Agora, que vivemos sob o ímpeto desmantelador do conceito do metropolitano como serviço público prestado por um operador público, e menosprezador dos seus ativos humanos, físicos e intangíveis, faço esta reflexão a propósito da reportagem do DN/Magazine de 26 de outubro de 2014, sobre os trabalhos forçados a que alguns idosos estão sujeitos pela falencia da politica de proteção aos mais desfavorecidos.
A foto é retirada da reportagem.
No longínquo ano de 1972, quando cumpri o serviço militar no Porto, havia duas tarefas que os oficiais do quadro, alguns dos quais futuros capitães de abril, mas que nessa altura ainda nos diziam que não podiamos falar sobre o problema de Angola sem lá ir (felizmente eles foram e compreenderam), de bom grado deixavam para os milicianos executarem.
Uma era o acompanhamento dos funerais dos soldados mortos nas colónias nas suas terras. Tive a sorte de nunca ter sido escalado.
A outra, que por várias vezes executei, era o chamado processo de amparo, que encerrava alguns riscos.
Tratava-se de entrevistar a família de soldados que se reclamavam de ser o unico sustento ou amparo da familia e que portanto solicitavam a isenção da mobilização para as colónias.
Os riscos eram os de poder vir a ser acusado, em eventual recurso do exército, de excesso de generosidade, a que hipocritamente se poderia acrescentar a injustiça de um tratamento diferenciado relativamente aos que partiam para a guerra (como tudo neste mundo, realça-se um aspeto acessório quando não se quer enfrentar o problema principal, a indignidade da guerra colonial em si mesma).
Recordei isto ao deparar-se-me esta foto, de uma senhora de 81 anos, doente, que ainda trabalha quando pode e não pode a lavar escadas e que recebe a pensão mínima (lá está, eu e os privilegiados reformados do metropolitano, que protestamos porque nos cortaram um complemento de reforma superior à pensão mínima, e disso somos acusados napraça pública, por quem acha que não deve antes criticar a magreza da pensão mínima).
Recordei-me porque a imagem se sobrepôs à registada na minha memória quando visitei outra senhora numa habitação semelhante, nas realidade uma arrecadação num pátio de uma vila nas Fontaínhas.
O mesmo teto de tábuas imbricadas, numa tentativa de isolamento térmico, as cortinas, a pobreza.
À saída, depois da entrevista, a senhora (que cronologicamente poderia ser a senhora da foto), convencida talvez de que o aspirante ia propor a aprovação do pedido de isenção, meteu-me na mão uma nota de vinte escudos dobrada em quatro, desculpando-se por não poder dar mais.
Seriam hoje 5 euros, uma forma elementar de corrupção popular.
Não inclui o episódio no relatório.
Espero ter convencido a senhora que se devolvia a nota não era por a achar uma oferta indigna, e não esperava que 42 anos depois se incumprisse assim a Declaração Universal dos Direitos Humanos (lá está, porque durante esse tempo, como dizem os comentadores afetos ao paradigma dominante, eu e os meus colegas do metropolitano vivemos acima das nossas possibilidades...).
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