sábado, 8 de fevereiro de 2014

a greve

                                                   o texto seguinte faz parte de umas memórias no metropolitano





Já tinha reparado nele, nas viagens diárias de metropolitano. Entrávamos na estação de Sete Rios, vindo ele não sei de onde e eu de Benfica, de autocarro.
Teria menos de 30 anos, um ar pacífico, não jovem pela forma como se penteava e vestia. Era fácil imaginá-lo sentado na sua secretária, a conferir faturas e a esperar que fossem horas de almoçar uma sanduíche de leitão ou uma bifana num qualquer estabelecimento de vinhos e comidas da Baixa.
No meio da multidão ameaçadora, olhava fixamente para o vidro da cabina do chefe de estação, que nela se recolhera, a meio do cais, depois de tentar fazer-se ouvir, explicando aos passageiros que não iria haver comboios durante o resto da manhã, por motivo de greve.
Não por ele, que não tinha aderido à greve, mas porque todos os maquinistas tinham paralisado. 
O  metro ainda não tinha crescido para o Colégio Militar nem para a Pontinha e Amadora.
Num tempo que não fixei, entre o fim do quinto governo provisório, o da enumeração dos projetos de engenharia estratégicos para o país, porque o primeiro ministro, Vasco Gonçalves tinha essa formação, e o início das intervenções do FMI, a greve fora decretada para reposição do poder de compra dos trabalhadores.
Logo a seguir à revolução de 25 de abril de 1974 tinha havido de facto uma transferência de rendimentos do fator capital para o fator trabalho, coisa que se acentuou depois das nacionalizações de Março de 1975.
Porém, a inflação contrariava os aumentos de salários e, no caso do metropolitano, a política do governo era perigosamente idealista por conter o aumento do preço dos bilhetes, mantendo-o artificialmente baixo e comprometendo o equilíbrio das receitas e despesas.
Por isso havia greves e o cidadão a que me refiro continuava a olhar fixamente para o vidro da cabina do chefe de estação enquanto a multidão se comprimia no cais.
De repente, ergueu ambas as mãos e começou a bater compassadamente no vidro da cabina.
Aproximei-me e disse-lhe, cuidado que assim pode produzir um balanço e o vidro parte-se.
Eu queria referir-me ao fenómeno físico da ressonância, em que num movimento vibratório de frequência próxima da frequência própria da estrutura, as amplitudes das vibrações sofrem um fenómeno de realimentação positiva e aumentam até ao colapso da estrutura. É por isso que os pelotões atravessam as pontes em marcha à vontade e não sincronizada.
Ele não me ouviu, manteve o olhar distante e as batidas no vidro.
Ursos, alguém gritou, por cima do bruáá da multidão, querendo com isso dizer que achava que os sindicatos que tinham declarado greve se guiavam por uma ideologia política parente do regime político da união soviética, o das terras dos ursos siberianos. O que não era inteiramente verdade, uma vez que um dos sindicatos mais influentes que declarar greve, o dos eletricistas a que pertenciam os operadores da central de comando e distribuição de energia, se reclamava de pureza democrática não enfeudada a nenhuma central sindical.
O vidro partiu-se, o que terá ajudado a desmobilizar a multidão, que zangada acabou por sair da estação. 
Outras greves se sucederam, em torno do conceito de contratação coletiva do trabalho, cuja aplicação formal vinha já de antes da revolução. O primeiro acordo coletivo de trabalho no metropolitano tinha sido assinado em 1973, ilustrando a modernidade da empresa.
O nível dos salários no  metropolitano não era ainda superior ao das empresas privadas. Em troca da segurança no trabalho aceitávamos vencimentos inferiores aos dos colegas das empresas privadas fornecedoras de equipamentos e serviços, com os quais trabalhávamos na execução das empreitadas. O sucesso dessas empresas era também devido aos concursos que lançávamos, beneficiando de financiamentos cada vez mais generosos, em nome da coesão dos estados da união eiuropeia.
Ao longo do tempo, a orientação dos sucessivos governos foi a de evitar o conflito social. Raramente se aplicou a lei da greve, sem que os serviços mínimos fossem acordados, nem que fosse decretada a requisição civil, já que, se a greve prejudica a economia, seria de esperar do governo que o evitasse. Algumas medidas, como a substituição do ciclo de 5 dias de trabalho interrompido por 2 dias de descanso para o trabalho por turnos contínuos (há sempre quem trabalhe no metropolitano, 24 horas por dia, ao longo de todo o ano), foram aceites de forma acrítica com o parecer contrário dos técnicos que tinham outras soluções que respeitavam o direito laboral.
No entanto, a fundamentação das reivindicações estava correta, porque a inflação reduzia efetivamente o poder de compra.
A crise internacional de 2008 e do agravamento do endividamento inverteu a relação dos níveis de salários. De repente os salários dos trabalhadores do  metro eram superiores à média nacional (se excluirmos os setores não transacionáveis da banca e dos seguros e dos escalões de topo das grandes empresas industriais e de distribuição).
Se antes da primeira intervenção do FMI em 1978 muitos passageiros se agastavam com as reivindicações dos trabalhadores do metro, agora era muito difícil obter o apoio da população quando a maioria das pessoas recebia vencimentos inferiores.
Por isso se mudou a estratégia.
Os sindicatos, qualquer que seja a sua opção ideológica,  continuarão a defender a contratação coletiva, aliás caraterística de qualquer país civilizado respeitador dos direitos da declaração universal. Igualmente defenderão, sem quererem apoucar as experiencias de alguns metropolitanos cuja exploração foi concessionada, a manutenção na esfera pública do respetivo operador. Coisa aliás aceite pelas diretivas europeias e razoável se se pensar que a maioria dos operadores públicos, incluindo o de Lisboa, apresentam indicadores de funcionamento de bom nível, pelo que dificilmente um operador privado, sem protecionismo estatal, poderá retirar lucro, para os seus acionistas, do diferencial de produtividade que conseguir.
A próxima greve será decretada sob o conceito de greve de zelo.
Os passageiros serão informados de que a greve se realiza também para defender o direito deles, passageiros, ao trabalho e a remunerações e condições justas, num leque reduzido de vencimentos e numa repartição equitativa dos impostos pelo fator trabalho e pelo fator capital.
Que se lamenta os incómodos e que se fará tudo para os minimizar. Os canais de acesso nos átrios de entrada estarão abertos. Os dias de greve serão acrescentados à validade temporal dos passes. O horário diário de trabalho dos grevistas será nos meses seguinte voluntariamente incrementado de modo a não perderem a remuneração do tempo de greve. Os comboios circularão, apenas com algum atraso, para que nas estações os comités possam explicar a fundamentação da greve e aproveitem para recordar os procedimentos de segurança a observar, desde o afastamento da borda do cais aos cuidados com a entrada e saída de carrinhos de bebés, e a discutir as formas de obtenção de financiamento para as obras de melhoria do existente e de construção de novos empreendimentos. Coisa que, como se sabe, é possível através da negociação de fundos comunitários com a apresentação de projetos concretos.

Ignora-se se o governo, preocupado com uma perturbação do PIB nacional da ordem de 150 mil milhões de euros a dividir por 250 dias úteis, por 20% correspondentes à área metropolitana de Lisboa e por 10% como contribuição do fator transporte para o valor acrescentado da produção de uma empresa por dia, o que dará uma perda para o PIB de 12 milhões de euros por dia de greve, decretará a requisição civil, considerando que é plausível, com esta estratégia, a sintonia e a compreensão mútua entre grevistas e passageiros.
Não se espera que alguém parta os vidros da cabina.

Sem comentários:

Enviar um comentário