quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A rapariga da bicicleta

 1975 - eu trabalhava num gabinete com vistas para a Av.Fontes Pereira de Melo, perto do Marquês de Pombal. Sempre gostei  de me concentrar nas questões do trabalho mais para o fim do dia, quando a maior parte dos colegas desaparecia. 

Já nessa altura o transito era intenso na avenida, de regresso vindos da baixa, ou de travessia da cidade para saída para a autoestrada, nesse tempo ainda curta.

Todos os dias reparava num homem ainda novo, mas já de aspeto débil, de roupas pobres mas aparentemente protetoras do frio, que subia a avenida pedalando com esforço na sua velha bicicleta.

Seria talvez operário numa das oficinas que ainda funcionavam nas ruas da baixa, mas nunca soube, nem se as alterações sociais próprias da época o terão beneficiado e à sua família.

Mas retive a imagem dele subindo a avenida com esforço. O declive é de aproximadamente 4%, ou seja, por cada 50 metros que se avança, sobe-se 2 metros, mais do que a altura de um homem, e não se vendiam ainda as bicicletas elétricas. 

À noite, ao ver nos noticiários da televisão, por vezes, imagens da China, com as principais avenidas de Pequim cheias de ciclistas regressando do seu trabalho no meio dos autocarros fumarentos, poluentes, movidos por motores diesel, a imagem do operário da bicicleta da avenida Fontes foi-se gravando na minha memória.

2021 - já não trabalho, por isso posso tomar o pequeno almoço numa esplanada numa avenida na parte norte da cidade. Nas avenidas de Pequim só se vêem agora scooters e autocarros, umas e outros elétricos, enquanto o grosso do tráfego se faz pelo metropolitano ou pelas vias rápidas que contornam os bairros centrais da cidade.

Aqui em Lisboa, do balcão da esplanada, vejo por vezes passar uma rapariga de bicicleta, sem necessitar de muito esforço porque a bicicleta é elétrica e o terreno é plano. Tomo o pequeno almoço tarde, e por isso àquela hora o movimento de distribuidores de comida, de motoretas (scooters) ou de bicicletas, aumenta significativamente. A rapariga de que falo traz presa às costas, como os seus colegas, a caixa térmica cúbica , regularmente abastecida graças à conexão pela internet e à constante atualização dos pedidos junto dos restaurantes que bordejam a esplanada. A sua imagem é a da força e da elegancia da juventude, a  exibição da beleza em movimento que a Natureza gera graças a milénios de evolução. Pena Vasco Graça Moura já não estar para retratar esta musa como retratou a musa do jacto de água do Parque das Nações.

Mas hoje devo ter saído mais cedo, já estou na rua, de regresso a casa quando reparo nela. Vem na sua bicicleta do outro lado da rotunda, deve ter acabado de entregar uma refeição. Vem veloz, combinando os percursos em que o tráfego automóvel está cortado pelos semáforos vermelhos com os troços da rotunda momentaneamente desertos, com as passadeiras de peões, de travessia autorizada ou não para peões, mas nunca para ciclistas que não desmontem, mas que interessa esse pormenor aborrecido do código da estrada, é uma musa livre, não tem que pensar nisso, e continua veloz, são já várias asbruscas mudanças de direção a 90º, e como vira a cabeça de um lado para o outro controlando tudo, e eis que está no pequeno passeio, uma ilha como dizem os técnicos de mobilidade, mesmo em frente de mim, do outro lado da passadeira que tenho de atravessar, aguardando o sinal verde para peões. Mas ela não espera e dá um impulso aos pedais enquanto faz mais uma viragem a 90º.

A roda traseira escorrega no lancil molhado, perpendicularmente à direção desejada pela rapariga, foge de modo incontrolado e ela estatela-se no chão.

O choque terá sido amortecido pela coxa esquerda, as calças justas, pretas e grossas, terão ajudado, mas deve doer, a sua expressão é de dor. Não deve ter partido nada, não bateu com a cabeça, a caixa térmica continua agarrada às suas costas.

Não preciso de correr para a ajudar, várias pessoas, a maior parte jovens, fazem-no, não se apressam a levantá-la, ela precisa de se acalmar. Eu fico a fazer sinais aos automobilistas que se aproximam, porque a rapariga e quem a socorre estão a ocupar parte da passadeira e já está outra vez verde para os automóveis.

O seu rosto bonito continua a mostrar dor, mas apenas em parte, porque a expressão principal é de raiva, raiva por ter de correr riscos para trabalhar, raiva porque terá estudado para fazer outras coisas que não distribuir comida, que sendo uma atividade a respeitar, não seria necessariamente o que ela desejaria fazer  na vida. 

Felizmente já se terá acalmado, já está no passeio para onde se dirigia, vai tratar da próxima encomenda, vai esquecer este episódio. Vai superá-lo, talvez encontrar o trabalho para que se preparou.






Sem comentários:

Enviar um comentário