quinta-feira, 15 de março de 2012

Carta a César


Exmo Senhor Presidente do Governo Regional dos Açores





Peço desculpa por me dirigir a V.Exa sem o conhecer nem ser seu conterrâneo, embora isso me possa ser relevado graças a um seu assessor que lhe evite a perda de tempo com a leitura desta mensagem.

Tenho apenas em comum consigo, para além da cidadania portuguesa, a vontade de que o nosso País progrida, se entendermos tal como o bem-estar das pessoas e que esse bem-estar não comprometa o bem-estar dos nossos descendentes.

Essa vontade de progresso é difícil de compatibilizar com os critérios atuais de cortes, mais ou menos cegos, nas atividades públicas, e com a ideologia dominante que privilegia os mecanismos ideais de mercado em detrimento das necessidades reais das pessoas.

O assunto que venho expor já foi considerado por V.Exa encerrado, e consta, da comunicação social, que o governo da República está a estudar soluções.

São estas duas condições suficientes para aconselhar que me abstenha de me pronunciar, embora o possa fazer no uso do direito constitucional de livre expressão em assunto de interesse público, o que estou a fazer.

Faço-o também por razões de disciplina intelectual, provavelmente por deformação profissional e de formação académica, que me impõe dar prioridade às causas e circunstâncias técnicas e científicas em detrimento de questões de outra natureza, quiçá mais simpáticas à formação da opinião das pessoas.

Dada a elevada complexidade técnica do assunto (entendendo "técnica" do ponto de vista de uma obra de engenharia, deixando de lado argumentação dos pontos de vista jurídicos e económico-políticos), vou tentar dividir a questão do navio Atlântida nos seguintes factos:

1 – o Atlântida não poder sustentar uma velocidade de cruzeiro de 18 nós, conforme o contrato, mas apenas de 17,2 nós, é argumento suficiente para a recusa da sua receção;

2 – é corrente ocorrerem situações semelhantes em fornecimentos a empresas públicas, de não preenchimento rigoroso das especificações do caderno de encargos; como em qualquer situação fora do contratado, ambas as hipóteses estão corretas: ou se recusa passado um prazo para a sua correção, ou se renegocia, com recurso a compensações financeiras ou benefício de outras especificações;

3 – em muitos casos, a situação do ponto 2 decorre de “vícios escondidos” ou insuficiências do projeto da obra; esta circunstancia agrava-se em condições de complexidade técnica (continuo a utilizar a palavra do ponto de vista da engenharia), sendo certo que, ao contrário do senso comum e da opinião dos profissionais de outras formações académicas, a engenharia não é uma ciência exata, embora faça apelo, entre outras disciplinas, às ciências exatas;

4 – do ponto 3 decorre que é uma situação aceitável, embora não desejável e apesar de isso ser possível por parte de outros técnicos que não os encarregados da obra, não se ter a certeza, na fase de projeto, do cumprimento rigoroso de uma especificação após a execução da obra;

5 – temos assim que os estaleiros de Viana do Castelo deveriam ter tido a presciência de que o projeto do Atlântida, elaborado pela Petrobalt e apresentado pela Atlântico Line aos estaleiros, não era executável em condições de segurança e de rigoroso cumprimento da especificação da velocidade de cruzeiro de 18 nós, e, em consequência, recusado a encomenda;

6 – no entanto, a decisão tomada, de ir introduzindo correções ao longo da obra, ou aguardar pelas provas de mar para introduzir outras, também é correta se aceitarmos a segunda hipótese do ponto 2;

7 – um dos principais requisitos para um casco permitir velocidades elevadas é a sua esbelteza, sendo muito fácil de visualizar este requisito se pensarmos que um casco para velocidade elevadas terá uma forma da sua secção transversal aproximada em “V”, enquanto um casco para menores velocidades terá um casco em forma de “U” de fundo achatado. Do primeiro caso é exemplo o Hellenic Wind, de 4.500 toneladas que pode atingir 38 nós, do segundo o Santorini (navios alugados pela Atlantico Line para substituir o Atlântida)e, naturalmente, o Atlântida de 7.000 toneladas  ; deverá sublinhar-se, porém, que as condições de estabilidade de um casco esbelto são menores do que no caso de um casco em “U”;

8 – não obstante o ponto 7, as provas de mar do Atlântida revelaram deficiente comportamento de ponto de vista da estabilidade no caso de falha geral da energia, por os seus estabilizadores retrateis ficarem inoperacionais (os estabilizadores têm a mesma função que os estabilizadores dos aviões, só que neste caso são passivos, a menos dos flaps, e no caso dos ferries são ativos, para poderem recolher nas manobras de acostagem);


9 – a deficiência do ponto 8 foi tragicamente demonstrada no naufrágio do Costa Concórdia (este tipo de navios de cruzeiro não tem, apesar das elevadas exposição a temporais e concentração de pessoas a bordo, comportamento satisfatório em caso de falha geral de energia);

10 – a deficiência do ponto 8 foi corrigida pelos estaleiros através da junção de robaletes (quilhas laterais longitudinais que reduzem o balanço de rolamento do navio, e que se podem observar nas fotografias do navio) e de aumento do lastro (para baixar o centro de gravidade e reduzir a distancia ao centro de gravidade do metacentro ou centro da impulsão de Arquimedes, reduzindo o binário de rolamento devido à diferença de cotas entre o metacentro e o centro de gravidade);


11 – a consequência da correção referida no ponto 10 foi, por razões físicas (aumento da tonelagem, do calado de 4,5 para 5m e da resistência ao deslocamento) a diminuição da velocidade máxima; o esforço de potência adicional foi absorvido pela margem que sempre se utiliza em projeto para a potencia dos 4 motores diesel (dois de propulsão e dois de energia de iluminação, aquecimento, cozinhas, ar condicionado, des-salinalização, que servem também de reserva para a propulsão; cada um dos motores tem o seu alternador que alimentam uma subestação elétrica, que por sua vez alimentam os motores propulsores e os serviços ditos de “hotel”);

12 – o aumento do calado de 4,5 para 5m poderá causar alguns problemas nalguns dos portos dos Açores, mas também é verdade que um calado de 5m não é exagerado em termos habituais;

13 – a crítica já feita à dificuldade de admissão de carga transportada em camiões porta-contentores não parece basear-se em incumprimento das especificações do caderno de encargos, até porque o projeto do Atlântida foi apresentado pela Atlântico Line; no entanto, pelas características da porta da rampa da ré, aliás executada de acordo com as normas decorrentes da análise do acidente com o ferrie Estónia, parece ser possível o transporte de alguma contentorização;

14 – apesar das limitações expostas nos pontos anteriores, o projeto do Atlântida é muito interessante do ponto de vista técnico, obedecendo aos critérios de projeto de navios de cruzeiro de propulsão diesel-elétrica; destaque para a reserva de potência dos dois motores para a propulsão (2x3,5 MW) e dois para o “hotel” (2x1,8MW) para os dois propulsores azimutais (as hélices, movidas por motores elétricos de 3 MW cada, são orientáveis, dispensando o leme) e para os dois impulsores transversais de proa para garantir as melhores condições de acostagem em condições adversas (o projeto previa apenas um impulsor transversal, o que agravou a tonelagem e a resistencia ao deslocamento); acresce o excelente equipamento de telecomunicações e de controle centralizado na ponte de comando (integração por uma empresa nacional) : dois sensores de rumo, uma girobússola e uma agulha magnética, dois sensores GPS para localização AIS, identificação automática com transponder VHF, 2 radares 3 e 9 GHz, leitor de cartas, receção de informação meteorológica NAVTEX, piloto automático, sensor de vento, odómetro por efeito Doppler, caixa negra VDR (voyage data recorder), telefone por satélite, sistema de homem morto (deteção automática de falta de tripulante aos comandos), preenchendo os requisitos de segurança marítima;

15 – o excelente equipamento em termos de habitabilidade pelos passageiros, incluindo os camarotes, os salões de estar, os salões do tipo bar e clube, o restaurante self-service e as cozinhas poderão ser acusados de qualidade excessiva mas refletem o caderno de encargos e os pedidos do fiscal da Atlântico Line durante a construção
decoração do clube-bar
clube-bar
16 – existe um forte sentimento de rejeição popular nos Açores do Atlântida, e é natural que o seu governo regional não queira contrariar o sentimento da população; mas também é provável que esse sentimento derive do facto dos navios alugados pela Atlântico Line atingirem velocidades superiores; tal facto é também por razões físicas; o Hellenic Wind atinge 38 nós ( 68,4 km/h), tem uma tonelagem bruta de 4500, inferior ao Atlântida, mas tem uma potencia instalada da ordem de 20 MW, o dobro da potencia instalada no Atlântida; já o Santorini tem uma potencia instalada de 15 MW, o que, aliado à menor tonelagem de 4600, lhe permite uma velocidade de 18,5 nós (33,3 km/h), superior à do Atlântida (17,2 nós ou 31 km/h); para a opinião pública, o critério dominante para aferir a qualidade de um navio será a velocidade, tal como uma carrinha de 170 cavalos e velocidade máxima de 200 km/h é considerada superior a uma carrinha de 100 cavalos e velocidade máxima de 160 km/h, embora permita maior economia de combustível;


17 - no caso do Santorini, atendendo à idade do navio, deverá assinalar-se que o navio dispõe apenas de dois motores (tanto o Hellenic Wind como o Atlântida dispõem de quatro), pelo que a fiabilidade espectável é menor

18 – considerando os tempos de crise que se vivem, e as preocupações com o fornecimento de energia primária e com o impacto ambiental do consumo de combustíveis fósseis, deverá ter-se em atenção que a velocidade de deslocação de um navio está relacionada não só com a tonelagem e as características do casco como principalmente com a potência em jogo e o consequente consumo de combustível; assim, para um dado navio, aumentar a velocidade significa aumentar a uma taxa superior o consumo de combustível para a propulsão (notar que num navio de cruzeiros ou num ferry como o Atlântida o consumo para a propulsão será disfarçado pelo consumo do “hotel”, o que reduz a taxa de aumento do combustível quando se aumenta a velocidade);

19 – atendendo ao exposto no ponto anterior, com uns pequenos cálculos partindo das especificações dadas pelos estaleiros de Viana do Castelo (consumo específico de 165 g de gasóleo/kWh), estima-se um consumo de:

43 Kg de gasóleo/km à velocidade de 17 nós
40,5 Kg de gasóleo/km à velocidade de 16 nós
38,6 Kg de gasóleo/km à velocidade de 15 nós

Isto é, reduzindo a velocidade de 1 nó, de 17 para 16 nós, teríamos uma economia de combustível de 6%, e reduzindo 2 nós uma economia de 10%

20 – para fins ambientais, admitindo uma ocupação média de 200 passageiros, teríamos um valor médio de cerca de 600 g de CO2/passageiro.km, o que reforça a conveniência em economizar combustível;

21 – admitamos que o consumo do Santorini a 18 nós é idêntico ao do Atlântida a 17 nós (o que poderá não corresponder à realidade, mas poderá servir de hipótese pessimista para o Atlantida) ; para 300 viagens de 90 km, ou 27.000 km, a economia de gasóleo entre o serviço a 18 nós e um serviço com marcha económica, para poupança de combustível e redução de emissões de CO2, a 15 nós (poupança de 4,4 Kg/km), seria de cerca de 200 mil euros, fazendo o gasóleo a 1,55 € ;

22 – este valor de 200 mil euros, se suposermos iguais os custos de aluguer e operação do Santorini (5 milhões de euros por ano) e os custos de amortização (correspondentes a um investimento de 42,5 milhões de euros e uma vida útil de 25 anos) e operacionais do Atlântida, só não justificaria por si só a aquisição do Atlântida se o valor das horas.passageiro correspondente ao tempo perdido fosse superior;

23 – as diferenças em tempo para um percurso de 70 km a 18 e a 15 nós seriam de 26 minutos e, para um percurso de 200 km, de 1h 14min. Para 27.000 km, a diferença seria de 167 horas, ou 1200 euros/hora; admitindo 200 passageiros como ocupação média, teremos 6 euros por hora e passageiro, supondo-se o atraso compensado pela poupança de combustível;

24 – em resumo, em qualquer companhia de transportes no tempo presente, os seus veículos não são utilizados à velocidade máxima por razões de poupança energética e ambiental, pelo que na atualidade perde peso o argumento da baixa velocidade para recusa do Atlântida;

25 – o tempo de crise e, em especial, a crise dos estaleiros de Viana do Castelo serve também de argumento para a receção do Atlântida, destacando-se o facto do Arsenal do Alfeite estar também afetado pelos prejuízos do Atlântida;

26 – restando assim o sentimento de rejeição da população, sugere-se a confirmação ou não desse sentimento através do instrumento supremo à disposição da democracia, o referendo, justificável pela grave situação económica dos estaleiros e do país;

27 - para que o referendo para a aceitação ou não do Atlântida seja rigoroso, esperar-se-á da comunicação social, especialmente da televisão, que divulgue previamente a informação sobre todos os aspetos técnicos e económicos do Atlântida, sobre a mitigação da crise económica dos estaleiros de Viana e do Alfeite no contexto da crise nacional, e sobre a problemática do serviço inter-ilhas nos Açores, para que não se perca uma, apesar de tudo, excelente obra de engenharia.



Julgando ter exposto as circunstancias e a análise da questão, venho, como principal razão da presente mensagem, apelar a V.Exa para a operacionalização do referendo, o que julgo poderá ser negociado com todas as forças políticas dos Açores, prévia e independentemente dos resultados das próximas eleições.



Com os votos das maiores felicidades para os Açores e, pessoalmente, para V.Exa, queira aceitar os meus cumprimentos



Fernando Santos e Silva
      BI 1453978





http://www.luiscaldasdeoliveira.com/2012/03/08/visita-ao-navio-atlantida-no-estaleiro-do-alfeite/




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