Era o tempo em que ainda não se lhe chamava, à instrução primária, primeiro ciclo, mas já era o tempo em que a revolução de abril de 1974 começava a abrir as escolas secundárias e as universidades à população portuguesa.
Era o tempo ainda em que se chamava primeiro ciclo aos primeiros dois anos do liceu, ou ensino secundário.
E por entre o entusiasmo da mudança das relações de trabalho no metropolitano surgiu a ideia, por um lado dos privilegiados com um curso superior e do outro, de quem queria melhorar a sua formação escolar com a ajuda dos licenciados, como fator de progressão na sua carreira profissional.
Assim se organizou, no centro cultural e desportivo, um curso intensivo do primeiro ciclo do ensino secundário, para dez profissionais de várias especialidades, que ao fim de meia dúzia de meses foram com sucesso presentes a exame numa escola secundária.
O centro cultural e desportivo tinha sucedido ao antigo centro desportivo da FNAT.
Depois da revolução fez-se um cuidadoso trabalho de remodelação dos estatutos, para que o centro pudesse ser gerido com alguma autonomia e alargasse os seus objetivos para alem da equipa de futebol.
Formámos um grupo coral, organizámos algumas viagens, umas de interesse cultural e outras não, mantivemos e desenvolvemos as colónias de férias para os filhos dos trabalhadores, mas a realização do curso do primeiro ciclo foi o êxito que mais me tocou.
Coube-me a disciplina de história de Portugal, porque na altura tínhamos poucas licenciadas em direito, sociologia ou humanidades e os outros colegas preferiram as matemáticas e as ciências da natureza.
Tive a sorte de ter uma boa professora de história e de filosofia.
A senhora, apesar de esposa de um ministro do ditador de Santa Comba, tinha uma sólida preparação científica, muito para além da piedosa versão da dilatação da fé e do império, mostrando aos seus alunos a importância das causas económicas e sociais, em detrimento dos heroísmos individuais e dos idealismos religiosos.
Foi assim um prazer para mim encontrar no livro de apoio, recém publicado, sem os cortes da censura do regime anterior, uma nova perspetiva da história de Portugal.
As mentiras das visões de Cristo nas batalhas de Afonso Henriques e, mais tarde, do Condestável, o episódio horrível da execução do bispo cristão de Lisboa durante o saque depois da tomada pelos cruzados, a excelencia da cultura islâmica peninsular, a importância da peste negra na crise do reinado de D.Fernando, o interesse egoísta da casa de Lencastre mas a capacidade gestionária dos seus membros que tornou possível a organização da expansão comercial dos descobrimentos, a puerilidade dos fidalgos falidos que gastavam o seu parco dinheiro em sedas traficadas nos navios da pimenta das Índias, a crónica insolvência das contas públicas e a dependência das importações, quer fossem armas, quer fossem queijos holandeses, como bem descrevia um professor da universidade de Pisa que nos visitou em plena euforia gastadora dos meados do século XVI.
Mas era o século XIX e a revolução liberal que suscitou mais interesse por parte dos alunos, talvez por comparação com a revolução de abril de 1974, uma substituição de relações de trabalho e de formas de produção, uma transferência de rendimentos para as classes menos privilegiadas, com a fuga de capitais para o estrangeiro, a ida de donos da industria para o México e para o Brasil, aguardando a oportunidade do regresso.
E tudo isso enquanto o metropolitano funcionava, ininterruptamente, com dificuldade em obtenção de peças de reserva devido ao embargo de algumas empresas estrangeiras, mas sem nunca ter deixado de prestar o seu serviço de transporte à população.
Era o tempo em que crescia uma grande esperança de que fosse a população trabalhadora a organizar-se e a gerir o seu tempo, a sua força de trabalho, o seu território, desde o nível das freguesias e das empresas, e não subordinados a grupos económico financeiros, politico partidários, com auto intitulados lideres e as suas coortes organizadas de diligentes centuriões a condicionar a vida da maioria.
Era o tempo em que os mais assustados diziam que se caminhava para o abismo, quando na realidade se atravessava apenas um período de aumento dos custos do petróleo, embora esse “apenas” fosse do tamanho do mundo, que é essa a dimensão da economia do petróleo.
Era o tempo em que uma equipa de universitários do MIT analisou as finanças portuguesas e concluiu que, apesar da diminuição do PIB, coisa que sempre acontece quando há uma mudança politica importante, as contas da nação estavam razoavelmente sãs.
Era o tempo em que chegáramos a uma encruzilhada e nunca saberemos se teríamos conseguido seguir com êxito pela outra via.
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