segunda-feira, 26 de maio de 2014

Recordando Asterix em tempo de Piketty

Às vezes passo os olhos por textos antigos deste blogue.
Eis um post de dezembro de 2009, que salvo melhor opinião, mantem a atualidade, numa altura em que se discute a tese de Thomas Piketty sobre o fosso entre ricos e pobres, pese embora poder ferir a sensibilidade de quem pense, ou acredite, de forma diferente:

A metáfora de Asterix


Imaginemos que existiu uma grande tribo celta cujos indicadores económicos tinham atingido, quase todos, um razoável nível para a época.
Os druidas (digo druidas e não o druida chefe, porque a direcção deles era colegial, sem um salvador único), que sabiam calcular a posição do sol nos solstícios, também sabiam que o progresso económico tinha trazido questões complexas que era preciso analisar na assembleia geral dos sócios, digo dos celtas daquela tribo.
A economia dos romanos, ali não muito longe, tinha-se desenvolvido de tal maneira que havia que colocar aos celtas a questão: por que tipo de economia optar?
Pela maneira celta, em que a preocupação era que cada um produzisse o que era capaz de produzir e que se acorresse aos doentes e velhos ou aos que por qualquer motivo tivessem as suas capacidades produtivas diminuídas? Era um bom programa, mas com os progressos que os druidas tinham feito com as suas poções, os celtas cada vez viviam mais tempo como velhos e os doentes também viam as suas vidas prolongadas.
Ou pela maneira romana, de maior sucesso, premiando os mais competitivos, mas gerando com isso grandes fossos entre os patrícios e os artesãos e entre estes e os escravos?
O druida de serviço à comunicação social bem pregou aos seus concidadãos que não se deixassem enganar pelos êxitos dos romanos, conseguidos com grande inteligência e capacidade de organização, mas à custa de factores de produção mantidos artificiosamente baratos pela força dos seus exércitos, à custa de fontes de energia e de mão de obra a custos insignificantes. Os generais, os centuriões e os soldados romanos colonizavam os outros povos de acordo com o que de melhor a cultura grega tinha desenvolvido e a própria Roma, pragmática, tinha aperfeiçoado; mas sugavam-lhes as riquezas e os melhores filhos.
Tentou em vão o druida precaver os seus irmãos contra as ilusões das religiões monoteístas que se espalhavam a partir do Médio Oriente, trazidas pelos soldados romanos desmobilizados, pelos marinheiros e pela diáspora judaica, todos prometendo uma vida para além da morte, orbitando uma única divindade, a que uns chamavam Mitra e outros Iavé, e que renegavam a suprema essência da Natureza.
Mas a todos os argumentos foram os celtas insensíveis.
Porque foram tomados pela esperança cega dos jogadores, mesmo sabendo que só uns poucos, muito poucos, poderiam ganhar o jogo.
Os druidas, humildemente, não quiseram contrariar os celtas, que abandonaram a assembleia e se dirigiram à paliçada que os separava do acampamento romano.
E derrubaram completamente a paliçada.
Os bardos e os pregoeiros celebraram o facto e isso ajudou a manter a ilusão de liberdade dos celtas.
Muitas gerações depois, celtas e romanos tinham-se transformado num povo só.
Mas, na verdade, só muito poucos tinham triunfado.
Os fossos entre os poderosos e os pacíficos, que os druidas tinham anunciado, foram-se alargando impiedosamente.
Grandes quantidades de celtas e romanos não conseguiam produzir aquilo de que eram capazes porque só alguns tinham a sorte de ter o seu trabalho remunerado.
Para a maioria, os poderosos garantiam apenas um pouco do muito pão que continuavam a conseguir com grande eficiência, à custa dos baixos custos de produção, e muito, muito circo.
Os agiotas tinham expandido o seu negócio, criavam falso valor com que enganavam compradores incautos, extorquiam juros superiores aos razoáveis de modo a poderem executar as hipotecas. Por vezes eram desmascarados, mas voltavam sempre.
Apesar de tudo, a sabedoria dos druidas conseguira passar através das gerações, e aqui e ali, ainda se viam druidas.
Como será o futuro?
Serão ouvidos os druidas?

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