quinta-feira, 3 de março de 2011

O poder económico e a coisa pública, Adriano Moreira e o Ministério da Justiça

É sempre interessante ouvir intervenientes num processo histórico recordar o passado, nem sempre coincidindo com as versões em que mais se acredita.
As declarações do professor Adriano Moreira em recentes entrevistas à Antena 2 e à RTP2 serão disso exemplo e deveriam, salvo melhor opinião, ser registadas e integradas pelos historiadores.

Adriano Moreira, apesar de jovem professor de direito não diretamente ligado ao regime, foi convidado por Salazar para ministro do Ultramar para atualizar a sua estrutura organizativa. Recebeu carta branca e assim acabou com o estatuto do indigena que vedava o acesso à cidadania aos naturais das colonias de origem africana.

O livro "Os donos de Portugal" constitue um documento precioso que mostra à evidencia a permeabilidade entre os grandes grupos económicos portugueses e as estruturas governamentais. Essa permeabilidade manifesta-se na ocupação de lugares importantes nesses grupos por antigos ministros, e no papel importante dos grupos nas obras ou na prestação de serviços adjudicados pelo setor público.

Salazar temia, segundo hipótese de Adriano Moreira, uma terceira guerra mundial. Daí argumentar que Portugal defendia, com a guerra colonial, a civilização ocidental. Contrariamente à opinião mais divulgada, no princípio dos anos 60 falou-se na independencia das colónias, evidentemente à revelia dos movimentos de libertação, segundo o modelo da África do Sul (proposta do governador de Angola, Deslandes) ou numa federação (proposta de Sarmento Rodrigues, governador de Moçambique).

Entre as estruturas do poder político e os grupos económicos existem ligações que podem ser a atividade de bancos ou de universidades (principalmente de economia e gestão, evidentemente). É importante o papel das universidades de economia na difusão das ideias de des-regulação e de privatização que predominam entre os políticos, não obstante a clareza com que documentários como "Capitalismo - uma história de amor" e "Inside job - a verdade da crise" explicaram a responsabilidade dos especuladores financeiros e dos professores de economia na crise de 2008.

Na sequência das reformas de Adriano Moreira nas colónias chegou-se a uma situação de conflito com os grandes grupos económicos que exploravam a agricultura nas colónias. Adriano Moreira quis acabar com as culturas obrigatórias, de natureza monopolista, que  favoreciam os grupos económicos.
Salazar informou Adriano Moreira que podia apoiá-lo em todas as reformas, menos nessa. Não poderia arranjar-se melhor demonstração de que o poder económico controla o poder político. E Adriano Moreira demitiu-se.

Embora o setor publico se vá enfraquecendo progressivamente em Portugal, na atualidade ele ainda se manifesta pela existencia de algumas empresas públicas rentáveis. Por exemplo, os CTT. Neste domínio, é interessante verificar como uma administração dos CTT, há cerca de 6 anos, eliminou um departamento de obras para entregar empreitadas a uma empresa instaladora de redes de cabos por ajuste direto, através de uma parceria com ela. O assunto encontra-se nos tribunais, e é também um excelente exemplo, para além do domínio do poder público pelo poder económico, da fé que os decisores, normalmente ignorantes dos pormenores da realidade, têm no "outsourcing" (nota: existem casos específicos, não sujeitos a regras universais, em que o "outsourcing" é a melhor solução para  empresa, quer seja pública, quer seja privada).
É também muito interessante analisar a verdadeira tragédia grega que se abateu sobre algumas iniciativas do ministério da justiça, com ofertas por empresas de construção civil para construirem edificios para tribunais a custo zero, com posterior aluguer ao ministério. O contrato da cidade judiciária do Porto não foi assinado porque o adjudicatário selecionado pretextou impossibilidade de o cumprir pelos preços da proposta,devido à crise internacional ( investimento de 114 milhões de euros pelo adjudicatário, aluguer mensal ao ministério por 643 mil euros durante 30 anos, o que significa um pagamento de 231,5 milhões de euros com um juro de 5,43%).
A cerimónia da primeira pedra foi realizada em Agosto de 2009,  mas nada foi construido até agora.
Estamos portanto perante um impasse ou, em terminologia anglo-saxónica, um flop.
Entretanto, a empresa que preside ao consórcio do caso da cidade judiciária do Porto é a mesma a quem foi adjudicada por ajuste direto (numa consulta direta a 5 empresas pretextando confidencialidade para satisfazer a letra do código de contratação pública) por 90 milhões de euros,  a ampliação da sede da Polícia Judiciária  na rua Gomes Freire, ocupando os terrenos da antiga escola de medicina veterinária.
Como se costuma dizer, mundo pequeno, este.


O assunto é interessantissimo, de facto; fascinante, como diria Mr Spock. Talvez se possa concluir que negócios com contrapartidas ou ofertas de investimentos a custo zero raramente serão um bom negócio. Na verdade, se o negócio é bom, por que tem de ser um consórcio de empreiteiros a fazê-lo e não o serviço público? Por que tem de ser vedado a uma entidade pública um negócio? Vedar um negócio por motivo de natureza da entidade pretendente é contra as leis da concorrencia...como dizia Melo Antunes, há que coexistir.

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