sexta-feira, 1 de março de 2013

De Urbano Tavares Rodrigues, um complexo de culpa

De Urbano Tavares Rodrigues, uma crónica que encontrei num recorte incompleto do Diario de Lisboa de antes de 25 de abril de 1974.
Porque o recorte estava incompleto, tentei reconstituir as linhas que faltavam, pelo que peço desculpa.
Mas pensei que era importante registar este texto, por desgraça ainda atual, não só pelo triunfo, de momento, de oportunistas e moralistas reguladores, como da dificuldade de integração e do reconhecimento geral do papel dos intelectuais.


Tenho um complexo de culpa,
sim, eu sei.
Desde quando?
porquê?
fui censurado em pequeno e até castigado,
reprimido pela mãe,
como quase todos os catraios,
e tive remorsos da minha origem burguesa,
de comer e beber bem,
mais tarde vestir-me "com decencia",
e até às vezes com excentricidade cara,
num país de nus, tinhosos, sebentos,
deformados pela santa e cega lei.
Não suporto mais
e os nervos já não aguentam.
Nunca roubei, só minto em legítima defesa.
Terei sido infiel sensualmente, mas não nos meus afetos
Porquê então este meu volumoso e incómodo complexo de culpa?
A consciencia sempre me pesou, por tudo, por nada;
devo pertencer ao género dos previamente culpados por natureza.
Daí tambem o meu desprezo pelos oportunistas e pelos moralistas
das falsas composturas,
das mortes ordenadas,
dos milhares de existencias que diariamente espezinham,
esfarelam.
Se essas formas de ascensão deixassem marcas.
Mas não deixam.
Nem eles têm, no geral, complexos de culpa.
Paciencia!
Se os mais atingidos quase não ousam queixar-se!
Se falamos quase sem eco!
É certo que na hora certa,
todos nós, intelectuais,
estaremos no local certo.
E espero então libertar-me,
um pouco que seja,
deste complexo de culpa!

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