Caro Carlos Cipriano
Como cidadão, agradeço-lhe a série de artigos sobre a ferrovia, quer
europeia, quer nacional, que tem vindo a publicar no Público.
Os agradecimentos são naturalmente extensíveis ao colega Paulo Pena,
nos artigos da Investigate Europe, ( https://www.investigate-europe.eu/en/2021/whats-the-problem-with-european-railways-your-questions-answered/
https://www.investigate-europe.eu/en/2021/derailed-europe-railway/ )
Sobre os artigos da Investigate Europe e os artigos no Publico “o
grande descarrilamento” e “os comboios têm um problema de comunicação” (https://www.publico.pt/2021/11/28/economia/investigacao/comboios-descarrilamento-europeu-1986118 ; https://www.publico.pt/2021/11/28/economia/noticia/comboios-europeus-problema-comunicacao-1986120
) , gostaria de comentar que a análise do vosso colega Amilcar Correia
(Investigue-se) está corretíssima quando apelida a política da Comissão
Europeia de “dúplice”. Como diz o dicionário, dúplice significa dissimulada,
falsa, fingida, ardilosa, enganosa, hipócrita. Porquê? Porque são muito bonitas
as palavras que ouvimos nos seminários do International Year of the Rail de que
a ferrovia é o melhor caminho para o Green Deal e blá, blá. Mas depois vem a
senhora comissária Adina dizer que não podem obrigar nenhum operador a explorar
travessias transfronteiriças não viáveis comercialmente (http://fcsseratostenes.blogspot.com/2021/11/o-que-diz-adina.html
). Vem também a assessora do coordenador do corredor atlantico informar que a
estratégia da CE/DG MOVE está em sintonia com a do governo português e que as
análises custo benefício para as interligações ferroviárias além Pirineus são
“pobres” e por isso só se poderá fazer o up grade da rede existente (https://manifestoferrovia.blogspot.com/search?q=isabelle
). Fizeram alguma ACB para poderem dizer isso? A evolução das exportações
contraria a opção de ficarmos reduzidos ao mercado ibérico (ver números
adiante).
Essas declarações contradizem o estabelecido no regulamento 1315 (objetivo:
espaço único coeso e redes transeuropeias), no Tratado de Funcionamento da
União Europeia (política de coesão abrangendo região periféricas) e no
regulamento 1316 (transferência de carga rodoviária para o modo ferroviário),
contradizem ainda os objetivos do Green Deal e do Fit for 55.[1]
O coordenador do corredor atlantico existe para acelerar a execução
dessas ligações até 2030, conforme o regulamento 1315.
Por isso são dúplices e merecem severo comentário, sugerindo eu
encaminhamento das reportagens da Investigate Europe para a ombudswoman da
União Europeia.
Não parece ser este o entendimento do governo português, através do
senhor ministro das Infraestruturas, ao centrar a discussão com a CE na
liberalização e na separação de operadores e gestores de infraestruturas
(“separação roda-carril”), e ao abster-se de promover as referidas
interligações de acordo com todos os parâmetros da interoperabilidade e de
acordo com os traçados do regulamento 1315. Trata-se, a liberalização e a
separação operação/infraestruturas, de
uma questão interessante, mas, salvo melhor opinião e fundada em experiência
profissional mais sólida do que a minha (apenas testemunhei a separação no
metro de Londres, com a estrondosa falência de uma das companhias de
infraestruturas, enquanto aconteciam acidentes com recém chegados operadores
privados no UK, na Belgica, na Holanda, na Alemanha; não admira que os
incumbentes de França e da Alemanha sejam prudentes) é uma questão académica,
especialmente porque o regulamento 1370/2007 admite a coexistência pacífica de
Estados membros com operador/infraestrutura fundidos e Estados membros com eles
separados, com empresas incumbentes e com empresas privadas.[2]
É portanto uma questão falsa que no contexto atual serve para desviar a
atenção do objetivo 2030 das redes transeuropeias, com a indispensável
coordenação com Espanha e incluindo o início urgente da preparação das
autoestradas ferroviárias (transporte por comboio de camiões ou semirreboques).
Sobre outros artigos publicados recentemente no Público, gostaria de
comentar:
- “projetistas contra-atacam” (https://www.publico.pt/2021/12/04/economia/noticia/projectistas-contraatacam-criticam-governo-atrasos-ferrovia-2020-1986798
) – este é mais um exemplo dos malefícios da lei da contratação pública. Em
2008, durante a fase de divulgação pública da lei pelo gabinete de advogados
seu autor, tive oportunidade de propor sugestões que foram olimpicamente
recusadas. De facto o critério não pode ser principalmente o preço e deve
considerar-se a valia técnica da proposta, as referências e experiência do
proponente. Deve utilizar-se a pré qualificação e só abrir as propostas
económico-financeiras depois de classificadas as propostas técnicas. Do
concurso deverá constar um anteprojeto com os traçados minimamente avaliados, aliás condição essencial para uma
correta ACB “ex ante” (como se receia o que vai ser o concurso para a nova
linha Lisboa-Porto…)
- “congelamento de 5% da privatização da CP Carga” (https://www.publico.pt/2021/12/05/economia/noticia/governo-congela-privatizacao-parte-cp-carga-1986533
) – já é de suspeitar se como dizem os sindicatos a privatização foi quase uma
oferta, mas vamos reconhecer que a gestão da Medway e da Takargo é correta e
garante empregos (critica-se a politica oficial por exemplo pelo
desmantelamento do terminal da Bobadela e pela inercia que não deixa resolver o
problema do ERTMS), pelo que é inadmissível que não se execute a distribuição
dos 5% pelos trabalhadores .
A propósito da referência a Carlos Vasconcelos/Medway neste último
artigo, cito-o numa entrevista à Railway Gazette de 1out2021:
“It’s evident that I, as a railway operator, would like to have
standard gauge. It would be much easier. I don’t have to arrive at the border
with France and change bogies or trains. It would be much easier to have
standard gauge freight routes across the Iberian peninsula, but they don’t
exist.”
Numa altura em que as exportações portuguesas de bens crescem:
- em 2020 exportaram-se para Espanha por modos terrestres 10,1
milhões de toneladas e para os principais destinos europeus 5,1 milhões de
toneladas;
- de janeiro a setembro de 2021, o total de exportações cresceu 4,8%
relativamente ao mesmo período de 2019 (pré pandemia);
- de janeiro a setembro de 2021 exportaram-se para Espanha 10
milhões de toneladas e para os principais destinos europeus 7
milhões de toneladas (quase tudo por camião em ambos os casos).
Com este crescimento, é lícito tirar a conclusão que, se como diz
Carlos Vasconcelos, com a bitola standard é mais fácil mas ela não existe entre
Portugal e o resto da Europa, então o que há a fazer é instalá-la para
benefício das exportações (e menor pegada ecológica nas viagens Lisboa-Madrid de
passageiros).
Nem que para isso se tenha de invocar o princípio comunitário da subsidiariedade (apoio
da UE quando o Estado membro não consegue, art.5 do TFUE).
Reiterando o apreço pelo vosso trabalho, envio
Investigue-se, por Amílcar Correia:
[1] art.93 do TFUE , considerandos 37 e 49 do regulamento
1316/2015 que tratam dos serviços públicos nacionais e internacionais e
reembolsos em serviços não comercialmente viáveis, art.4 do regulamento
1315/2015 que determina os objetivos da rede única ferroviária europeia e art
50 (projetos transfronteiriços)
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