Os factos reais ocorreram em 11 de novembro, e foram mais
uma manifestação dos reformados do metropolitano de Lisboa a quem o governo
eleito em 2011 com promessas de não reduzir os salários fez isso mesmo,
cortando a 1400 reformados, em média, 50% dos seus rendimentos (640 euros por mês).
O primeiro facto surrealista desta história será isso mesmo.
Como pode o governante achar que 1300 euros de pensão de
segurança social mais complemento de reforma é um prémio imerecido para alguém,
por ter sido um privilegiado na sua vida profissional, apesar de lhe ter sido
requerido ser um profissional qualificado dadas as exigências de segurança de
um metropolitano?
Surrealismo de insensibilidade de quem nem repara no que
está a destruir... hipocritamente se desculpando com a miséria da maioria das pensões
.
Mas nós abraçamo-nos e fazemos graça com a nossa
persistência no prazer do reencontro e da recuperação das nossas maleitas.
Embora com tristeza troquemos a informação, Maria e Idalina
já não vão aparecer mais, que o cancro do seio não perdoou, nem Pedro, que o
cancro do pâncreas foi fulminante.
Surrealismo de obsessão psico-patológica ou de simples
ignorância por inexperiência juvenil… visão tubular, que impede a perceção do
que está ao lado… afeção hipomaníaca de quem se sente predestinado para a salvação
de um povo…
Ninguém exigiu que não lhe tocassem nos rendimentos, numa
altura em que a maior parte da população sofre restrições, mas cortar 50% ? Sem
negociar? Sem sequer colocar a hipótese de passar um papelinho a dizer, nós,
governo, ficamos-vos a dever um tanto que vos pagaremos quando pudermos, ou
vamos isentar-vos de impostos no montante do que vos cortamos.
Não é assim que fazem os bancos e respetivos fundos de
pensões?
Surrealismo de tratamentos diferenciados…
- Acha que é eficaz, continuarmos a fazer estas
manifestações? Eu telefonei a 4 ou 5 colegas que nem sabiam, e até estão aí –
isto me perguntava o mestre serralheiro, que me habituei a ver resolver
problemas para que os comboios pudessem circular em segurança em cima dos
aparelhos de mudança de via, as agulhas, como lhes chamamos.
- Bem – respondi -
isto só se resolve quando este governo se for embora. Estão obcecados,
não vão mudar. Mas devemos continuar a vir. A liberdade de expressão é sagrada
e é bom que mostremos que estamos vivos. Nós, portugueses, somos assim,
fechamo-nos quando somos vítimas de um ataque, como este vírus austeritário.
Recusamos o convite de Julio Cesar para descer das montanhas, que a produtividade
da exploração agrícola na planície é mais elevada, mas aos poucos
reequilibramo-nos. Descemos das citânias para a planície. Havemos de recuperar.
Eis que o segurança da secretaria de Estado nos chama para
uma entrevista com dois assessores do senhor secretário de Estado, mas também
só duas pessoas.
Sobe a comissão por entre os doze polícias de choque que
guardam a entrada ao gabinete do assessor que é conterrâneo do senhor secretário
de Estado.
Tem a pronúncia doce das terras de Mangualde, expressão
corrente da solidariedade entre as pessoas, contrastando com a insensibilidade
perante o sofrimento alheio, como se fosse a expiação de um novo pecado por de mais
ou por de menos original ou crónico.
Não aceita o argumento de que em nenhuma parte do mundo a
exploração de um metropolitano gera receitas suficientes para cobrir as
despesas.
Repete o mantra do senhor secretário de Estado que quer
inovar, quer reduzir custos e chegar ao EBITDA positivo.
Um dos nossos lhe diz que não precisa de invocar a inovação
porque tecnologicamente , enquanto pôde investir, o metropolitano inovou ao
nível dos metropolitanos dos países desenvolvidos.
Que são os técnicos, não os economistas, que estão
licenciados para analisarem a consistência, para utilizar um conceito
anglo-saxónico, das propostas de inovação.
E não resistiu a contar ao assessor o caso da inovação da
tela do contentor de hidrogénio do zepelin Hindenburg, recém inventada pela
industria química alemã dos anos 30. A superfície era tão lisa que o atrito era
muito menor do que nos outros zepelins e por isso consumia menos combustível e
navegava mais depressa. Porém, as suas características dielétricas levavam a
que se acumulassem cargas elétricas que provocaram o incendio fatal quando o
cabo tocou a torre de amarração.
Ou a inovação da querena italiana, que permitiu ganhos
extraordinários no transporte da pimenta e da seda da Índia no século XVI.
Ganhos extraordinários e um aumento exponencial nos naufrágios por debilitação
das estruturas indevidamente reparadas por falta de vistoria e calafetagem a
seco dos cascos. A calafetagem era mais rápida deitando a nau no próprio rio, sem
a pôr a seco. Os armadores poupavam, mas morriam mais marinheiros.
Insensível ao argumento, o assessor encerrou a reunião mostrando-se muito menos preocupado com a questão dos complementos de reforma do metropolitano ou com a concessão do metropolitano do que com a concessão da rede de autocarros da sua terra.
Insensível ao argumento, o assessor encerrou a reunião mostrando-se muito menos preocupado com a questão dos complementos de reforma do metropolitano ou com a concessão do metropolitano do que com a concessão da rede de autocarros da sua terra.
Saiu do edifício da secretaria de Estado para uma rua
deserta dos manifestantes. Dos que até aqui se falou.
Estranhou, quando se voltou, já não ver o segurança, como se
ele tivesse desaparecido assim que passara por ele.
As pessoas vestiam-se de forma esquisita e quase todas
falavam uma língua estrangeira.
O café em frente tinha mudado, era agora uma loja-oficina de
artesanato sofisticado. O restaurante da esquina transformara-se num escritório
envidraçado onde se programavam jogos de computador e de vídeo. Ao lado uma
loja de venda de imobiliário a estrangeiros com benefícios fiscais e ao fundo
da rua, no largo, uma assembleia de turistas em animação promovida pela agència
de turismo de Lisboa. Saem do próprio edifício que abandonara torrentes de
jovens de pele e olhos claros, em idade fértil e de pujança intelectual - não
haverá empregos em que se ocupem, na sua terra? – clientes constantes de
apartamentos de alojamento local.
Arrancou com o carro que era da secretaria de Estado, queria
ir a Mangualde, a uma sessão com o secretário de Estado e as autarquias da
região, para analisar projetos industriais a beneficiar dos fundos comunitários
e, naturalmente, discutir a concessão da
rede de autocarros urbanos e a sua vertente porta a porta com táxis, mas não os
queria elétricos, que não era esse o interesse do setor importador automóvel.
Mais uma vez estranhou, subindo a rua da Misericórdia, as pessoas e os
objetos desapareciam rapidamente no retrovisor, à medida que o carro avançava,
como se o mundo se fechasse atrás dele, ou se saísse de um tempo e de um espaço
e entrasse noutros muito diferentes.
Estaria a assistir à destruição de um mundo? Recordou
desagradado o que um velho professor lhe tinha dito, “vocês destroem o que
outros construíram, transformam em ruina o que tocam”.
Como um autómato sem cognição chegou a Mangualde. Não
encontrou o edifício que lhe tinham indicado para a sessão.
Vagueou desorientado. Sentou-se num banco de pedra do largo
do doutor Couto, olhando a boca rotunda da avenida.
Surpreendeu-se ao perceber que esperava o autocarro do
princípio da noite.
Toda a noite arrostou o frio, esperando agora o autocarro da
madrugada.
Mas nenhum autocarro chegou, ninguém viajou no autocarro.
Ninguém vem a Mangualde.
Tudo é diferente agora, fábricas fechadas depois que ele e o
seu secretário de Estado passaram pelo governo, a promessa incumprida de uma
outra linha de caminho de ferro, construída segundo a tecnologia dos novos dias
e de bitola europeia, o projeto afogado nas discussões estéreis dos conceitos
de transporte de passageiros e de mercadorias enquanto se perdia a oportunidade
dos fundos comunitários, a população fechada sobre si própria em economia de
subsistência nas terras a que tinham retornado.
Ninguém vem agora a Mangualde, nem descendo na antiga gare,
do comboio de via ibérica.
Não chega nenhum autocarro vindo da antiga gare.
E ele lá continua, surrealmente imune às intempéries, de
metabolismo suspenso como um país paralisado por um veneno e desintegrado no
tempo, no banco de pedra do largo do doutor Couto, olhando para a avenida,
esperando o autocarro que não vem.
E contudo, a esperança renasce e move-se, contrariando os
surrealismos desta narração, desceremos das montanhas, pelo nosso pé.
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