quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Um caso de geoestratégia político-militar

 Chamou-me a atenção e causou-me alguma surpresa dado o alinhamento explícito com a política norte-americana o editorial do Público de 27 de dezembro de 2021

https://www.publico.pt/2021/12/27/opiniao/editorial/nao-olhem-cima-1989948

Por isso enviei ao seu autor o seguinte comentário:



Caro David Pontes

Não sou especialista de geoestratégia político-militar nem tenho de dar conselhos a ninguém, mas como tenho há alguns anos muitos cabelos brancos venho transmitir-lhe a minha surpresa pelo editorial de dia 27 de dezembro.

Se bem percebi a referência ao “Não olhem para cima”, não são só as alterações climáticas que nos ameaçam e não queremos ver, é também a ameaça da guerra enquanto conflito armado que não nos deixará espaço para olhar para cima. Esperemos que não, que não seja preciso um Robert Duvall e seus heróis companheiros virem salvar-nos, como noutro filme americano “Deep Impact”, agora que a NASA está a tratar do assunto.

Dirá que nos compete a nós também, não só à NASA  ou ao Robert Duvall, evitar o cometa, perdão, o conflito armado, e olhar bem para cima.

A alternativa que propõe para evitar isso será outro tipo de guerra, “como o melhor caminho continua a ser o da paz, é nas sanções económicas e no apoio à Ucrânia que a Europa deve ir à guerra”.

Sanções económicas? Que vão agravar as condições socio-económicas dos mais fracos enquanto outros se unem em torno do chefe, não esquecer que a Russia detém recursos e tecnologia que lhe dão elevado grau de autonomia. Recorda-se daquele senhor professor catedrático que declarou que a Rússia não tinha capacidade tecnológica para enviar satélites para o espaço, na precisa véspera do lançamento com êxito do Sputnik? Ou do apresamento da traineira russa de espionagem que tinha microprocessadores 8085 no próprio ano do lançamento deste? Ou, logo a seguir  à implosão da URSS, do apressado contrato de transferência da tecnologia dos motores de foguetão RD-180 da russa Energomash para a Lockheed Martin fornecedora da NASA? Ou que por esse tempo, já voavam aviões Tupolev alimentados por hidrogénio? Ou que a Toyota plagiou nos seus híbridos o admirável conversor epicicloidal de binário PSD (power split device) que tinha sido desenvolvido por uma empresa russa, tendo os tribunais alemães aspergido o caso com água benta?

Não estou a evocar com nostalgia nenhuma ideologia, a musica de Tchaikowsky, de Rachmaninoff ou de Chostakovitch é boa independentemente do que pensava cada um deles, estou a mostrar respeito pela criatividade e capacidade tecnológica de um povo e a dizer que o melhor caminho não são as sanções mas o reforço do intercâmbio e dos diversos contactos. Até Salazar apoiava as exportações de cortiça para a URSS e Freitas do Amaral, noutro contexto, pregava os torneios sem boicotes de futebol, como deviam ser os jogos olímpicos respeitando a ideia original.

Vem a propósito citar uma notícia recente numa revista técnica de comboios, os operadores ferroviários da Austria, da Hungria e da Rússia assinaram um contrato de cooperação, em complemento da nova rota da seda, para o desenvolvimento do transporte de mercadorias  entre a China, a Rússia e os Balcãs e o resto da Europa.   https://fcsseratostenes.blogspot.com/2021/12/cooperacao-versus-competicao.html

Os técnicos entendem-se melhor do que os políticos e, em homenagem a David Ricardo, preocupam-se que os vagões regressem também cheios (que diria David Ricardo do boicote do Nordstream 2,  numa altura em que os preços sobem por escassez de gás natural e que de Washington soam alarmes, ai de quem não nos comprar gás , de xisto …?).

A minha surpresa resulta ainda de ver neste editorial um alinhamento com as razões do “protetor americano” e uma resignação com o regresso da lógica dos blocos.

Peço-lhe que considere o art.7º.2) da Constituição da República, a nossa, não a dos USA, “Portugal preconiza … a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletivo … “   Objetivo ambicioso, que ingenuamente eu penso que deveria ter sido abraçado pela comunicação social e não parece ter sido.

E que, para avaliar como ficamos na fotografia sob o manto protetor do tio Sam e dos seus parceiros na guerra aos infiéis do Iraque (relembro Carne Ross, deve conhecer), nada como a releitura das Crónicas de Inglaterra, de Eça de Queiroz, com o seu cortejo de bombardeamentos de Alexandria e do Afeganistão, muitos anos antes da promiscuidade entre a CIA e Pinochet, ou da remansosa rotina em horário de expediente, no Wisconsin, numa sala de comando remoto  de drones mortíferos em zonas rurais do Afeganistão, com danos eufemisticamente colaterais (estado terrorista são sempre os outros, nós não, nunca, repitamos muitas vezes); ou a releitura de Amin Maalouf nas “Cruzadas vistas pelos olhos dos outros”.

Anos e anos que nos fazem a cabeça desde criancinhas, “a eles, a eles, por S.Jorge, guerra aos infiéis” (S.Jorge, personagem lendária, sem testemunhos históricos coevos, com origem em lendas do tempo e locais das cruzadas, como Humberto Eco, na sua “História das terras e lugares lendários” desalentadamente desabafa que continuamos como há milénios atrás de ilusões).

Vai ter de continuar a ser assim?

Sinceramente, com amigos e parceiros destes, para que precisamos de inimigos russos e chineses? (atenção que nem de perto nem de longe estou a silenciar os crimes de Estaline, os oligopólios de Putin  ou as falhas de direitos humanos na China de hoje, nem tampouco insinuar que devemos sair da UE, nem pensar nisso).

 

Com votos de saúde, e esperança de maior espírito de conciliação, envio os melhores cumprimentos

 

Fernando Santos e Silva


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