quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Carta a um jovem arquiteto

O jovem e impetuoso arquiteto andava orgulhoso.
Tinha recebido diretamente da alta direção da empresa a incumbência do projeto de uma das novas estações e a coordenação da integração dos projetos que os colegas das especialidades iriam desenvolver.
Mas a estação inseria-se num empreendimento mais abrangente e era preciso conhecer o andamento do projeto da estação para o integrar no planeamento do empreendimento.
Era também importante que os projetistas observassem as normas de contenção que pacientemente tínhamos atualizado.
Por isso se faziam as reuniões gerais de coordenação e de ponto de situação do planeamento, a que o jovem e impetuoso arquiteto não gostava de ir, pois se era muito mais gratificante dizer de viva voz à alta direção sem registo, que tudo ia bem…sem ter de aturar curiosos que nada sabiam do trabalho de um arquiteto ilustre…
E por isso lhe enviei a missiva seguinte.

Caro Arquitecto

Acredite que os seus colegas arquitectos, com quem tenho trabalhado em ligação directa que está prestes a terminar, com alguma pena minha e algum alívio dos arquitectos, me ensinaram muito.
Infelizmente não poderei dizer que aprendi o que me ensinaram, por manifesta incapacidade minha.
Porém, todos os processos neste mundo e neste nossa empresa em mudanças, são inter-activos, multi-direccionais e em ambos os sentidos e por isso espero ter transmitido algo de útil para o trabalho futuro dos arquitectos que agora se vêm libertos de mim.
Ninguém é detentor do verdadeiro método a seguir, nem pode (nem deve) ter a pretensão de chegar sozinho a uma solução melhor do que a resultante do esforço colectivo.
Porém, ou por isso mesmo, alguns de nós buscam métodos ou procedimentos que outros já testaram e passaram a texto de norma ou de padrão.

Estranhará o Arquitecto uma missiva assim iniciada.
Tranquilize-se, porque nas mudanças que se avizinham foi-me retirado qualquer vínculo institucional com a equipa de projecto da sua estação (aliás nunca houve vínculo institucional entre mim e o Arquitecto) e portanto o que lhe escrevo é já apenas como cidadão ou colega de empresa.
Tranquilize-se também porque não venho argumentar com base em concepções minhas sobre trabalho (que não posso garantir que sejam as mais correctas), as quais divergem de facto num ou noutro ponto das conceções do Arquitecto (que não poderá também garantir que sejam as mais correctas), embora pense que as divergências são mínimas, apenas empoladas por conceitos também diferentes sobre a caraterização das nossas especializações profissionais.
Como escrevi acima, tenho esperança de que alguma coisa de útil transmiti aos arquitectos com quem agora deixo de trabalhar, nomeadamente na necessidade de integração em equipa com os outros técnicos e à necessidade de os contactar constantemente, com vista a objectivos bem definidos, com atenção constante aos obstáculos burocráticos institucionalizados e aos passos necessários a dar para os ultrapassar, com uma visão integrada das disciplinas envolvidas, registando a “história” do processo, nunca deixando o assunto “morrer” e combatendo sempre o arrastar dos prazos, muitas vezes trabalhando em hipóteses, mas trabalhando, isto é, nunca ficando à espera do que as burocracias se encarregam de não deixar chegar, e sabendo apresentar as propostas conforme as burocracias precisam para dar resposta.
Digo as burocracias, ou, neste caso sem carga pejorativa, o real interesse da comunidade da população e da nossa empresa na satisfação dos requisitos de segurança, de funcionalidade, de facilidade de manutenção, de economia. Será uma tarefa impossível na nossa casa, mas deveremos comportar-nos, como dizia o Poeta, como se fosse possível.

Porque lhe envio então esta missiva?
Simples.
Porque o ar sincero de surpresa que fez quando na reunião de coordenação e planeamento lhe falei de “rastreio” (da circulação dos documentos ou das versões dos ante-projectos ou projectos, ou do registo das decisões de uma reunião) me levou a considerar que lhe devia uma explicação.
Uma explicação por eu, ao longo da minha, parca em resultados, experiência na nossa empresa e nos contactos com o exterior, no âmbito da especialização profissional, ter tentado introduzir na nossa casa os conceitos expressos nos padrões ou normas da Comissão Eletrotécnica Internacional.
Conceitos esses que, relativos à “rastreabilidade” relativa à vida útil do projecto e obra, vou tentar esclarecer.
Como sabe, as normas desta Comissão são validadas pelo Governo dos países aderentes, não têm força de lei, mas vinculam o Governo a esforçar-se para que sejam respeitadas.
Por outro lado, perdoar-me-á que destaque a palavra “eletrotécnica” quando me refiro à comissão e a normas eletrotécnicas, que não posso impor, mas que considero essenciais, numa empresa como a nossa, resultando que a minha preocupação reflectirá uma deformação profissional.
É o que acontece quando decidem pôr um eletrotécnico a tratar de assuntos gerais de engenharia civil e de arquitectura (felizmente, para quem não aceita os meus argumentos, com termo anunciado).

Diziam os latinos “rastru” quando queriam dizer sinal, ou vestígio, ou indício de pessoa, animal ou objeto.
Donde rastrear significa ir na pista de, ou no encalço, desse indício da passagem do objeto (no nosso caso o tal email ou a versão do projeto com que foi enviado, com os ficheiros dos desenhos em anexo, que a informática é para isso que serve, e que em qualquer fase da evolução do processo permite saber essa mesma evolução, quanto mais não seja para justificar a utilização dos meios em causa, e ponderar as outras tarefas que esses meios têm de executar).
Foi esse termo que os fazedores de normas foram buscar, e criaram logo os neologismos “rastreável” e “rastreabilidade”, para caracterizar a qualidade ou facilidade em se encontrar mais tarde o rasto, i.é, em qualquer fase do processo, deverão ser sempre deixados sinais fáceis de seguir (qualquer explorador respeita religiosamente estes princípios, “et pour cause”, por metáfora podemos considerar o Arquitecto um explorador).
Os ingleses e americanos dizem “trace”, aquilo que lhes permite seguir o desenvolvimento de um projeto, e “traceability”, a qualidade que permite seguir o desenvolvimento do projeto.

Eis por que pode ver no anexo a este email duas normas, a EN 50 128 (Requisitos para o desenvolvimento de software de segurança para aplicações ferroviárias) e a EN 50 126-2 (aplicação RAMS – fiabilidade, disponibilidade, manutenibilidade e segurança), e que estão aí apenas para o caso de ter paciência, se chegou até aqui, de verificar as palavras no contexto.
É interessante (bom, eu acho interessante, como resultado da investigação e da experiência humanas) ver como se sistematizou a evolução de um projecto, empreendimento ou sistema no esquema em “V”, com as suas fases sucessivas de projecto, testes, execução, ensaios, vida útil.
No caso da 50 128, aparecem nos pontos 3.25 (pág.12), 3.42 (pág.14) e 7.2.6 (pág.19).
No caso da 50 126-2, ver a tabela 4 (págs 44 e 45) e o ponto 6.5.12 (pág.51).

E pronto, eis o que eu lhe queria dizer quando falei em “rastreio”, em plena discussão, ou troca de impressões, sobre o conceito de evolução de um projecto.

Espero que não considere nada do que escrevi como menos respeitador, embora possa ser um exemplo fundamentador do alívio dos ainda meus colaboradores directos (e dilectos também).
Perdoar-me-á, por me parecer, talvez imodestamente, que este texto tem algum valor didáctico, que o distribua por eles.

As melhores saudações.


Informação sobre as normas 50128 e 50126-2:

http://cid-95ca2795d8cd20fd.office.live.com/browse.aspx/Nomas%2050128%20e%2050126-2

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