quinta-feira, 1 de março de 2012

Uma questão de transportes - acidente ferroviário no Canadá, acidente com o Costa Allegra

1 – Acidente ferroviário no Canadá em 26 de Fevereiro de 2012 
Em Burlington, cidade no trajeto do suburbano que liga as cataratas do Niágara a Toronto, uma locomotiva descarrilou e tombou arrastando algumas carruagens de um comboio suburbano. Morreram os 3 maquinistas (dois deles como instrutores, um deles como formando) .
O acidente deu-se num troço reto, em talude, com algumas agulhas.
Como é normal, o inquérito demorará alguns meses e não há, à distancia, elementos disponíveis.
No entanto, julgo que vale a pena colocar algumas hipóteses.
As zonas de agulhas são perigosas porque uma deficiência nos seus componentes ou no seu controle (sinalização ferroviária) pode provocar um descarrilamento (por exemplo, uma agulha atacada de talão, com o comboio vindo da via desviada ou da via direta, mas encontrando-a na posição errada, pode provocar o galgamento da lança móvel na posição errada, embora haja mecanismos que o possam evitar).
Outra possível causa estará relacionada com problemas de via (o facto de se tratar de um talude é uma situação desfavorável) devidos a excesso de tonelagem de tráfego provocando abatimento de um dos carris relativamente ao outro (a televisão canadiana informou que a tonelagem de mercadorias que partilha aquela linha é da ordem de 40 milhões de toneladas por ano (obriga a mudar o carril e a consolidar o leito pelo menos de 5 em 5 anos. A partilha entre tráfego de passageiros e de mercadorias tem este risco, por limitar a manutenção.
Haverá ainda a considerar a hipótese de deficiência do material circulante, neste caso da locomotiva, por fratura de roda ou eixo ou suspensão, mas é um acidente raro.
Finalmente, a hipótese de presença de uma peça na via provocando o descarrilamento.
Em termos estatísticos, num troço com aquelas caraterísticas, a ocorrência mais provável será o abatimento diferencial da via férrea, mas teremos de aguardar as conclusões do inquérito.
O problema é que, passando o tempo, perde-se a vantagem didática de conhecer as conclusões em tempo útil, de modo a difundir os ensinamentos recolhidos deste acidente por todos os sistemas ferroviários, para tentar reduzir a ocorrência de descarrilamentos.

Esta a razão por que entendo dever-se discutir um acidente logo que ele ocorre, colocando hipóteses.


2 – Incêndio na casa das máquinas de um navio de cruzeiros ao norte de Madagáscar em 27 de fevereiro de 2012
Não é um acidente raro. Todos os anos ocorre um ou mais acidentes deste tipo com navios de cruzeiro, deixando o navio sem energia elétrica ou sem propulsão. Ainda recentemente o Queen Elisabeth esteve à deriva ao largo de Barcelona.
Isso poderá indiciar debilidades de projeto em termos de previsão de situações de risco e inexistencia de soluções de recurso, ou cortes exagerados nos custos de manutenção para manter os preços dos cruzeiros baixos.
O conceito da energia destes navios consiste na produção de energia mecânica através de vários motores diesel, cada um dos quais com o seu gerador elétrico, alimentando uma rede de média tensão, como uma central elétrica com subestação vulgar; a rede de média tensão alimenta através de transformadores os serviços do navio ligados à hotelaria (iluminação, cozinhas, ar condicionado, etc) e os conversores de alimentação e regulação dos 2 motores elétricos das hélices azimutais (orientáveis, dispensando o leme) e dos motores das hélices transversais para acostagem.
A potencia em jogo para o consumo da "hotelaria" pode ser superior à da propulsão. Basta pensar que, havendo um secador de cabelo de 1,5 kW em cada camarote num navio com 1400 camarotes, se metade dos secadores estiverem a funcionar temos um pedido de potencia de 1 MW, sendo a potencia instalada total no navio de cerca de 50 MW.
Todos estes elementos podem ser distribuidos por circuitos redundantes, podendo os grupos motor-alternador normalmente afetos à hotelaria serem utilizados como back-up para a tração e vice-versa.


(de uma publicação da ABB Marine)
Se porém os componentes não estiverem fisicamente separados, ou se os circuitos informáticos de controle centralizado não forem redundantes ou não tiverem sistemas de recurso, um incêndio poderá afetar as partes comuns e conduzir à situação do Costa Allegra.
Mais uma vez aqui, como no caso do Costa Concórdia, sensível a um rombo de poucos metros que provocou a falha de energia e o adornamento por falta de compartimentação estanque e de quilhas laterais (robalete), a prioridade à ligeireza e à velocidade para obter o maior numero de passageiros por unidade de tempo, sobrepõe-se aos critérios de segurança.
Parecerá assim, dada a frequência destes incidentes, que o projeto de soluções de recurso deveria ser revisto.
Mas também aqui prevalece o secretismo, remetendo para o resultado de inquéritos que raramente são disseminados.
De realçar neste caso que, sem energia, a estabilidade do navio fica seriamente comprometida por estar em repouso, pela inexistência de robaletes e por os estabilizadores dinâmicos estarem inoperacionais. Por outras palavras, dificilmente o navio poderá evitar o naufrágio se sobrevier uma tempestade nestas circunstancias.
Evidentemente que, para manter os preços dos cruzeiros baixos, estas considerações do foro da segurança têm de ser ignoradas.
Tal como a quantidade de detritos e de emissões de CO2 que a aglomeração de tantas pessoas num navio provoca.
Isto é, este tipo de industria é um conceito a rever.

O que não impede desejar as boas vindas aos turistas que chegam a Leixões e a Lisboa, claro.

PS - O gabinete de segurança de transportes canadiano já comunicou a causa próxima do acidente: o comboio mudou de via passando pela agulha a 108 km/h (velocidade limite: 24 km/h). Ao entrar na nova via (a exterior) o esforço da caixa da locomotiva sobre o pivot do bogie dianteiro provocou a separação da caixa do bogie, tombando a caixa sobre o talude, arrastando a composição. O bogie dianteiro permaneceu carrilado até parar.
A exploração ferroviária sem sistemas de controle de velocidade em linhas carregadas, como é o caso, é, nos tempos que correm, pura e simplesmente inaceitável e revela desprezo pela vida dos passageiros.
Mais uma vez, num país que se diz desenvolvido (no ano passado aconteceram choques frontais de comboios na Bélgica e na Alemanha), o desinvestimento em sistemas de segurança que evitem consequencias de erros humanos, a partilha de infra-estruturas por companhias diferentes e o predomínio de critérios de economia cega conduziram a um acidente grave.
Está ainda por apurar se o funcionamento das agulhas foi correto e se as instalações e as normas de exploração não contêm falhas (há 4 anos um comboio de mercadorias descarrilou nesta zona de agulhas).
Duas pequenas observações ainda: 1 - a formação de maquinistas tem regras e exigencias, uma delas é gastar dinheiro em circulações fora das horas de exploração para dar a conhecer a linha aos formandos; esta é uma das razões para limitar a utilização de uma linha `a noite, sem a sobrecarregar com comboios de mercadorias (o que naturalmente conduz a infra-estruturas para mercadorias diferentes das infra-estruturas para passageiros), a outra é a necessidade de manutenção; 2 - nas fotos publicadas verifica-se excesso de balastro, o que pode originar riscos de descarrilamento.


Mais informação em:
http://news.nationalpost.com/2012/03/01/via-rail-train-in-fatal-burlington-derailment-was-going-four-time-faster-than-allowed/

reconstitição pelo jornal canadiano National Post


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