Chamou-me a atenção e causou-me alguma surpresa dado o alinhamento explícito com a política norte-americana o editorial do Público de 27 de dezembro de 2021
https://www.publico.pt/2021/12/27/opiniao/editorial/nao-olhem-cima-1989948
Por isso enviei ao seu autor o seguinte comentário:
Caro David Pontes
Não sou especialista de geoestratégia político-militar nem tenho de dar conselhos a ninguém, mas como tenho há alguns anos muitos cabelos brancos venho transmitir-lhe a minha surpresa pelo editorial de dia 27 de dezembro.
Se bem percebi a referência ao “Não olhem para cima”, não são só as
alterações climáticas que nos ameaçam e não queremos ver, é também a ameaça da
guerra enquanto conflito armado que não nos deixará espaço para olhar para
cima. Esperemos que não, que não seja preciso um Robert Duvall e seus heróis
companheiros virem salvar-nos, como noutro filme americano “Deep Impact”, agora
que a NASA está a tratar do assunto.
Dirá que nos compete a nós também, não só à NASA ou ao Robert Duvall, evitar o cometa, perdão,
o conflito armado, e olhar bem para cima.
A alternativa que propõe para evitar isso será outro tipo de guerra, “como
o melhor caminho continua a ser o da paz, é nas sanções económicas e no apoio à
Ucrânia que a Europa deve ir à guerra”.
Sanções económicas? Que vão agravar as condições socio-económicas dos
mais fracos enquanto outros se unem em torno do chefe, não esquecer que a
Russia detém recursos e tecnologia que lhe dão elevado grau de autonomia. Recorda-se
daquele senhor professor catedrático que declarou que a Rússia não tinha
capacidade tecnológica para enviar satélites para o espaço, na precisa véspera
do lançamento com êxito do Sputnik? Ou do apresamento da traineira russa de
espionagem que tinha microprocessadores 8085 no próprio ano do lançamento
deste? Ou, logo a seguir à implosão da
URSS, do apressado contrato de transferência da tecnologia dos motores de
foguetão RD-180 da russa Energomash para a Lockheed Martin fornecedora da NASA?
Ou que por esse tempo, já voavam aviões Tupolev alimentados por hidrogénio? Ou que
a Toyota plagiou nos seus híbridos o admirável conversor epicicloidal de
binário PSD (power split device) que tinha sido desenvolvido por uma empresa
russa, tendo os tribunais alemães aspergido o caso com água benta?
Não estou a evocar com nostalgia nenhuma ideologia, a musica de
Tchaikowsky, de Rachmaninoff ou de Chostakovitch é boa independentemente do que
pensava cada um deles, estou a mostrar respeito pela criatividade e capacidade
tecnológica de um povo e a dizer que o melhor caminho não são as sanções mas o
reforço do intercâmbio e dos diversos contactos. Até Salazar apoiava as
exportações de cortiça para a URSS e Freitas do Amaral, noutro contexto,
pregava os torneios sem boicotes de futebol, como deviam ser os jogos olímpicos
respeitando a ideia original.
Vem a propósito citar uma notícia recente numa revista técnica de comboios, os operadores ferroviários da Austria, da Hungria e da Rússia assinaram um contrato de cooperação, em complemento da nova rota da seda, para o desenvolvimento do transporte de mercadorias entre a China, a Rússia e os Balcãs e o resto da Europa. https://fcsseratostenes.blogspot.com/2021/12/cooperacao-versus-competicao.html
Os técnicos entendem-se melhor do que os políticos e, em homenagem a
David Ricardo, preocupam-se que os vagões regressem também cheios (que diria
David Ricardo do boicote do Nordstream 2,
numa altura em que os preços sobem por escassez de gás natural e que de
Washington soam alarmes, ai de quem não nos comprar gás , de xisto …?).
A minha surpresa resulta ainda de ver neste editorial um alinhamento
com as razões do “protetor americano” e uma resignação com o regresso da lógica
dos blocos.
Peço-lhe que considere o art.7º.2) da Constituição da República, a
nossa, não a dos USA, “Portugal preconiza … a dissolução dos blocos
político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletivo … “ Objetivo ambicioso, que ingenuamente eu
penso que deveria ter sido abraçado pela comunicação social e não parece ter sido.
E que, para avaliar como ficamos na fotografia sob o manto protetor do
tio Sam e dos seus parceiros na guerra aos infiéis do Iraque (relembro Carne
Ross, deve conhecer), nada como a releitura das Crónicas de Inglaterra, de Eça
de Queiroz, com o seu cortejo de bombardeamentos de Alexandria e do
Afeganistão, muitos anos antes da promiscuidade entre a CIA e Pinochet, ou da remansosa
rotina em horário de expediente, no Wisconsin, numa sala de comando remoto de drones mortíferos em zonas rurais do Afeganistão,
com danos eufemisticamente colaterais (estado terrorista são sempre os outros,
nós não, nunca, repitamos muitas vezes); ou a releitura de Amin Maalouf nas “Cruzadas
vistas pelos olhos dos outros”.
Anos e anos que nos fazem a cabeça desde criancinhas, “a eles, a eles, por
S.Jorge, guerra aos infiéis” (S.Jorge, personagem lendária, sem testemunhos
históricos coevos, com origem em lendas do tempo e locais das cruzadas, como Humberto
Eco, na sua “História das terras e lugares lendários” desalentadamente desabafa
que continuamos como há milénios atrás de ilusões).
Vai ter de continuar a ser assim?
Sinceramente, com amigos e parceiros destes, para que precisamos de
inimigos russos e chineses? (atenção que nem de perto nem de longe estou a
silenciar os crimes de Estaline, os oligopólios de Putin ou as falhas de direitos humanos na China de
hoje, nem tampouco insinuar que devemos sair da UE, nem pensar nisso).
Com votos de saúde, e esperança de maior espírito de conciliação, envio
os melhores cumprimentos
Fernando Santos e Silva
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