terça-feira, 15 de outubro de 2013

Um pequeno conto neo-realista nos tempos que correm, ou melhor, neo-neo-realista



Tive de tratar de um assunto do meu barco no edificio administrativo da marina.
A matéria em causa era da responsabilidade da economista da empresa da marina, que amavel e eficazmente me ajudou a resolver a questão.
Pouco depois, quando  já estava sentado na esplanada do restaurante à beira do Tejo, tive o prazer de a ver chegar.
Sem falsas hesitações, aceitou o convite para se sentar à minha mesa.
Eva, a doutora das finanças da marina, é pequenina como o seu nome e tem uns olhos azuis de uma profundeza como a do mar.
Pediu à empregada uma almofada, desculpando-se com isso mesmo, por ser pequena, enquanto revirava os olhos verdes num gesto que depois repetiu sempre que quis manifestar alguma impotencia.
Que estava na marina em part-time, só vinha umas horas por semana. Que o salário era pequeno e que tinha de trabalhar em pequenas empresas a organizar a contabilidade e num gabinete a preencher IRS e outras obrigações fiscais de particulares.
A própria marina, dependente agora de bancos que tinham concedido os empréstimos originais, não gerava lucros e portanto não podia melhorar-lhe as condições laborais.
Sempre que podia, eu desviava o assunto, brincando, por exemplo, que quem nos visse acharia que nós não eramos tio e sobrinha.
Ela ria-se muito, com os musculos da face a repuxar as maçãs do rosto para cima e a estreitar o contorno do queixo destacando a forma perfeita dos lábios.
Mas voltava à descrição dos seus que fazeres.
Que era a filha mais velha de uma mãe solteira que tinha outros 5 filhos. Que saíra de casa e vivia no seu próprio apartamento, com uma renda de 500 euros em Campolide, mas que era ela que sustentava a família toda, mãe desempregada desde há um ano, já sem subsidio de desemprego, e irmãos todos a estudar.
Dois dos irmãos tinham passado as férias em part-times sazonais de apanha de fruta, de tomate e nas vindimas. A irmã mais nova tinha partido um pé havia duas semanas, mas já tinha comparecido na abertura das aulas, de muletas.
Perguntei como arranjava tempo para os amores e ela respondeu que não podia pensar nisso agora.
- Mas os jovens têm de ter tempo para essas coisas, insisti eu.
Que não precisava porque tinha uma vida muito preenchida. Que nessa própria noite tinha de, primeiro, ir a um jantar de aniversário e depois de ir dançar ao Havana e ao Hawai nas Docas de Santo Amaro.
Que o dono daqueles restaurantes-discotecas gostava muito dela (- não,não é nada disso que está a pensar porque ele também é um senhor já da sua idade) porque ela animava as noites a dançar, o que chamava os clientes que passavam nas esplanadas das Docas.
E de repente, mesmo sentada, fez dois ou três passos de dança com os braços para cima e para baixo, reproduzindo ao longo dos braços uma ondulação a propagar-se dos ombros à ponta dos dedos.
Desculpou-se não poder ficar para o café porque tinha de ir a correr para a aula de pilates e depois levar a irmã das muletas à aula de guitarra e ver se lhe  consegue numa loja de um conhecido um iphone mais barato.
Eu fiquei calmamente a saborear o café enquanto meditava na turbulencia desta juventude com uma vaga sensação de culpa por receber a minha remansada pensão.
Não será já uma vida neo-realista que Eva vive, que o nivel de preços dos produtos de consumo é agora mais baixo, a preços comparados, do que no tempo do neo-realismo, e, que diabo, apesar de tudo os progressos tecnológicos têm facilitado a vida às pessoas, mas eu chamar-lhe-ia, pela latejante insegurança que tem associada, um neo-neo-realismo, ou um 2neo-realismo, um neo-realismo de segunda geração, como se usa agora dizer.
Devagar, paguei, e fui compor uma pequena deficiencia no meu barco.


Temas neo-realistas neste blogue em:
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