícios, de artesãos, de pescadores e militares, chamando-os à participação na Ágora.
Caio Indivisio – Estarás a ser um pouco imprudente a falar assim, tu, um funcionário da Ágora.
Publius Coletius – Talvez, mas como dizia o filósofo da relatividade, mais vale sofrer um castigo injusto do que aplicá-lo.
Caio Indivisio – É por isso que não bates nos teus escravos?
Publius Coletius – Não, não é por isso. Nisso estou de acordo com as novas religiões orientais que vão triunfar em Roma. Somos capazes de imaginar o que um escravo possa sofrer, o nosso estômago reage da mesma forma que o estômago de qualquer deles. Logo, não vejo por que havemos de andar a bater-nos uns com os outros. Quanto mais não seja para evitar as revoluções de Spartakus.
Caio Indivisio – Engraçado, passam uns séculos e quem condenar Spartakus será condenado. Veja-se o filme de Kubrik, da década de 60 do século XX. Ao invés do que acontece agora; quem recordar Spartakus dessa forma pode ser condenado. Continuas imprudente.
Publius Coletius – Exatamente como Giordano Bruno. Mas talvez o prefeito não me mande crucificar. Foi meu pupilo e sempre me falou bem. Não fazia o que eu lhe dizia, mas falava-me bem.
Caio Indivisio – Acaba por ser desanimador para os cidadãos, verem um só, o prefeito, a expor o plano que é só dele, embora seja apresentado a Jupiter como de todos os patrícios do senado.
Publius Coletius – Não podem os senadores ser todos da mesma opinião. Por isso aprendemos com os pais gregos o que é a democracia.
Caio Indivisio – Sempre ingénuo! Mais dia menos dia vamos ter de ouvir as opiniões das estouvadas das mulheres, da plebe, e dos criminosos.
Publius Coletius – Que os deuses te sosseguem. O que os deuses fizeram foi pôr a correr uma história que não pode parar. A democracia tem de ser para todos. Por isso não pode haver escravos, mas para os criminosos já foi inventada uma coisa que se chama direito romano, e que não vale a pena mudar.
A democracia só pode ser praticada por democratas, e os democratas têm de se defender dos criminosos. Aliás, a melhor maneira de lidar com o crime é a prevenção, é preparar os precetores, os mesmos, para os filhos dos patrícios e do povo, é organizar o trabalho para os patrícios e para o povo, é pôr tudo o que os filósofos foram capazes de produzir ao serviço de todos; in caveo malum stat virtus (a virtude está em evitar o mal) , não está no remédio depois do mal feito.
Caio Indivisio – O sol de Siracusa é muito forte e a tua cabeça já ostenta algumas calvas. Vem proteger-te à sombra destas videiras.
Publius Coletius – Meu jovem amigo. Se não fosses irreverente não eras meu amigo. Mas como és meu amigo vais ter de ouvir o que eu tenho a dizer mais do prefeito. E é essa a minha teoria política.
O prefeito consegue dominar um grupo pequeno de seguidores.
Cada um destes seguidores tem também um grupo, agora menos restrito, de seguidores. Ninguém dos pequenos grupos ousa questionar as opiniões do prefeito.
Ninguém nos grupos maiores ousa questionar a opinião do prefeito ou o seu seguidor direto porque é o prefeito e dele dependem os centuriões, porque quem questiona o centurião está a questionar César.
O critério de escolha de quem chefia os pequenos grupos é o de quem tem loquacidade para convencer os outros da aparência do que diz ou faz. Da aparência, não do que diz ou faz, não do que é capaz de fazer ou de compreender. E de cadeia em cadeia, de cascata em cascata, o prefeito domina toda a cidade e os campos à sua volta que a abastecem, e o comércio marítimo que nos traz o que precisamos.
As coortes dos centuriões devem, pelo decreto imperial, defender os proprietários dos latifúndios e os donos das minas, dos barcos e do comércio. Os donos dos escravos da construção e os grandes grupos de artesãos. E devem também assegurar que o pão e o circo cheguem ao povo. Assim garantem a continuação do poder do prefeito.
Eis a minha teoria política.
E tudo isto é sustentado por nós, os patrícios, e pelo povo.
Caio Indivisio – Eu também sustento isso? Eu também colaboro nisso?
Publius Coletius – Tu quoque , amicus mei (tu também, meu amigo). Não pagas os teus impostos? Não votas na Ágora?
Caio Indivisio – Tu dico is (tu o dizes)
Publius Coletius – Então, gozemos, calmamente, o sol de Siracusa, e vamos logo ao entardecer a Taormina fazer umas oferendas à deusa Flora, que a Primavera e as suas flores estão uma delícia e as colheitas são propícias; tudo oferendas dos deuses enquanto não se lembram de nos castigar. Deixa os escravos na vila; conduzo eu a carroça.


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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Novamente o nó de Alcântara - necessidade de visão integrada




Lamentando aborrecer os leitores e pedindo-lhes desculpa por isso, volto ao assunto do nó, diria “cego”, de Alcântara, transcrevendo nova carta para o senhor Presidente da CML.




Exmo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa



Peço desculpa de voltar ao assunto, e de forma repetitiva, mas a importância e a gravidade das consequências de decisões eventualmente desligadas de um contexto global (fora de uma perspetiva holística, como se diz nas faculdades), bem como a convicção de que a Câmara tem técnicos para se debruçar sobre as questões técnicas que os cidadãos colocam ao seu município, levam-me a voltar ao tema do nó de Alcântara, para o que chamo a atenção dos referidos técnicos para o seguinte, tendo, para simplificar, destacado 3 sugestões:



1 - a solução da REFER para o desnivelamento das ligações ferroviárias em Alcantara, obrigando à construção de túneis e de uma estação subterrânea, tem graves inconvenientes devido às características geológicas e hidráulicas da zona (zona de aterros e de foz de uma ribeira entubada); este facto, só por si (e considerando o precedente da reanálise da localização do novo aeroporto como exemplo de busca de uma solução melhor do que a aprovada inicialmente), mereceria estudo de melhor solução

- sugere-se, caso se mantenham o terminal de contentores em Alcantara e o projeto dos desnivelamentos , a criação de um plano de nível a 6m de altura em toda a zona de intervenção para redução dos custos e dos riscos de construção de infraestruturas subterrâneas;

2 - a localização do porto de contentores em Alcantara não será também a melhor solução, conforme mostra o plano de expansão do porto de Lisboa dos anos noventa, que previa a construção faseada de um porto de contentores na Trafaria/Golada; a utilização de Alcantara como terminal de cruzeiros será preferível do ponto de vista de urbanismo e de exploração turística; dado o elevado custo da ligação ferroviária desnivelada em Alcantara, a existência de ligação ferroviária desnivelada em Santa Apolónia/Poço do Bispo cujo terminal de contentores dispõe de área razoável (um estudo integrado mais cuidadoso poderia recomendar a construção da terceira travessia do Tejo mais a norte, Beato –Montijo e não Chelas-Barreiro, mas a localização atualmente prevista não inviabiliza a utilização do terminal Santa Apolónia-Poço do Bispo) , o não crescimento do tráfico de contentores e a existência do porto de Sines para acolher os porta-contentores de maior calado,

- sugere-se que, enquanto se não construir faseadamente o porto na Trafaria/Golada, se mantenha o terminal de contentores em Santa Apolónia/Poço do Bispo;

3 - a zona de intervenção de Alcantara é extremamente delicada do ponto de vista hidráulico, conforme já mostrado no estudo que propõe 5 bacias de retenção contra as inundações no Vale de Alcantara; no entanto, dada a proximidade do rio e da barra, deverá ser estudada , por força da lei da água 58/2005, a avaliação das respetivas zonas inundáveis, incluindo os efeitos de cheias, marés e maremotos, e debatidas publicamente as conclusões; neste sentido, a localização do porto de contentores na Trafaria/Golada, com o fecho da Golada, constituiria uma barreira contra a onda gerada num abalo sísmico originado nas falhas entre o banco de Gorringe e o cabo de S.Vicente (além de diminuir o assoreamento da barra do Tejo e a perda de areia da Costa daCaparica); julga-se de aprofundar os estudos do maremoto de 1755 que justifiquem o comportamento das diferentes áreas ribeirinhas (por exemplo, a zona dos Jerónimos não sofreu os efeitos do maremoto) ; nesta perspetiva, coloca-se a hipótese da barra ter permitido a entrada da onda com origem no abalo sísmico das falhas Gorringe-S.Vicente, que seguidamente terá sido refletida e defletida pela baía de Oeiras/Pedrouços e pela margem norte de Almada, na direção do Terreiro do Paço; a confirmar-se a credibilidade desta hipótese (ver esquema anexo)

- sugere-se que o fecho da Golada seja considerado ação prioritária para reduzir os riscos de maremoto, independentemente da construção do porto de contentores Trafaria/Golada





Com os melhores cumprimentos

F.Santos e Silva

Munícipe ID 231 131

domingo, 4 de abril de 2010

Carta ao senhor presidente da CML a propósito do desnivelamento das ligações ferroviárias no nó de Alcantara

Até porque este blogue se interessa por problemas de transportes, trascrevo carta enviada ao senhor presidente da Câmara Municipal de Lisboa, sobre a problemática dos desnivelamentos das ligações ferroviárias em Alcantara, a propósito da recente emissão pelo Ministério do Ambiente da Declaração de impacto ambiental "condicionada favorável".




Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa


Tendo sido emitida a declaração de impacto ambiental para o desnivelamento da ligação entre a linha de Cascais, o terminal de contentores de Alcantara e a linha de cintura, e considerando que qualquer intervenção na zona deverá poupar o mais possível o caneiro de Alcântara, mas também minimizar o impacto à superfície, como refere a declaração, pedia-lhe para não considerar uma das premissas do estudo de desnivelamento, que é a de juntar a Poente das docas as vias de passageiros da linha de Cascais e as de mercadorias do terminal de contentores.

Penitencio-me de só agora ter lido a memória descritiva da REFER relativa ao desnivelamento das ligações, mas gostaria de propor as seguintes hipóteses:

Hipótese 1: deixemos o projeto das vias de passageiros como está, de preferencia segundo a alternativa D, que permite, em 2 vias, chegar a Campolide; mas, muito importante, liguemos em túnel em via única (por ser mais económico) o feixe do terminal de contentores à estação de Alcântara-Terra.

Vantagens: não se interfere com o caneiro de Alcântara, uma vez que tanto as vias de passageiros (a Poente do caneiro), como a via de mercadorias (a Nascente do caneiro) seguem paralelamente, encontrando-se apenas a norte do túnel existente de Alcântara.
Não se interfere à superfície com os armazéns referidos na declaração de impacto ambiental.

Inconvenientes: algumas interferências com as condutas da Simtejo. Necessidade de compatibilizar os traçados com eventuais prolongamentos das linhas amarela e vermelha do metro, quer para Alcântara (desejavelmente em viaduto), quer para Ajuda/Algés (desejavelmente com correspondência em Alvito).
Os custos do túnel em via única para as mercadorias são compensados com a economia dos custos do feixe de expedição das mercadorias (em túnel) e do impacto da ligação à superfície do terminal de contentores ao feixe de expedição




Hipótese 2: Idêntica solução à hipótese 1 para a via de mercadorias. Mas realizando a ligação de passageiros entre a linha de Cascais e a de cintura sempre a Nascente do caneiro, pela margem esquerda, em túnel de via dupla, aproveitando a estação existente de Alcântara-Mar. A reunião entre a via de mercadorias e as de passageiros processar-se-ia na estação de Alcântara-Terra, antes do túnel existente (necessidade de mais um túnel de via única para passageiros)

Vantagens: Dispensa a construção da estação subterrânea prevista, muito dispendiosa por exigir 2 vias e cais central e túneis contíguos; dispensa a construção do viaduto da alternativa D, junto do viaduto da linha da ponte; permite dispor dos terrenos previstos para as vias de ligação e de expedição a Po.

Inconvenientes: algumas interferências com as condutas da Simtejo. Necessidade de compatibilizar os traçados com eventuais prolongamentos das linhas amarela e vermelha do metro, quer para Alcântara (desejavelmente em viaduto), quer para Ajuda/Algés (desejavelmente com correspondência em Alvito); necessidade de duplicação do túnel existente; necessidade de rebaixamento parcial da linha de Cascais, em cerca de 200 m à saída da estação de Alcântara-Mar para Na e eventual necessidade de alterar o perfil da Av.24 de Julho (possibilidade de rebaixamento da própria estação de Âlcantara-Mar de modo a permitir a curva de ligação à estação de Alcântara-Terra com raio maior do que 200 m, embora exigindo o reforço do caneiro, ou de deslocação para Poente da estação de Alcântara-Mar).

Junto dois desenhos esquemáticos com as duas hipóteses.

Parecerá petulante da minha parte defender uma solução que os técnicos da REFER não terão valorizado. Admito porém que, no seguimento de anteriores planos diretores, tivesse sido imposto aos projetistas o não uso da margem esquerda da ribeira/caneiro de Alcântara, possivelmente reservada a uma linha enterrada de metro.
No entanto, as vantagens de fazer a ligação da linha de Cascais e do terminal de contentores pela margem esquerda parecem relevantes, podendo a linha de metro vir a ser realizada em viaduto.

Gostaria ainda de chamar a atenção para que dificilmente poderá haver soluções perfeitas para o nó de Alcântara, dada a sua complexidade (a necessidade de compatibilizar os traçados ferroviários, de metro, dos elétricos de superfície, e rodoviário nunca permitirá o êxito de uma solução parcial; eventualmente, para minimizar as obras subterrâneas, a melhor solução geotécnica seria criar em toda a zona do caneiro e margem esquerda, entre o largo de Alcântara e a Av.Brasilia, todo um plano a uma cota superior à da superfície da ordem de 6 metros para assegurar todos os cruzamentos) , diversidade de disciplinas técnicas envolvidas (destaque para a geotecnia e a hidráulica, incluindo as problemáticas da melhor localização para o porto de contentores e da proteção contra maremotos) e os elevados custos necessários para as melhores soluções.

Por esta razão, as próprias hipóteses que proponho também não são a melhor solução, e parecerá que deverá ser estudado um plano a longo prazo, de execução faseada, e desenvolvido com amplo debate público.




Com os melhores cumprimentos



Fernando Santos e Silva



Ver os desenhos esquemáticos propostos, a memória descritiva da REFER, o estudo de impacto ambiental da REFER e a declaração de impacto ambiental em:


http://cid-95ca2795d8cd20fd.skydrive.live.com/browse.aspx/Alcantara%20Desnivelamentos%20ABR2010



Hipótese 1 – Ligação de passageiros da linha de Cascais como na alternativa D (viaduto sem interferir com o caneiro; junção à linha existente a norte do túnel de Alcântara;
Ligação de mercadorias pela margem esquerda do caneiro sem interferência com ele; junção à linha existente na estação existente de Alcântara Terra


Hipótese 2 – Ligações de mercadorias e de passageiros exclusivamente pela margem esquerda (a Na do caneiro); utilização da estação existente de Alcântara-Terra ou sua deslocação para Po para aumentar o raio da curva para a estação de Alcântara-Terra

sábado, 3 de abril de 2010

Economicómio XLVI – os implantes mamários

O caso dos implantes que rebentam é grave, até porque muitos implantes são feitos na sequencia de mastectomias.
Mas aqui só queria chamar a atenção para duas questões económicas:
1 – o critério do menor preço não devia continuar a ser seguido nas compras públicas; neste caso comprovou-se a menor qualidade associada ao menor preço;
2 – em entrevista descontraída, um senhor cirurgião estimou:
- cada intervenção que faz, em 6.000 euros
- o custo dos dispositivos em 900 euros
- o número de intervenções por mês em 10
Poderá assim estimar-se, admitindo que as despesas com a sala de operações e com o restante pessoal sejam de 50%, que os honorários do senhor cirurgião são, antes de impostos, cerca de (6.000-900) x 0,5 x 10 = 25.100 euros por mês.
E com impostos, 15.000 euros por mês.
Com o devido respeito pelas capacidades de cada um, que não são todas iguais, não me parece que as ideias de Adam Smith sobre o interesse egoísta a beneficiar a comunidade estejam muito certas.
Antes confesso o meu maior respeito pelo descobridor da vacina contra a poliomielite, Jonas Edward Salk (“a quem pertence a minha vacina? ao povo; não pode patentear-se o sol”; ver em http://en.wikipedia.org/wiki/Jonas_Salk ) . Nunca reivindicou patente que fosse. Chegava ao fim do mês e recebia o seu salário no laboratório da universidade de Pittsburg, onde trabalhava. E passava-se isso nos USA, o país das oportunidades.
Os médicos também não são todos iguais.

Economicómio XLV – uma situação explosiva.7



Penso que temos aqui mais um exemplo da situação explosiva em que parece que laboramos.
Com a devida vénia ao DN, reproduzo o gráfico com a evolução negativa das empresas portuguesas desde 1999:
Um declínio do investimento anual de 15,1 para 10,4% do PIB.
Um declínio dos lucros (antes de impostos) de 12,7% para 6,6% do PIB.
Aparentemente, caminhamos alegremente para uma maior dependência do estrangeiro.
Dir-se-á que as empresas portuguesas vendem menos porque as empresas estrangeiras põem cá os produtos mais baratos.
Mas haverá alguma lei internacional que proíba exigir ao importador um certificado por uma firma independente do nível de preços do mesmo produto praticado no país de origem (claro que as medidas anti-dumping são legais).
Humildemente me parece a mim que, considerando a fórmula do PIB (vejam na situação explosiva.4 , em:
http://fcsseratostenes.blogspot.com/2010/01/economicomio-xli-situacao-explosiva-4.html):

PIB = consumo dos particulares + investimento produtivo + despesa pública +
exportações – importações

Deveríamos:
- os particulares, conter-se na compra de produtos estrangeiros (se os nacionais são mais caros, isso significaria contentar-se com menos quantidade; se não há nacionais, aumentar o período de aquisição)
- investir (as empresas privadas e o estado)
- aumentar a produção para exportação

Mas não parece ser o caminho do PEC, que parece ser o do congelamento…

Aguardemos a evolução.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Um triunfo do bom senso - 2

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Devo um esclarecimento aos meus (poucos) leitores.
O dia 1 de Abril terminou e tenho de os informar de que a China não vai mudar o sentido de circulação, na tal manifestação de bom senso.
Era uma mentira de 1º de Abril.
Também não era original, já foi utilizada, mas em sentido contrário, por jornais do UK, anunciando a passagem para a circulação pela direita.
Com uma pequena subtileza, no período de adaptação, os autocarros e os táxis circulariam já pela direita e os automóveis particulares pela esquerda.
A brincar, a brincar, se reconstitui a situação no fim do século XVIII, com os aristocratas a circular pela esquerda (porque os cavalos se montam pela direita e do lado exterior à estrada) e a arraia miúda a circular pela direita para não haver misturas. A revolução francesa e Napoleão encarregaram-se de fixar o assunto.
Foi pena, por causa das rotundas.
Terá sido uma deficiência de interpretação topológica. Se queriam circular pela direita, deveriam ter alterado a regra da prioridade: deveria ter passado para a esquerda.



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Diálogos de Siracusa. 2º diálogo – Aristarco tinha razão, rodamos sobre nós próprios

















Nascer da lua sobre o mar de Siracusa                O mar de Siracusa com apanhadores de conquilhas




Diálogos de Siracusa
Tema e variações sobre ficções mais ou menos históricas
Os textos sob esta rubrica são uma adaptação anacrónica e discrónica de um papiro encontrado recentemente perto de Taormina, nas escavações de uma vila romana cuja presença insuspeita até agora se ocultava sob uma camada de 2 metros de terra, arrastada pelos ventos do Mediterraneo, e de cinzas de uma erupção do Etna, com lava a escorrer pelas ribeiras até ao mar, no século V DC, poucos anos depois de mais um maremoto em Olissipo, na Ibéria.
Os testes do carbono datam o papiro do século IV DC, parecendo ser uma cópia de cópias sucessivas de um texto escrito em Siracusa, pouco tempo depois da tomada da cidade pelos soldados do general romano Marcelo.
Tema:
O soldado de Marcelo e Arquimedes: cada um com a sua linguagem; duas linguagens incompatíveis, porque reproduzem mundos diferentes, e porque o soldado e Arquimedes nunca existiram.
Existiram sim as suas sombras, como explicou Pitágoras, e foram as suas sombras que vimos refletidas sobre o fundo da caverna em que vivemos.
E, pior ainda do que pensou Pitágoras, nem as sombras que vemos existem. O que existe é uma sucessão de preenchimentos de vazios que o nosso cérebro executa, decidindo, arbitrariamente, que movimentos as sombras fazem entre os breves instantes em que se insinuam mais próximas da realidade, e enganando-nos com o resultado do seu trabalho.
2º diálogo – Aristarco tinha razão, rodamos sobre nós próprios

Publius Coletius desceu a colina vindo do templo onde a vestal que sacrificava à deusa Íris lhe tinha concedido aqueles momentos de que ele tanto gostava, quando o sol nascia. Era muito cedo e ele gostava depois de se atardar na praia a contemplar o sol ainda baixo. Caio Indivisio regressava da pesca, aproveitando a calma noturna dos ventos, que de dia descem da montanha com violencia.
Caio Indivisio – Amicus Publius, visto deste lado, ao sol da manhã, o teu rosto está cheio de felicidade
Publius Coletius – Sim, é a vestal que me deixa assim. Como sabes, é a religião que dá força à humanidade.
Caio Indivisio – Tens consciência de que corres alguns riscos com essas conversas com a vestal? Se deitas abaixo os seus muros de proteção?
Publius Coletius – Mas eu gosto de conversar com ela. E nunca faremos nada que os deuses não tenham já feito.
Caio Indivisio – Está bem, está bem. Ajuda-me a levar o peixe para casa. Enquanto caminhamos conversamos.
Publius Coletius – Vamos então. Verifico que tens com que alimentar os teus escravos por uma semana.
Caio Indivisio – É necessário. A força da nossa economia assenta nos escravos. Bom, nos escravos e nos soldados que nos garantem a conquista das terras do trigo para o pão. Temos de repor a força de trabalho dos escravos depois de a esgotarem com o esforço físico
Publius Coletius – E de pagar aos soldados. Que também nos garantem a posse das terras das minas de metal para as nossas armas.
Melhor seria que seguíssemos os conselhos de Arquimedes e de Heron de Alexandria e aproveitássemos a força do vapor  (  http://pt.wikipedia.org/wiki/Eol%C3%ADpila  ).
Caio Indivisio – Como assim?
Publius Coletius – Por exemplo, o parafuso de Arquimedes
Caio Indivisio – Ora, bastam dois escravos e ele puxa a água que for necessária para a irrigação à altura suficiente
Publius Coletius – Pois, mas uma panela de Heron faria o mesmo com um pouco de lenha. E mais, esse parafuso, se aplicado a uma trirreme como se fosse o seu esporão, ou à popa, dispensaria os escravos remadores.
Caio Indivisio – À mesma tens de ter escravos para apanhar e acender a lenha.
Publius Coletius – Se te desse ouvidos nunca John Fitch e Robert Fulton, discípulos dos discípulos dos discípulos de Arquimeses, teriam posto a funcionar as suas trirremes sem remadores e com parafusos (hélices), do outro lado das colunas de Hércules e da Atlântida.
Caio Indivisio - Chegamos sempre ao mesmo tema de discussão. Queres fazer andar a história mais depressa. Queres repartir os benefícios do trabalho que pertence aos patrícios por todos. Eu quero respeitar as tradições dos deuses e dos antepassados. Quero dar aos patrícios a justa paga dos sestércios que investiram.
Publius Coletius – Recorda-te que é isso mesmo que eu quero, mostrar bem que a mesma realidade tem muitas e variadas faces, e que dois homens não conseguem pensar da mesma forma sobre uma realidade. Tomei o exemplo de Arquimedes e do soldado de Marcelo para mostrar que cada um fala a sua linguagem e assim não é possível entendermo-nos. Aliás a essência da realidade é a confusão, ninguém pode dizer que isto é assim, ou isto está aqui agora, ou o que é que é isto.
Caio Indivisio – Tal como diz o princípio da incerteza de Heisenberg.
Publius Coletius –Exatamente, se acreditamos na discronia, que aquilo que pensamos que resolve todos os problemas do mundo, mas de que daí a 5 átimos já não nos lembramos de nada, que é o pensamento do sol e de Zeus, que é a dispersão do que se reflete dos átomos de luz nos acontecimentos de hoje ou do futuro, e que podemos sempre tentar reconstituir.
Caio Indivisio – Estás um pouco hermético
Publius Coletius – Sim, mas também pode ser simples: era Aristarco que tinha razão. Rodamos sobre nós próprios e rodamos também em torno do Sol. Não há nada no mundo de fixo, nem de bem definido, nem de claro… Foi preciso esperar por Copérnico para convencer a opinião da plebe e dos patrícios.
Caio Indivisio – Lá está, os precetores dos filhos dos patrícios mudam o mundo.
Publius Coletius – Não deixes de estudar Aristarco. Olha, antes de Copérnico, já Hipatia de Alexandria lhe tinha dado razão. E já que estamos em discronia, não percas o filme Ágora, com a Rachel Weisz. Para além de explicar a visão de Aristarco, também explica como foi possível à sociedade religiosa dos nazarenos tomar o poder em Alexandria, o bispo Cirilo por um lado a manipular o nosso prefeito, e os monges guerreiros pelo outro a impor a força à plebe. Devia ter sido premiado, o filme.
Caio Indivisio – Estamos a chegar .
De facto, os dois já estavam junto do peristrilo da entrada monumental da vila de Caio Indivisio, dono de uma centúria de escravos e vários meios de produção, desde terras de vinha e olival a barcos de pesca e oficinas de ferraria e carpintaria. Um exemplo de sucesso fulgurante das ideias da economia liberal na colónia de Siracusa. Estava agora a montar uma hospedaria junto do templo de Taormina, para acolher os peregrinos e diversificar os seus empreeendimentos. Patrício de nascimento, isento do serviço militar devido aos contratos de fornecimento de alimentos para a tropa, beneficiário das influências dos seus pares patrícios.
Que contraste com o também patrício Publius Coletius, humilde funcionário da Ágora de Siracusa, herdeiro de algum património da família, aliás não rentável, ou não rendível, como dizem alguns gramáticos, e que vive exclusivamente do seu vencimento, sem querer ganhar dinheiro com o que poderiam ser as suas lições e as suas recomendações aos patrícios e seus filhos.
Caio Indivisio – E se ficasses para almoçar?
Publius Coletius – Amicus Caio, primeiro não avisaste a tua patrícia Porcia Ercília de que terias um convidado. E depois, embora os funcionários públicos de Siracusa tenham fama de preferirem as delícias do sol ao trabalho, a verdade é que me espera trabalho na Ágora, que é para onde vou agora, com alguma mágoa minha porque preferiria continuar a conversa.
Caio Indivisio - Toma então este saco de conquilhas que um escravo apanhou enquanto eu estava no mar. Frita-as em óleo de oliva com rodelas de tribola.
Publius Coletius – Assim seja, amicus mei. Que os deuses continuem contigo.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Um triunfo do bom senso


A notícia deve ter caído como uma bomba no inefável Diretorate dos Transportes da UE.
O cidadão inglês que assessora o Diretor Geral deve ter sentido uma grande vontade de rir e terá sugerido displicentemente nomear uma comissão de peritos para avaliar a questão.
A China anunciou que no início do próximo ano chinês, cerca de 7 de Fevereiro de 2011, a circulação automóvel passará a fazer-se pela esquerda em todo o território chinês, uniformizando assim o código da estrada relativamente ao que já acontecia em Macau (ver a fotografia dos acessos, que terão de ser mudados, à ponte do Lotus, que liga a China a Macau/Coloane) e em Hong Kong. Decorrerá até lá, em todo o território, o período de formação e de adaptação pública à ideia (uma vez que não poderá haver sobreposição das duas circulações).
A percentagem da população mundial que circula pela esquerda passará assim dos 33% atuais para cerca de 50%.
O Ministro dos Transportes chinês justificou a decisão com a regra da prioridade à direita, de carater universal, aplicada às rotundas, apelando à ONU para que todos os países, nomeadamente os USA e a UE, aderissem à circulação pela esquerda, e com a uniformização no Pacífico Ocidental. O apelo é extensível às convenções marítimas, em que as regras da prioridade e a circulação pela direita são universais, mas em que as cores das balizas de aproximação de um porto são diferentes na UE (o navio que entra deve dar o bombordo à luz vermelha) e nos USA (o navio que entra deve dar o estibordo à luz vermelha).
Efetivamente, a regra da prioridade à direita cria, nos países de circulação rodoviária pela direita, uma grave situação: nas rotundas, onde a prioridade deve ser dos veículos que lá se encontrem, é necessário instalar sinais de perda de prioridade em todas as entradas na rotunda; se um dos sinais falhar ou se o condutor se confundir por estar habituado a ceder a passagem a quem vem da direita e não da esquerda, pode ter-se uma situação de perigo. Igualmente nos acessos secundários em entroncamentos, circulando pela esquerda já se sabe que a primeira via de rodagem da via principal tem sempre prioridade, o que não acontece circulando pela direita.
Como curiosidade, recordo que o primeiro país a legislar sobre o sentido da circulação foi a Inglaterra, através de uma lei de 1756, confirmada em 1773 pelo General Highways Act. No entanto, os vestígios de estradas romanas de circulação dupla indiciam que a circulação se fazia pela esquerda (mão direita mais preparada para um mau encontro, possivelmente).
Todos os países de colonização inglesa circulam agora pela esquerda, à exceção dos USA e Canadá. A razão disso, comum com o início no século XVIII da circulação pela direita em França, na Dinamarca e na Russia, foi a rápida expansão dos transportes de mercadorias e o crescimento da produção agrícola, antes do aparecimento do caminho de ferro. Os carroções tinham de ser puxados por mais de uma parelha de cavalos e assim era difícil ao condutor, se sentado no cavalo da esquerda, controlar nos cruzamentos o lado direito dos cavalos e dos carroções. Sentava-se num cavalo para não roubar espaço de carga e no da esquerda porque é pela esquerda que se montam os cavalos . Como em Inglaterra as carroças eram mais pequenas, o condutor sentava-se num banco chegado à direita para poder controlar os cruzamentos, continuando a subir para o banco pelo lado esquerdo da estrada, protegido do tráfego em sentido contrário e respeitando o lado correto de montada dos cavalos (válido para cavaleiros solitários).
A decisão da China não é virgem. Já se verificou a mudança da circulação da direita para a esquerda em Timor Leste (em 1975), em Okinawa (1978 – não esquecer que no Japão sempre se conduziu pela esquerda), e na Samoa (2009).
Refiro ainda que a circulação em Portugal se fez pela esquerda até 1928, ano em que, mais uma vez seguindo o exemplo da região de Madrid, passou para a direita (o mesmo aconteceu na Suécia em 1967). Foi, em Portugal, mais uma das sequelas do regime saído do 28 de Maio de 1926.
Nos caminhos de ferro, tirando a alta velocidade, a circulação faz-se maioritariamente pela esquerda.
Sauda-se assim a decisão chinesa.

Para mais informação sobre a história dos sentidos de circulação, ver em    http://en.wikipedia.org/wiki/Right-_and_left-hand_traffic 


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Com tema - o sem abrigo

As fotografias representam a praça principal da Manta Rota.
Num dos lados da praça existe um banco corrido com uma cobertura a todo o comprimento.
Vê-se na segunda fotografia, e o tema que me interessava não o quis fotografar, e era de noite, não de dia, que foi quando tirei as fotografias.
O tema é um sem abrigo, que prefere dormir perto do mar, com mais um cobertor, para poder sentir o sol que nasce.
É o mais importante que pede.
Acho triste, e não sei resolver o problema.
Deste sem abrigo e de todos os sem abrigo dos países desenvolvidos e não desenvolvidos.