DESASTRE, de Cesário Verde, poema sobre as desigualdades sociais publicado no ano 136 antes da troika; talvez Chico Buarque o tenha lido antes de escrever o operário da construção que morreu na contramão:
Ele ia numa maca, em
ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e
trémulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera
com o peito,
Pesada e secamente, em
cima duns tapumes.
A brisa que balouça as
árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao
leito os cortinados,
E dentro eu divisei o
ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro
os membros ensopados.
Um preto, que sustinha o
peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe:
"Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta
da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a
febre cerebral.
Flanavam pelo Aterro os
dandis e as cocottes
Corriam char-à-bancs cheios
de passageiros
E ouviam-se canções e
estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e
as pragas dos cocheiros.
Viam-se os quarteirões da
Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa
cervejaria,
Gritava para alguns:
"Que cena tão faceta!
Reparem! Que
episódio!" Ele já não gemia.
Findara honradamente. As
lutas, afinal,
Deixavam repousar essa
criança escrava,
E a gente da província,
atônita, exclamava:
"Que providências!
Deus! Lá vai para o hospital!"
Por onde o morto passa há
grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma
perfumaria,
E cheira a peixe frito um
armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que
não entra o dia!
Um fidalgote brada a duas
prostitutas
"Que espantos! Um
rapaz servente de pedreiro!"
Bisonhos, devagar,
passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na
loja dum barbeiro.
Era enjeitado, o pobre. E,
para não morrer,
De bagas de suor tinha uma
vida cheia;
Levava a um quarto andar
cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem
aprendera a ler.
Depois da sesta, um pouco
estonteado e fraco
Sentira a exalação da
tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o
fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo
da caliça.
Gastara o seu salário -
oito vinténs ou menos -,
Ao longe o mar, que
abismo! e o sol, que labareda!
"Os vultos, lá em
baixo, oh! como são pequenos!"
E estremeceu, rolou nas
atrações da queda.
O mísero a doença, as
privações cruéis
Soubera repelir - ataques
desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E
apenas com seis anos
Andara a apregoar diários
de dez-réis.
Anoitecia então. O féretro
sinistro
Cruzou com um coupé seguido
dum correio,
E um democrata disse:
"Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor?
Adormecer num seio?"
E eu tive uma suspeita.
Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga
o povo com impostos -,
Mandava arremessar - que
gozo! estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda
dos expostos...
Mas não, não pode ser...
Deite-se um grande véu...
De resto, a dignidade e a
corrupção... que sonhos!
Todos os figurões
cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai
tirou-lhe o solidéu.
E o desgraçado? Ah! Ah!
Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus
dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão
negou-lhes a licença,
O inverno estava à porta e
as obras atrasadas.
E antes, ao soletrar a
narração do facto,
Vinda numa local hipócrita
e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um
tanto estupefacto:
"Morreu!? Pois não
caísse! Alguma bebedeira!"
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