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O meu amigo estava com a expressão dura do costume. Mas isso não o impedia de fitar meditativo cada uma das alcaparras frescas que levava à boca, retirando-a da salada mediterrânica e segurando-a pelo pedúnculo.
- Repara como a forma das alcaparras frescas se parece com a duma gota de água ou com uma semi-ampulheta. Isto vem a propósito. O tempo da ampulheta chegou ao fim. A areia escoou-se como o tempo e a paciência.
- Lá estás tu – obtemperei eu, mais fixado na maionese com cubos de queijo e fiambre e cerejas cristalizadas – que foi agora?
- Foi que está tomada a decisão, vou meter os papeis da reforma. Não quero saber dos discursos balofos dos políticos. Estou farto de os ouvir dizer que cada vez se morre mais tarde e ver 10% dos colegas do meu curso a já não existirem. Estou farto de ouvir os políticos e os economistas a dizer que cada vez há menos ativos a sustentar os reformados. Parece que não quiseram investir os descontos que me retiveram em coisas que dessem rendimento agora, para não estar a depender dos tais ativos. Mas não é por isso.
- É então por…?
- … porque no meu tempo não era assim. No meu tempo havia conceitos estruturantes da nossa empresa, livre de vícios de outras empresas.
Agora sou apodado de antiquado, avesso à inovação e perdulário porque não adiro à prevalência do “marketing” sobre o serviço efetivamente prestado.
O que me choca é a distancia ao terreno estar a conviver com a ligeireza dos conceitos.
Não me interessa saber que os clientes, antigamente chamavam-se passageiros…
- … era, antigamente tinham esse nome.
… andem com um índice de satisfação muito bom, quando o que me interessava era atrair os que não se servem destge modo de transporte e preferem o carrinho.
- Já vi que continuas mal disposto
- E depois é a institucionalização deste conceito de decidir com dados insuficientes que me põe neste estado (em Portugal, é raro quando se apresentam estatísticas para fundamentar uma decisão a quantidade de dados dessas estatísticas ser suficiente para fundamentar uma decisão, como se viu recentemente no debate sobre o estado da nação com os indicadores de pobreza, de recolha tão pouco confiável no terreno da realidade).
A nossa empresa vai ser mais um caso do provérbio chinês que define a utilidade de uma coisa.
A nossa empresa é como os eucaliptos.
São úteis a terceiros.
No caso dos eucaliptos pequenos, para fazer poleiros.
No caso dos eucaliptos médios, para fazer peças de mobília.
No caso dos eucaliptos grandes, para fazer mastros e postes.
Em todos os casos, para fazer pasta de papel.
Nunca poderemos então ver florestas de grandes eucaliptos.
É como as lulas, não as deixam crescer porque as pescam.
Assim não poderemos ver o nosso sistema de transportes de Lisboa crescer, porque vai tornar-se útil aos vendedores do outsourcing. (quiçá das privatizações parciais a pretexto da liberalização, da venda da dívida, etc, etc.). E isto só é possível porque conseguimos, no nosso tempo, algum sucesso, graças à correção dos projetos, à fiabilidade dos equipamentos e ao esforço do pessoal da manutenção, ter o serviço a funcionar com uma boa disponibilidade, o que criou a ideia de facilidade nos decisores, de que podem ir cortando no pessoal e espaçando as encomendas de peças sobresselentes e as intervenções, que tudo continuará a funcionar bem.
Abocanharam a nossa empresa e eu, se for abocanhado, comporto-me da mesma maneira, perante um adversário mais forte.
Digo mais forte porque não consigo moderar-lhe a sede de outsourcing, a sede de centralização (ignoram que os microprocessadores apareceram para descentralizar, para acabar com soluções à Estaline?), a sede dos cortes no pessoal, a sede dos indicadores saidos automaticamente de software redutor da realidade no terreno, a sede de experimentar soluções como quem testa um brinquedo. Tudo isto é fundamentado com as dificuldades financeiras do momento, para as quais não me lembro de ter contribuido com qualquer atividade especulativa.
- Não sei que te diga para te animar.
- Não digas nada. A decisão da reforma é irreversível.
Imagina que a última que fizeram foi decidir (possivelmente era a única decisão em função do prazo politico) que tudo quanto era equipamentos elétricos e eletromecânicos das novas estações fariam parte da empreitada de acabamentos de construção civil. Para ser mais rápido e para ser mais cómodo. Assim transfere-se para o empreiteiro a maçada de selecionar os fabricantes dos equipamentos.
No meu tempo não era assim.
- Isso também é porque a burocracia dos contratos públicos complicou tudo.
- Complicou umas coisas e descomplicou outras, mas vamos sempre pelo pior caminho das pedras. A lei da contratação pública também obriga a concursos públicos e assim os equipamentos passam a ser escolhidos pelo empreiteiro sem concurso público.
No meu tempo não era assim. Sempre defendi (por vezes com assinalável insucesso, mas não dei para tudo) a possibilidade de escolhermos os fornecedores sem que o critério económico ou o critério político dos prazos para as inaugurações nos impusessem fornecedores não desejados “pela manutenção”.
Agora, é o mesmo que o mestre de obras escolher a iluminação da casa do cliente, o tampo da cozinha e a marca dos eletrodomésticos. Sempre de acordo com o interesse económico do empreiteiro .
Pode ser que seja legítimo, mas deslustra o dono da obra.
Posso sair da empresa com algum orgulho dizendo: não , eu não fazia assim, eu selecionava entre fornedores da especialidade.
Retiro-me portanto, vendo os conceitos de outsourcing condicionarem as decisões.
A experiencia de congéneres nossos no estrangeiro, que nos precederam nessa fé, irracional como todas as fés (não estou a ofender ninguém, pois se até António Damásio acha que as decisões devem ser mais emocionais que racionais…), já demonstrou que, nos casos em que o outsourcing de projeto, ou de manutenção , ou de exploração, não era tecnicamente aconselhável, as coisas deram para o torto, mesmo do ponto de vista económico, com falências de companhias sempre que a câmara municipal ou o governo lhes falhavam os subsídios.
Mas não vale a pena tentar conter esta onda que enfraquece as nossas empresas de transporte. Ela é mesmo mais forte.
- E a nós só nos resta, para já, saborear os pasteis de nata e os cafés.
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