domingo, 16 de novembro de 2014

O autocarro de Mangualde – mininovela surrealista em que dois universos diferentes partilham breves momentos, em mais uma manifestação de reformados do metropolitano



Os factos reais ocorreram em 11 de novembro, e foram mais uma manifestação dos reformados do metropolitano de Lisboa a quem o governo eleito em 2011 com promessas de não reduzir os salários fez isso mesmo, cortando a 1400 reformados, em média, 50% dos seus rendimentos  (640 euros por mês).
O primeiro facto surrealista desta história será isso mesmo.
Como pode o governante achar que 1300 euros de pensão de segurança social mais complemento de reforma é um prémio imerecido para alguém, por ter sido um privilegiado na sua vida profissional, apesar de lhe ter sido requerido ser um profissional qualificado dadas as exigências de segurança de um metropolitano?
Surrealismo de insensibilidade de quem nem repara no que está a destruir... hipocritamente se desculpando com a miséria da maioria das pensões .
Mas nós abraçamo-nos e fazemos graça com a nossa persistência no prazer do reencontro e da recuperação das nossas maleitas.
Embora com tristeza troquemos a informação, Maria e Idalina já não vão aparecer mais, que o cancro do seio não perdoou, nem Pedro, que o cancro do pâncreas foi fulminante.
Surrealismo de obsessão psico-patológica ou de simples ignorância por inexperiência juvenil… visão tubular, que impede a perceção do que está ao lado… afeção hipomaníaca de quem se sente predestinado para a salvação de um povo…
Ninguém exigiu que não lhe tocassem nos rendimentos, numa altura em que a maior parte da população sofre restrições, mas cortar 50% ? Sem negociar? Sem sequer colocar a hipótese de passar um papelinho a dizer, nós, governo, ficamos-vos a dever um tanto que vos pagaremos quando pudermos, ou vamos isentar-vos de impostos no montante do que vos cortamos.
Não é assim que fazem os bancos e respetivos fundos de pensões?
Surrealismo de tratamentos diferenciados…
- Acha que é eficaz, continuarmos a fazer estas manifestações? Eu telefonei a 4 ou 5 colegas que nem sabiam, e até estão aí – isto me perguntava o mestre serralheiro, que me habituei a ver resolver problemas para que os comboios pudessem circular em segurança em cima dos aparelhos de mudança de via, as agulhas, como lhes chamamos.  
- Bem – respondi -  isto só se resolve quando este governo se for embora. Estão obcecados, não vão mudar. Mas devemos continuar a vir. A liberdade de expressão é sagrada e é bom que mostremos que estamos vivos. Nós, portugueses, somos assim, fechamo-nos quando somos vítimas de um ataque, como este vírus austeritário. Recusamos o convite de Julio Cesar para descer das montanhas, que a produtividade da exploração agrícola na planície é mais elevada, mas aos poucos reequilibramo-nos. Descemos das citânias para a planície. Havemos de recuperar.
Eis que o segurança da secretaria de Estado nos chama para uma entrevista com dois assessores do senhor secretário de Estado, mas também só duas pessoas.
Sobe a comissão por entre os doze polícias de choque que guardam a entrada ao gabinete do assessor que é conterrâneo do senhor secretário de Estado.
Tem a pronúncia doce das terras de Mangualde, expressão corrente da solidariedade entre as pessoas, contrastando com a insensibilidade perante o sofrimento alheio, como se fosse a expiação de um novo pecado por de mais ou por de menos original ou crónico.
Não aceita o argumento de que em nenhuma parte do mundo a exploração de um metropolitano gera receitas suficientes para cobrir as despesas.
Repete o mantra do senhor secretário de Estado que quer inovar, quer reduzir custos e chegar ao EBITDA positivo.
Um dos nossos lhe diz que não precisa de invocar a inovação porque tecnologicamente , enquanto pôde investir, o metropolitano inovou ao nível dos metropolitanos dos países desenvolvidos.
Que são os técnicos, não os economistas, que estão licenciados para analisarem a consistência, para utilizar um conceito anglo-saxónico, das propostas de inovação.
E não resistiu a contar ao assessor o caso da inovação da tela do contentor de hidrogénio do zepelin Hindenburg, recém inventada pela industria química alemã dos anos 30. A superfície era tão lisa que o atrito era muito menor do que nos outros zepelins e por isso consumia menos combustível e navegava mais depressa. Porém, as suas características dielétricas levavam a que se acumulassem cargas elétricas que provocaram o incendio fatal quando o cabo tocou a torre de amarração.
Ou a inovação da querena italiana, que permitiu ganhos extraordinários no transporte da pimenta e da seda da Índia no século XVI. Ganhos extraordinários e um aumento exponencial nos naufrágios por debilitação das estruturas indevidamente reparadas por falta de vistoria e calafetagem a seco dos cascos. A calafetagem era mais rápida deitando a nau no próprio rio, sem a pôr a seco. Os armadores poupavam, mas morriam mais marinheiros.
Insensível ao argumento, o assessor encerrou a reunião mostrando-se muito menos preocupado com a questão dos complementos de reforma do metropolitano ou com a concessão do metropolitano do que com a concessão da rede de autocarros da sua terra.

Saiu do edifício da secretaria de Estado para uma rua deserta dos manifestantes. Dos que até aqui se falou.
Estranhou, quando se voltou, já não ver o segurança, como se ele tivesse desaparecido assim que passara por ele.
As pessoas vestiam-se de forma esquisita e quase todas falavam uma língua estrangeira.
O café em frente tinha mudado, era agora uma loja-oficina de artesanato sofisticado. O restaurante da esquina transformara-se num escritório envidraçado onde se programavam jogos de computador e de vídeo. Ao lado uma loja de venda de imobiliário a estrangeiros com benefícios fiscais e ao fundo da rua, no largo, uma assembleia de turistas em animação promovida pela agència de turismo de Lisboa. Saem do próprio edifício que abandonara torrentes de jovens de pele e olhos claros, em idade fértil e de pujança intelectual - não haverá empregos em que se ocupem, na sua terra? – clientes constantes de apartamentos de alojamento local.
Arrancou com o carro que era da secretaria de Estado, queria ir a Mangualde, a uma sessão com o secretário de Estado e as autarquias da região, para analisar projetos industriais a beneficiar dos fundos comunitários e, naturalmente,  discutir a concessão da rede de autocarros urbanos e a sua vertente porta a porta com táxis, mas não os queria elétricos, que não era esse o interesse do setor importador automóvel.
Mais uma vez estranhou, subindo  a rua da Misericórdia, as pessoas e os objetos desapareciam rapidamente no retrovisor, à medida que o carro avançava, como se o mundo se fechasse atrás dele, ou se saísse de um tempo e de um espaço e entrasse noutros muito diferentes.
Estaria a assistir à destruição de um mundo? Recordou desagradado o que um velho professor lhe tinha dito, “vocês destroem o que outros construíram, transformam em ruina o que tocam”.
Como um autómato sem cognição chegou a Mangualde. Não encontrou o edifício que lhe tinham indicado para a sessão.
Vagueou desorientado. Sentou-se num banco de pedra do largo do doutor Couto, olhando a boca rotunda da avenida.
Surpreendeu-se ao perceber que esperava o autocarro do princípio da noite.
Toda a noite arrostou o frio, esperando agora o autocarro da madrugada.
Mas nenhum autocarro chegou, ninguém viajou no autocarro.
Ninguém vem a Mangualde.
Tudo é diferente agora, fábricas fechadas depois que ele e o seu secretário de Estado passaram pelo governo, a promessa incumprida de uma outra linha de caminho de ferro, construída segundo a tecnologia dos novos dias e de bitola europeia, o projeto afogado nas discussões estéreis dos conceitos de transporte de passageiros e de mercadorias enquanto se perdia a oportunidade dos fundos comunitários, a população fechada sobre si própria em economia de subsistência nas terras a que tinham retornado.
Ninguém vem agora a Mangualde, nem descendo na antiga gare, do comboio de via ibérica.
Não chega nenhum autocarro vindo da antiga gare.
E ele lá continua, surrealmente imune às intempéries, de metabolismo suspenso como um país paralisado por um veneno e desintegrado no tempo, no banco de pedra do largo do doutor Couto, olhando para a avenida, esperando o autocarro que não vem.
E contudo, a esperança renasce e move-se, contrariando os surrealismos desta narração, desceremos das montanhas, pelo nosso pé.


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