O solstício de inverno marca o início do crescimento dos dias no ciclo anual e, nas culturas primitivas, a promessa de futuras colheitas e de melhores condições para a caça.
Desde esses tempos que no cérebro humano o solstício ficou associado à esperança e à confiança, por isso é uma época festiva.
Para os reformados do metropolitano de Lisboa, para quem o pagamento dos complementos de reforma continua suspenso, é também uma época de expetativa de os voltar a receber, pelo menos em parte significativa, e de que o montante que não foi pago nestes 2 anos venha a constituir um fundo de pensões.
Esta é mais uma fonte de críticas por parte dos economistas pressurosamente cumpridores dos critérios austeritários que repetem que não há dinheiro e que não se pode renegociar a dívida, não obstante os relatórios do FMI que a justificam.
Claro que não há dinheiro se as rendas das PPP e da energia se mantiverem, se os bancos continuarem a absorver os auxílios estatais, se as isenções de IMI se mantiverem, se continuarem a ser desperdiçados os fundos comunitários que poderiam ser aplicados em investimentos de mão de obra intensiva e se se continuar a pagar a barbaridade de 8 mil milhões de euros de juros por ano.
Entretanto, pacatamente, os reformados do metro lá foram cumprindo um dos rituais anuais, a prova de que ainda estão vivos, assinando no departamento de recursos humanos a respetiva folha.
Nem todos o puderam fazer, que as leis da renovação populacional não perdoam, mas lá vamos vencendo o desânimo e a frustração da marginalização que é imposta aos reformados.
Neste solstício de 2015 vou imaginar um desdobramento de mim próprio e um diálogo entre o eu que sou agora (E0) e o eu que talvez, se lá chegar, serei daqui a dez anos (E10).
Diálogo de reformados do metro no solstício de inverno
E10 - Obrigado por me vires buscar. Já me custa conduzir e vou deixar caducar a carta. A tua boleia é preciosa. Estou a ver que se não me vêm buscar fico limitado a umas voltinhas no bairro. Custa-me a descer as escadas do metro, nem todas as estações têm elevador.
E0 - Mas mexes-te bem?
E10 - Mexo, mexo, com uma bengala, mexo. Ao princípio tinha um raio de autonomia restrito por causa da próstata, de casa para o café para ler o jornal e voltar para casa, mas desde que uso as fraldas para incontinentes que me estou nas tintas para a falta de instalações sanitárias públicas.
E0 - Mais um incumprimento do nosso metro, devia ter as instalações sanitárias a funcionar, nem que fosse com moedas de 20 cêntimos. Já reparaste que fazemos 56 anos de exploração? Vamos ter de comemorar isso. Hoje almoçamos lá no refeitório, depois da prova de vida. Já que deixou de haver os almoços para todos os reformados promovidos pela administração.
E10 - É verdade, lembro-me do almoço na feira das indústrias, no pavilhão da Tapada da Ajuda, e nas naves das oficinas do PMOII e do PMOIII. Discursos finos que se faziam.
E0 - Pois era, parece que agora somos acusados de ter gasto mal o dinheiro. Tens lido as notícias sobre a reversão das concessões?
E10 - Tenho. Fiquei preocupado com a reação dos embaixadores que protestaram.
E0 - Andaste a ler os pressurosos comentadores e economistas que rasgaram as vestes escandalizados com a ameaça ao investimento externo. Eu penso que se eles estivessem mesmo preocupados com o investimento externo, todos os dias falavam nas candidaturas aos fundos comunitários para financiamento das infraestruturas ferroviárias e energéticas. Mas não, os prazos vão passando e continuam a propalar que se desbarataram os fundos do QREN em autoestradas. Quando se gastaram apenas 17% dos fundos em infraestruturas rodoviárias. Olha, quanto aos embaixadores, eu gostaria que lhes tivessem dito umas coisas. Ao embaixador inglês, que lhe recordassem o boicote que as empresas inglesas fizeram ao metro logo a seguir ao 25 de abril. Deixaram de fornecer peças de reserva para os equipamentos ingleses. Mas os comboios não pararam por causa disso. Não vamos agora parar porque a National Express perdeu uma concessão. A recordar-lhe também os acidentes que se seguiram às privatizações da Thatcher e as falencias das companhias privadas no metro de Londres. Quantos aos mexicanos, era recordar o testemunho de um colega do metro de Barcelona que tinha ido a uma reunião da associação de metros sul-americana-ibérica, Alamys e testemunhou um assalto armado à porta do hotel logo no primeiro dia. Voltou logo para Barcelona depois de informar o colega mexicano que voltaria quando o país fosse civilizado.
E10 - Chi, essa é forte.
E0 - Pois é, mas ainda há bem pouco tempo os barões da droga mandaram matar um autocarro cheio de miúdos. Isso é civilizado? Basta ver os filmes americanos sobre os conflitos da droga no México...E para o embaixador francês a resposta era fácil. Graças aos colegas da RATP e da SNCF os burocratas de Bruxelas tiveram de moderar os seus ímpetos fundamentalistas de defesa dos mercados livres e concorrenciais. Basta ler o regulamento 1370/2007 dos transportes, quando ele diz que "numerosos serviços de transporte constituem uma necessidade em termos de interesse económico geral que não são passíveis de exploração comercial. As autoridades competentes dos Estados-Membros devem ter a possibilidade de intervir". E que "para o direito comunitário é irrelevante o operador ser público ou privado". Isto para os comentadores de direita devem ser facadas nas costas, a própria Bruxelas a passar por cima dos dogmas liberais. Valha a verdade que nas diretivas sobre a coordenação dos contratos públicos (2014/25 e 2014/24, que revogaram as diretivas 2004/17 e 2004/18) e sobre os contratos de concessões (2014/23) a linguagem é mais suave para os liberais, mas ainda assim se escrevem coisas como "nada na presente diretiva obriga os Estados-Membros a confiar a terceiros, mediante contrato, ou a externalizar a prestação de serviços que pretendam eles próprios prestar" , ou "a presente diretiva tampouco deverá prejudicar a competência das autoridades nacionais, regionais e locais para prestar, mandar executar e financiar serviços de interesse económico geral". Aliás, a companhia ligada à RATP percebeu que as condições do caderno de encargos não eram vantajosas e nem concorreu. O que não é um elogio para quem concorreu, que no fundo, por uma questão de prudência e fazendo prova de conhecimento do negócio, seria de esperar que não concorresse. Isto devia ser explicado aos embaixadores. No primeiro ano, arriscavam-se a ter um prejuízo de 9 milhões de euros se cumprissem o contrato.
E10 - E que dizes do ministro do ambiente?
E0 - É um bocadinho bisonha esta coisa dos transportes no ministério do ambiente, embora isto dos transportes seja muito responsável pelas tais emissões de CO2, e por isso mesmo me parecia mais ajustada a integração num ministério da energia, de que o ambiente também dependesse, que a energia é mesmo o problema fundamental da humanidade. Mas o que é facto é que o ministro manifesta disponibilidade para aceitação do conceito de serviço público. Talvez tenha havido alguma confusão com aquela de dizer que só um terço de um serviço pode ser concessionado. Penso que terá sido influencia de uma disposição antiga nos contratos de adjudicação de obras públicas que limitava a um mínimo de 30% a subcontratação. Mas o essencial do regulamento é que o operador que recebe a concessão ou subconcessão deve depender da autoridade pública.
E10 - Pois é, mas contratos são contratos.
E0 - Pois são, tal como o contrato dos complementos de reforma e nós estamos dispostos a renegociá-lo. Mas o texto do regulamento é claro. A entidade pública pode conceder a operação, a manutenção e o desenvolvimento de uma rede de transporte a um operador privado, que fica a chamar-se operador interno, e que ficará funcionalmente dependente da entidade concedente, incluindo através da participação no conselho de administração. É isso que vemos nos contratos do Sérgio Monteiro?
E10 - Esse senhor convencido, coitado, portou-se como o miúdo arrogante e ignorante que achincalha os velhotes e estraga tudo em que toca, mas tem muitos fãs nos comentários na internet, a vociferar "privatizem já tudo, para acabar com as greves".
E0 - Esse é o nosso ponto fraco. Nós não devíamos fazer greves com paralisação porque desse modo não ganhamos o apoio de quem trabalha e precisa do metro para ir trabalhar. Mas há mais nos contratos de concessão que permitem anulá-los por manifesto incumprimento dos normativos comunitários, e nós não queremos faltar aos compromissos internacionais, não é?
E10 - Explica lá, que eu já não tenho idade para andar a pesquisar a legislação comunitária.
E0 - Ora, para além do que já disse, o contrato devia e não o fez, definir com clareza o grau da possível subcontratação pelo concedente ou pelo próprio subconcessionário ou operador interno; devia ter incluido a relação qualidade-preço nos critérios de avaliação e não o fez, apenas incluiu o preço; devia impor a dependencia do operador interno relativamente ao concedente e não o fez. E finalmente, por falar em concedente, legalmente o concedente não pode ser o Estado mas sim a câmara de Lisboa ou, no limite, a área metropolitana.
E10 - O que quer dizer que o contrato é nulo.
E0 - Precisamente, por muito que desagrade aos embaixadores.
E10 - E aos economistas e comentadores pressurosos, como tu dizes. E olha, como está o ambiente aqui no metro? dos nossos colegas mais novos no ativo?
E0 - Bem, uns queixam-se da falta de planeamento e de definição de objetivos concretos, e isso pode ser mau sinal das intenções de uma administração que veio para aqui como comissários políticos para preparar o metro e a Carris para a privatização. E se queres que te diga eu até acho bem a fusão de tudo o que seja transporte urbano. Por mim até incluía os suburbanos da CP. Mas claro que os critérios não podiam ser os de comissários políticos. Deverá haver uma gestão participada, descentralizada e desenvolvimentista, e os gestores serem nomeados após concurso. Deveria dar-se mais atenção ao conceito de engenharia, como dinâmica de resolução, não de bancos, mas de problemas, no caso de transporte de pessoas; onde há problemas complexos tem de haver engenharia. Deixarem-se da obsessão de cortar nos quadros de pessoal Mas por outro lado há colegas que se queixam de excesso de trabalho e de prazos apertados, por exemplo a equipa responsável pelo controle das empreitadas de acabamentos e especialidades da extensão à Reboleira, que esperemos esteja a funcionar no equinócio da primavera.
E10 - Ainda chegaste a trabalhar nos projetos da Reboleira, não foi?
E0 - Não, não, os comissários políticos da altura já me tinham posto na prateleira, mas ainda acompanhei o arranque dos trabalhos e devo dizer que me deu muito prazer ver o progresso dos trabalhos, coordenados por um jovem arquiteto, demonstrando que as capacidades de trabalho não são monopólio de nenhuma formação específica.
E10 - E as estações de Arroios e Areeiro, que impedem a exploração na linha verde com comboios de 6 carruagens?
E0 - Pois, esse é um ponto negro. Aos anos que isso podia estar resolvido, o contrato para Arroios chegou a estar assinado. Mas a câmara teve medo dos protestos porque era preciso interromper o transito à superficie e nessa altura decorriam as obras de S.Sebastião e aproximavam-se umas eleições. No Areeiro apareceram os conflitos do costume com o empreiteiro , quando se adjudica ao mais barato. Neste momento, sei que outro jovem arquiteto tem o projeto pronto com uma solução relativamente económica, que as obras podem ser candidatadas a fundos europeus e que não há razão para não lançar o concurso.
E10 - Os tais pressurosos vão dizer que não há dinheiro.
E0 - Pois vão, sofrem do complexo da inibição à aproximação da obra. Vão adiando as decisões.
Outra linha de atuação com fundos comunitários era decidirem-se por cumprir a legislação comunitária e adaptar as estações principais que ainda faltam aos passageiros com limitações de mobilidade. Não se admite que estações de correspondência como o Campo Grande, Jardim Zoológico, Entrecampos, Colégio Militar, não tenham elevadores.
E10 - Sem esquecer as instalações sanitárias adaptadas também a pessoas com mobilidade reduzida.
E0 - Isso mesmo, mas voltando à estação de Arroios e à questão da greve que afasta os utilizadores dos trabalhadores do metro, até porque infelizmente para quem não trabalha no metro, o ordenado médio no metro (talvez à volta de 1200€) é superior ao ordenado médio nacional (talvez à volta de 900€): existem pareceres dos tribunais superiores proibindo greves de zelo, algumas greves intermitentes, algumas greves parciais, embora noutros países europeus sejam autorizadas.
E10 - Greve tem de ser sempre com paralisação, segundo os jurídicos, não é?
E0 - Pois é, embora eu pensasse que teria mais impacto uma greve de zelo em que os comboios sofressem uma ligeira perturbação nalgumas paragens enquanto o pessoal explicava as normas de segurança, à imagem do que se faz na aviação. Mas os jurídicos são assim, pronto. O que se podia fazer era definir serviços mínimos muito próximos dos 100%, para não prejudicar os passageiros. Ou simplesmente decretar a greve e chegar à véspera e desconvocá-la. Ou melhor ainda, no dia de greve fechavam-se as estações de Arroios e Areeiro e punham-se 90% de comboios na linha verde, mas com 6 carruagens, que ainda assim haveria maior capacidade de transporte do que atualmente com 3 carruagens.
E10 - Vamos a ver como vão correr as negociações da contratação coletiva, agora sob o novo governo, que tanto trabalho deu a conseguir. A ver se se respeitam mais os trabalhadores, em lugar de andar a desacreditá-los como se fossem uns privilegiados.
E0 - Há quem diga que a comissão sindical devia contratar uma agência de comunicação para defender a causa junto do público.
E10 - Ou formávamos uma parceria de comunicação com a doutora Raquel Varela, já que ela tem tanta visibilidade televisiva (ver a partir do minuto 28:30 as "regalias dos ferroviários"/salários em espécie à custa das reformas) .
http://www.rtp.pt/play/p2046/e217358/o-ultimo-apaga-a-luz
http://www.rtp.pt/play/p2046/e218933/o-ultimo-apaga-a-luz
http://www.rtp.pt/play/p2046/e219569/o-ultimo-apaga-a-luz
E0 - Atenção, finalmente chegámos ao metro, vou deixar o carro ali nos visitantes. Os recursos humanos são no rés do chão do edifício principal, ao fundo do corredor, à esquerda.
E10 - Olha, repara como são simpáticas as nossas colegas mais novas. Bem, eram mais novas quando estávamos ao serviço, mas continuam com muito boa aparência, e tratam-me melhor a mim do que a ti, por ser mais velho.
E0 - Não digo que não, mas vamos despachar isto e depois vamos almoçar ao refeitório, que também nos vão tratar lá bem. Matamos as saudades dos nossos colegas mais novos. E agora vejo que depois do almoço, ao fim da tarde, há uma pequena comemoração nas oficinas do aniversário do metro, 56 anos, como já se fazia no nosso tempo, com uns brindes ao futuro em que há que ter confiança, a comemoração do grupo dos "paparucos". Ainda há gente boa.
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