Caro concidadão
Mantemos uma discussão animada sobre um assunto que nos
interessa aos dois e a muitos outros e não chegamos a uma conclusão.
Eu preferiria dizer um debate em vez de discussão, com
recolha mútua de informação, análise dos dados e formulação de hipóteses
justificativas, para posterior submissão destas à observação real.
Mas infelizmente é mesmo uma discussão que não nos permite
concordar com uma posição a tomar e uma proposta de ação. Não seria necessário
que mudássemos as nossas opiniões até as sintonizar, mas ao menos concordar,
com concessões mútuas, no que nos pareceria ser o melhor a fazer.
Então adiemos a discussão sobre os meios e os objetivos e
interroguemo-nos por que não nos entendemos.
Será porque é uma arte, a de ser português, como dizia
Teixeira de Pascoais, mas essa arte é a da incapacidade de organização em
equipa e de convergência de esforços, por insegurança crónica de quem acha que
a opinião do outro é a demonstração da incompetência própria?
Antes que discorde desta hipótese, digo já que não lhe dou muita importância.
Eu diria que não nos entendemos porque tanto o meu caro
concidadão, como eu, tivemos, cada um,
duas avós.
Que foram senhoras deliciosas, amigas das suas filhas e dos
seus filhos, que acompanharam em casa ou que mandaram à escola, enquanto os
avôs passavam o dia na loja, na oficina ou no escritório, quando eram urbanas,
ou no campo, quando eram rurais. Nisso, beneficiando do ambiente de libertação
da mulher e da intensa propaganda politica da necessidade da instrução (recordo
os primeiros decretos da I república portuguesa), foram mesmo senhoras
deliciosas. E também porque, na sua função feminina que na natureza é a da
conservação da espécie, eram exímias nas tarefas domésticas, desde a cozinha, às
rendas, ao croché.
Porém, as nossas 4 avós eram analfabetas.
E porque é o elemento feminino que está mais perto dos
filhos, sem prejuízo de os mandar à escola e beneficiando da tolerância dos
avôs que deixavam que as avós levassem as filhas e os filhos à missa, muita da
sabedoria e da não sabedoria das avós se transmitiu à geração seguinte, de uma forma consciente ou
de uma forma subconsciente.
Não é ofensa à sua memória.
Ainda hoje há avós que não conseguiram aprender a ler e
foram mães exemplares.
E, mais espantoso, utilizam iPads para se entreterem quando
sozinhas ou para comunicar com irmãs.
E são analfabetas.
Mas por esse fenómeno de conservação e estabilização
normativa e socializante entre indivíduos da mesma espécie e da mesma família, nós não nos entendemos.
Era preciso existir mais uma série de gerações para se
perder no tempo esse “gene social” que de forma subconsciente compensava o
analfabetismo com procedimentos de defesa contra inovações como o método
científico que punha em causa crenças de milénios.
É isso que mostra a observação histórica. Por um fenómeno de
contraste com a Europa do sul, a Escandinávia atingiu no século XVI mais de
metade da população alfabetizada. Mas na Alemanha, Inglaterra e Holanda, isso
aconteceu um século mais tarde, curiosamente coincidindo com a emergência do
método científico.
O indicador de 50% da população alfabetizada chegou a França
no século das luzes e da revolução. A Espanha e Itália no século seguinte, o
século da unificação italiana. E a Portugal no século XX, depois das escolas da
I republica.
É por isso que não nos entendemos, caro concidadão.
Mas não desistimos.
Vamos continuar a tentar.
Ainda bem que não pensa como eu.
Digo ainda bem, por um lado, claro, que o assunto sobre que
discordamos reflete-se na vida de todos nós, e se chegássemos a uma conclusão
suscetível de aplicação, até podia ser que fosse melhor para todos, mas apesar
de tudo há aspetos positivos da discordância.
Fica o debate mais rico e vai-me obrigar a analisar melhor os meus argumentos e os dados de que disponho, pese embora os dados serem insuficientes. Insuficientes por ser tradição em Portugal as estatísticas serem deficientes ou as partes que nelas se vêem serem indevidamente tomadas pelo todo, talvez como consequência do tardio atingir dos 50% de alfabetização.
Fica o debate mais rico e vai-me obrigar a analisar melhor os meus argumentos e os dados de que disponho, pese embora os dados serem insuficientes. Insuficientes por ser tradição em Portugal as estatísticas serem deficientes ou as partes que nelas se vêem serem indevidamente tomadas pelo todo, talvez como consequência do tardio atingir dos 50% de alfabetização.
Vai-me obrigar a tentar aplicar o método científico de
observação, hipótese, experimentação, referendo das conclusões, repetição do
ciclo até obter as provas, etc, etc.
Vai fazer o mesmo, não vai?
Vamos continuar a tentar.
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