quinta-feira, 25 de junho de 2009

Energis II – Homenagem ao Prof.Ilharco

O professor Ilharco dava a cadeira de Quimica Geral do primeiro ano dos cursos de engenharia civil, electrotécnica e mecânica do Instituto Superior Técnico nos anos 60.
Fazia-o de acordo com o modelo universitário da época, que ao que parece, felizmente mudou um pouco no nosso país, melhorando a ligação com a economia real (pelo menos, quero crer).
Como em qualquer análise histórica, devemos considerar o contexto da época em que o modelo funcionava, embora na altura já sonhássemos com os campus das universidades norte-americanas.
O professor Ilharco era irmão do director do Hospital psiquiátrico Julio de Matos e esse facto, juntamente com uma preocupação em exigir aos alunos a apresentação uniformizada dos cadernos de apontamentos, contribuía para uma fama injusta.
Porém nesta história o porém é mesmo importante.
E tive a sorte de me explicarem o porém (foi um colega já com o curso concluído) ainda era eu aluno do primeiro ano.
O porém era que o professor Ilharco aproveitava a sua cadeira para injectar logo à entrada do programa dois grandes enunciados (que ele insistia para que os alunos sublinhassem duas vezes):
Um, era o problema fundamental da Humanidade. E embora eu na altura pudesse pensar que o problema fundamental fosse o Amor, a verdade era que o que ficava escrito nos cadernos era qualquer coisa como isto:
- O problema fundamental da Humanidade é a Energia. A sua produção e a sua utilização.
Sem entrar em pormenores explícitos, o professor dava-nos assim as bases para, caso inisistissemos que o problema fundamental era o Amor, analisarmos as kcalorias dos alimentos necessárias para repor a energia muscular consumida, por exemplo, num acto de Amor. Ou calcular as kcalorias para recuperar dum exame e garantir a oxigenação dos tecidos e dos neurónios. Ou entender por que a chita só corre atrás do antílope diminuido se as kcalorias que tiver de dispender na corrida forem menos do que as kcalorias que puder obter ao devorar o antílope. Ou ver com olhos de físico o que Karl Marx queria dizer com aquela de ser necessário fornecer ao produtor energia para repor a capacidade de produção e, mais qualquer coisa. O professor Ilharco não falava em Marx, mas nós falávamos.
O outro enunciado, era o problema fundamental do engenheiro. Coisa que para todos nós na altura estava um pouco distante e, infelizmente para uma maioria, se revelou como a linha do horizonte, afastando-se à medida que nos tentávamos aproximar dela. Por outras palavras, muitos de nós foram sendo impedidos de exercer efectivamente a profissão , e levados a ser gestores virtuais da burocracia, sem utilizar as ferramentas da arte nem instrumentos de medida. Ditava o professor:
- O problema fundamental do engenheiro é a utilização da matéria e da energia de modo a obter benefícios para a comunidade da forma razoavelmente mais económica possível.
As primeiras aulas eram dedicadas ao panorama energético na Terra.
E , num tempo em que o pico da produção de petróleo nos campos do Texas ainda não tinha sido atingido (i,é, em que a produção crescia a olhos vistos de ano para ano antes de entrar em declínio no fim do século XX), e em que a produção dos campos de petróleo da Arábia Saudita ainda balbuciava, longe do pico e do declínio que só agora surgiu, já o professor Ilharco anunciava que os engenheiros não podiam concentrar-se apenas na petroquímica, mas tinham de, o mais tardar no princípio do século XXI, atacar em força a carboquímica.
Nos tempos que correm a informação já foi passada e está ao alcance de qualquer um: o primeiro combustível fóssil a desaparecer será o petróleo (não vai chegar ao fim do século XXI…mesmo que existam reservas), e o seu uso devia ser disciplinado e racionalizado. Depois desaparecerá o carvão (não vai chegar ao fim do século XXII…). Mas tem de ser estudado o seu aproveitamento de modo a não poluir muito.
O professor Ilharco escrevia os seus apontamentos no quadro e repetia martelando as sílabas:
A carboquímica. Será o grande desafio dos engenheiros nos próximos anos.
Estranho mundo este, em que uns quantos diagnosticam os problemas, traçam esquemas de procura de soluções, alguns encontram-nas, mas quando chega a altura de passar à fase seguinte entra em funções uma maldição incógnita.
Será a mão invisível do Adam Smith? (já vos contei que a mão invisível não é a intervenção divina que premeia os justos que crêem firmemente nos mercados? Adam Smith criou o conceito da mão invisível depois de ver Lady Macabeth de Shakespeare, e o castigo implacável e misterioso que se abateu como força invisível sobre o casal oportunista, como metáfora do castigo que aguarda quem se porta mal na economia , ou finanças também, está bem de ver).
E então a mão invisível lançou a insensatez sobre os actores dos mercados dos grandes consumos. Por um lado os rendimentos dos motores de gasolina e de gasóleo subiram dramaticamente, como dizem os anglo-saxónicos, para isso servem os engenheiros, que com o mesmo litro de gasolina põem o carro agora a percorrer o dobro da distancia de há 20 anos. Mas puseram mais potência no motor, tentaram os utilizadores a acelerar mais e mais. Aumentaram a produção e querem vender cada vez mais . O combustível escoa-se. A poluição aumenta. É insustentável. Mas continua a vender-se o sonho do automóvel eterno.
Terá sido a tentação “Tudo isto será teu se prostrado me adorares, a mim ao objecto de grande consumo, se cortares no bife para poderes pagar a prestação do carro”?
A carboquímica não se desenvolveu como o professor esperava. E a petroquímica ignorou o convite à racionalização.
A mão invisível traiu a herança do professor. Mais uma vez se verificou que o caminho descoberto numa dada altura do processo é esquecido depois. O nome deste blogue ilustra o facto: o diâmetro da Terra e o comprimento da milha ou do arco do minuto foram calculados por Eratóstenes no século III A.C. Vieram depois uns ignorantes com capacidade de tomar decisões que decretaram que o sol andava à volta da Terra, e mais disseram que a milha tinha 1609 metros (ou o equivalente em estádios, que era o que se usava na altura). Enganaram-se. Só no fim do século XVIII se confirmou a correcção do cálculo de Eratostenes. A milha tem 1852 metros. Deve ter sido a mão invisível, a baixar um véu sobre a compreensão dos povos.
A mão invisível tramou por exemplo o projecto interessantíssimo do presidente Carter, antigo engenheiro naval que percebeu os dados do problema. Entre as medidas que propôs ao congresso estava o desenvolvimento da carboquímica, concretamente a transformação maciça de carvão em petróleo e em gás (lembram-se de ouvir falar nos gasogéneos que convertiam madeira em gás e punham os automóveis a andar durante a segunda guerra mundial?).
A mão invisível e o congresso chumbaram a proposta. Depois veio o reaganismo e tatcherismo ricos em petróleo e no seu desperdício. Será possível estabelecer uma correlação entre a política energética errada dos USA e as guerras no médio Oriente?
Assim parece, o que só viria confirmar a tese do professor Ilharco, de que a energia (logo, a Paz) é o problema fundamental da Humanidade.
Saravá, professor Ilharco.

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