Mantenho que a ópera tem uma componente interventiva importante, apesar do tradicionalismo dos frequentadores.
O que me leva a imaginar que critérios terá seguido o programador nestes anos de penúria, limitando a quantidade e o custo das produções apresentadas.
No ano passado, Macbeth, a história que fala na luta suja pelo poder, na floresta que a árvore esconde, na mão invisível que castiga quem utiliza indevidamente a liberdade (não é o que os economistas liberais dizem, seduzidos por uma mão invisível, não a de Shakespeare, que misteriosamente rege o mercado livre e satisfaz as necessidades dos cidadãos). Talvez o programador quisesse dizer isso mesmo, que por mais convencidos da justeza das posições do indivíduo ou do grupo, existe uma mão invisível que pode ser castigadora...
Esta temporada começou com Madame Butterfly, ou a opressão e o desfrute do mais fraco pelo mais forte, enquanto ingenuamente o mais fraco se submete aos desígnios do mais forte (analogia com os desígnios de Bruxelas?).
Veio depois Dialogos das Carmelitas, numa produção interessantissima, com a participação de muitas portuguesas. Ou de como o terror pode trair os objetivos de uma revolução pela liberdade, igualdade e fraternidade. Que não se queira converter a tragédia numa luta contra os objetivos da revolução. Teria sido essa a intenção do programador?
E a seguir veio a Ifigénia em Taurida, de Gluck, seguindo de perto a tragédia de Euripedes. E escrevo tragédia porque o próprio Euripedes terá querido combater o gosto pela guerra e o culto pelo sangue dos antigos gregos, com insucesso, como se pode ver 2500 anos depois.
Taurida é a peninsula da Crimeia, onde os gregos dos séculos VII AC estabeleceram colónias, e onde entraram em conflito com os citas, antepassados dos eslavos e cossacos. Eu dispensaria a representação explicita das execuções agora vistas na TV executadas pelo Daesh, mas a peça mostra o culto pelo sangue que os restos do cérebro predador dos antepassados ainda subsistem no nosso cérebro. Ifigénia, salva pela deusa do sacrificio pelo próprio pai, tal como no mito de Abraão e o filho Isaac, era a sacerdotiza dos sacrifícios humanos em Taurida. Contrafeita, para Euripedes poder defender o direito à vida e à liberdade. Terá sido isso que o programador quis dizer? Que a guerra e o culto da opressão são uma estupidez?
E finalmente teremos o Nabuco, de Verdi, com o seu coro dos escravos: vai pensamento, sobre asas douradas. É isso, o programador insiste no valor da liberdade e no direito ao trabalho em paz.
Não entenderão isso, os decisores? que não deve haver guerra, como não deve haver epidemias, e que tanto uma como outras evitam-se.
Como teria sido possível evitar a guerra, por exemplo, também da Crimeia, em 1854? O czar russo quis a soberania sobre a Crimeia, ocupada havia uns séculos pelo império turco otomano, e sobre as margens ocidentais do mar negro. Os exercitos inglês, francês e italiano juntaram-se aos turcos numa guerra selvagem. Porquê? porque as potencias europeias estavam interessadas em beneficiar economicamente da fragilidade daTurquia, cujo império se desmoronava por desadaptação à revolução industrial.
E assim continuou a região do médio oriente, a ser retalhada em função dos interesses comerciais e industriais das potencias ocidentais. Pode discutir-se evidentemente se foram os interesses económicos ocidentais ou os nacionalismos e tribalismos exacerbados dos próprios setores autoctones dominantes quem mais promoveu ou facilitou as guerras no médio oriente.
Pelo triste exemplo da guerra na Síria e da inadmissível falta de liberdade na Turquia e da sua opressão do povo curdo, parece que continua a ser assim, sem que as potencias ocidentais, como no tempo de Eça de Queirós (leiam as crónicas inglesas), o entendam, ou queiram entender.
Pena não se dar a devida atenção às óperas.
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