quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Os metropolitanos na literatura - "Underground", de Haruki Murakami

Fiz uma pequena recensão com as referências a metropolitanos na literatura ou no cinema.
Citei crónicas de Lobo Antunes, histórias do metro de Madrid, referências de Julio Cortazar, o filme Zazie dans le metro,  o sequestro do metro Pelham 1,2,3 de Nova York .
Mas uma amiga desfez o meu pretensiosismo indicando-me o livro de Haruki Murakami que eu ignorava, "Underground, o atentado de Toquio e a mentalidade japonesa" (edição Tinta da China).

Murakami é um romancista muito apreciado. Tem uma grande sensibilidade e atenção à humanidade das suas personagens.
Por isso mesmo decidiu entrevistar vítimas do atentado de 1995 com gás sarin no metropolitano de Toquio, executado por uma seita religiosa apocalítica, para tentar perceber as reações das pessoas. Estendeu depois as entrevistas a alguns dos executantes do atentado, e chegou a conclusões que me parecem as mais lúcidas sobre o fenómeno da marginalização, do auto-convencimento, do poder das religiões, das utopias e dos fundamentalismos como comportamento desviante, ou como dizem os jornalistas, do terrorismo.

Não me parece que a mentalidade japonesa seja assim tão diferente da europeia ou da portuguesa. O código genético é o mesmo. Houve pessoas disciplinadas que não reagiram aos primeiros sinais, houve outras que o fizeram, umas que ajudaram espontaneamente e outras não. Houve hospitais preparados que rapidamente aplicaram o antídoto, a atropina, e outros não, que demoraram a compreender que as pessoas se queixavam dos olhos porque é o sintoma mais evidente, a contração das pupilas, do gás sarin.
Dois funcionários do metro morreram porque pegaram nos recipientes do gás, quando as autoridades já deveriam ter divulgado os cuidados a ter com o gás sarin, que tinha sido usado há poucos meses noutro atentado num bairro, e porque foi tardia a chegada das ambulancias. Noutras estações as ambulancias chegaram rapidamente.

Em Lisboa, tivemos pouco depois uma pequena réplica de imitação, apenas com feridos ligeiros, na estação Saldanha. Alguém tinha comprado num posto de combustíveis em Espanha um bastão defensivo de gás pimenta (derivado de sementes de piri-piri) que libertou no cais. Muitas pessoas tossiram, tiveram os olhos a chorar. Houve algumas entidades que rapidamente ajudaram a resolver, com o antídoto, óleo de amendoas doces. E houve quem não soubesse o que fazer. É normal, quando não se antevêem as coisas (que é a função dos orgãos de segurança e de análise de riscos).

Transcrevo do livro de Murakami parte do seu posfácio, que deveria ser leitura obrigatória dos jornalistas e comentadores que escrevem sobre o terrorismo, o "Estado Islâmico" e os jovens europeus que a ele aderem:

"... ... cada um dos membros de elite da secção de ciencia e tecnologia da seita religiosa Aum que cometeu o atentado tinha razões pessoais para renunciar ao mundo e aderir à seita. O que eles tinham em comum era um desejo de colocar a sua capacidade técnica e o seu conhecimento ao serviço de um objetivo relevante. Não podiam evitar ter sérias dúvidas sobre o engenho utilitarista e desumano do capitalismo e sobre o sistema social em que a sua própria razão de ser iria ser esmagada infrutiferamente.
Ikuo Hayashi, o ex-cirurgião que libertou o gas sarin na linha Chiyoda, causando a morte de dois trabalhadores do metropolitano, era uma pessoa deste tipo. Tinha a reputação de ser um magnífico cirurgião dedicado aos seus pacientes. Mas é provável que por isso mesmo tenha começado a não confiar no sistema médico atual, atingido que está por contradições e defeitos. Em resultado disso, foi atraido pelo ativo mundo espiritual que a Aum oferecia, com a sua visão de uma utopia perfeita e intensa, em que os cuidados médicos  e a educação seriam dispensados de uma forma ideal... ...
... ... Teria sido inutil tentar explicar ao doutor Hayashi a distancia entre a realidade e as palavras bonitas do seu sonho.  A realidade, e também a sua perceção, é criada através de confusão e contradição, e se se excluir estes elementos, já não se está a falar de realidade. Pode pensar-se que, seguindo uma linguagem e uma lógica aparentemente consistentes, é possível excluir este aspeto da realidade, mas ele estará sempre à nossa espera, pronto para se vingar.
O triste facto é que a linguagem e a lógica, separadas da realidade, têm um poder muito maior do que a linguagem e a lógica da realidade - com todo aquele material supérfluo que pesa como uma rocha sobre as ações que cometemos  ... ...
... ... Porque teve Hayash de acabar como acabou? Somos possuidos por uma sensação de impotencia sabendo que nada poderiamos ter feito para o parar. Sentimo-nos estranhamente tristes. O que nos faz sentir ainda mais vazios, é saber que os que deveriam ser mais críticos em relação à nossa sociedade utilitarista, são aqueles que usam a utilidade da lógica como arma e acabam por chamar multidões de pessoas (nota minha: a linguagem e lógica dos burocratas decisores europeus, dos primeiro ministros, dos ministros das finanças, dos economistas do FMI e do BCE, dos comentadores televisivos que representam os diferentes interesses dos grupos económicos e financeiros serão um exemplo típico de separação da linguagem e da lógica relativamente à realidade precisamente por causa da fé cega nas próprias convicções utilitaristas, isto é, de privilégio do lucro relativamente ao interesse social).
Mas, ao mesmo tempo, quem é que alguma vez pensaria, eu sou uma pessoa insignificante e sem importancia, e se acabar como uma peça de engrenagem no sistema da sociedade, gastando-me lentamente até morrer, bem, está bem.
Todos nós, em maior ou menor grau, queremos respostas para as razões por que estamos a viver neste mundo, e porque morremos e desaparecemos.
Não deveriamos criticar uma tentativa sincera para encontrar essas respostas.
Mas este é precisamente o ponto onde um erro fatal pode aparecer. As camadas da realidade começam a ser distorcidas, o lugar que nos foi prometido, descobrimos subitamente, transformou-se em algo diferente daquilo de que estavamos à procura.
Como Mark Strand escreveu no seu poema - As montanhas já não são montanhas, o sol já não é o sol.
Para que não surja um segundo e um terceiro Ikuo Hayashi, é imperioso que a nossa sociedade pare e considere, em todas as suas ramificações, as questões tão tragicamente trazidas à superficie pelo atentado de Tóquio.
A maioria das pessoas colocou este incidente para trás das costas - Está morto e enterrado - dizem - Foi um incidente gravissimo, mas com todos os culpados na prisão já está resolvido e não tem mais nada a ver connosco.
Contudo, precisamos de compreender que quase todas as pessoas que aderem a seitas não são anormais, não são deficientes, não são excentricas. São pessoas que vivem vidas vulgares (e talvez, vistas do exterior, as suas vidas sejam mais do que vulgares) e que vivem na nossa vizinhança. 
E na vossa.
Talvez eles pensem sobre as coisas um pouco seriamente demais. Talvez haja alguma dor que carreguem consigo.
Talvez não sejam lá muito bons a dar a conhecer aos outros os seus sentimentos e estejam um tanto ou quanto perturbados.
Talvez não consigam encontrar um meio adequado de se exprimir e hesitem entre sentimentos de orgulho e de desadaptação.
Essas pessoas podiam muito bem ser eu.
Podiam ser vocês.  

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