sexta-feira, 16 de maio de 2014

Caro concidadão, ou uma metodologia de debate

Caro concidadão

Mantemos uma discussão animada sobre um assunto que nos interessa aos dois e a muitos outros e não chegamos a uma conclusão.
Eu preferiria dizer um debate em vez de discussão, com recolha mútua de informação, análise dos dados e formulação de hipóteses justificativas, para posterior submissão destas à observação real.
Mas infelizmente é mesmo uma discussão que não nos permite concordar com uma posição a tomar e uma proposta de ação. Não seria necessário que mudássemos as nossas opiniões até as sintonizar, mas ao menos concordar, com concessões mútuas, no que nos pareceria ser o melhor a fazer.
Então adiemos a discussão sobre os meios e os objetivos e interroguemo-nos por que não nos entendemos.
Será porque é uma arte, a de ser português, como dizia Teixeira de Pascoais, mas essa arte é a da incapacidade de organização em equipa e de convergência de esforços, por insegurança crónica de quem acha que a opinião do outro é a demonstração da incompetência própria?
Antes que discorde desta hipótese, digo já que não lhe dou  muita importância.
Eu diria que não nos entendemos porque tanto o meu caro concidadão, como eu, tivemos, cada  um, duas avós.
Que foram senhoras deliciosas, amigas das suas filhas e dos seus filhos, que acompanharam em casa ou que mandaram à escola, enquanto os avôs passavam o dia na loja, na oficina ou no escritório, quando eram urbanas, ou no campo, quando eram rurais. Nisso, beneficiando do ambiente de libertação da mulher e da intensa propaganda politica da necessidade da instrução (recordo os primeiros decretos da I república portuguesa), foram mesmo senhoras deliciosas. E também porque, na sua função feminina que na natureza é a da conservação da espécie, eram exímias nas tarefas domésticas, desde a cozinha, às rendas, ao croché.
Porém, as nossas 4 avós eram analfabetas.
E porque é o elemento feminino que está mais perto dos filhos, sem prejuízo de os mandar à escola e beneficiando da tolerância dos avôs que deixavam que as avós levassem as filhas e os filhos à missa, muita da sabedoria e da não sabedoria das avós se transmitiu à geração seguinte, de uma forma consciente ou de uma forma subconsciente.
Não é ofensa à sua memória.
Ainda hoje há avós que não conseguiram aprender a ler e foram mães exemplares.
E, mais espantoso, utilizam iPads para se entreterem quando sozinhas ou para comunicar com irmãs.
E são analfabetas.
Mas por esse fenómeno de conservação e estabilização normativa e socializante entre indivíduos da mesma espécie e da  mesma família, nós não nos entendemos.
Era preciso existir mais uma série de gerações para se perder no tempo esse “gene social” que de forma subconsciente compensava o analfabetismo com procedimentos de defesa contra inovações como o método científico que punha em causa crenças de milénios.
É isso que mostra a observação histórica. Por um fenómeno de contraste com a Europa do sul, a Escandinávia atingiu no século XVI mais de metade da população alfabetizada. Mas na Alemanha, Inglaterra e Holanda, isso aconteceu um século mais tarde, curiosamente coincidindo com a emergência do método científico.
O indicador de 50% da população alfabetizada chegou a França no século das luzes e da revolução. A Espanha e Itália no século seguinte, o século da unificação italiana. E a Portugal no século XX, depois das escolas da I republica.
É por isso que não nos entendemos, caro concidadão.
Mas não desistimos.
Vamos continuar a tentar.
Ainda bem que não pensa como eu.
Digo ainda bem, por um lado, claro, que o assunto sobre que discordamos reflete-se na vida de todos nós, e se chegássemos a uma conclusão suscetível de aplicação, até podia ser que fosse melhor para todos, mas apesar de tudo há aspetos positivos da discordância.
Fica o debate mais rico e vai-me obrigar a analisar melhor os meus argumentos e os dados de que disponho, pese embora os dados serem insuficientes. Insuficientes por ser tradição em Portugal as estatísticas serem deficientes ou as partes que nelas se vêem serem indevidamente tomadas pelo todo, talvez como consequência do tardio atingir dos 50% de alfabetização.
Vai-me obrigar a tentar aplicar o método científico de observação, hipótese, experimentação, referendo das conclusões, repetição do ciclo até obter as provas, etc, etc.
Vai fazer o mesmo, não vai?

Vamos continuar a tentar.

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