Passados 3 dias, o que vejo nas notícias que chegam de Inglaterra é que as causas da avaria de 6 comboios permanecem um mistério.
Muitas vezes, as causas de acidentes só muito depois vêm a ser conhecidas. Muitas vezes subsistem dúvidas mesmo depois dos relatórios finais . Por exemplo:
- acidente com o Concorde em Paris, em que o relatório minimizou a contribuição da falta do espaçador no trem de aterragem;
- acidentes da Spannair em Madrid e da TAM em S.Paulo, em que o relatório minimizou a avaria do reverser;
- acidente da Air France no Atlantico Sul, em que o relatório minimizou a excessiva dependência dos automatismos relativamente às sondas de velocidade superficial.
Será normalmente precipitado falar em causas logo a seguir. Porém é um bom método de pesquisa colocar hipóteses, debatê-las e testá-las em ensaios reais.
Parece que a Eurotunnel fez isso, começando por informar que provavelmente a neve acumulada nos percursos à superfície teria penetrado nos circuitos de ventilação dos motores ou pelas grelhas laterais ou por baixo da caixa e, ao descongelar com a temperatura mais elevada do túnel, teria provocado curto-circuitos fatais.
Também estão comboios a circular em ensaios e só depois da validação das causas será reposto o serviço de passageiros.
O problema é se os ensaios forem inconclusivos. O facto é que o 6º comboio que avariou parou no percurso à superfície, com temperaturas baixas (pode ter sido coincidência).
Mas o que o Eurotunnel não devia ter dito (a sua porta-voz), é que a avaria foi como tirar uma garrafa de cerveja do frigorífico e levá-la para um ambiente mais quente. A garrafa fica coberta de água. Isso acontecerá se a humidade ambiente for elevada – chama-se a isso condensação que acontece quando o vapor de água encontra uma superfície fria. Não é a mesma coisa que descongelar a neve, que é a liquefacção. Além disso, explicar isso a quem esteve mais de 12 horas à espera de ser evacuado, parece agressivo.
Parecerá então que a Eurotunnel deverá rever , possivelmente não os procedimentos de evacuação porque até funcionaram, mas com excessiva morosidade. Isto é, os quadros de pessoal não devem estar dimensionados para acorrer a situações desta natureza.
Dirão os economistas que compete à manutenção evitar que isto aconteça.
Isto, é a necessidade de evacuar 5 comboios. 4 deles não foram evacuados. Foram rebocados por locomotivas diesel de socorro. Só 1 foi evacuado e foi a primeira vez que isso aconteceu em 15 anos de exploração.
Deverá pois colocar-se a hipótese por que acontece uma avaria num comboio (ficou bloqueado sem poder ser rebocado) diferente das avarias dos outros 4 comboios, que nunca tinha acontecido em 15 anos de exploração.
Eu não tenho explicação, que compete à Eurotunnel encontrar. Depois de 3 dias e depois da observação dos comboios parece ser possível saber por que não andaram eles.
A menos que se possa colocar outra hipótese: Os comboios tinham recentemente sido sujeitos ao procedimento de “invernização”.
A hipótese é que as tais grelhas de protecção contra a neve, ou a regulação de sensores ou parâmetros tenham sido alteradas de modo que o “software” de controle tenha sido enganado por um sensor pouco fiável (lembram-se do caso das sondas de Pitou nos Airbus…?) ou um parâmetro mal configurado e tenha decretado um “fatal error” só “rearmável” em oficina. E normalmente o “software” não deixa vestígios. Esta hipótese é plausível (atenção que é uma hipótese que precisa de ser testada ou encontradas evidências de que tenha estado na origem das avarias). Lembro-me dum caso de funcionamento intempestivo dumas portas de segurança (abriram do lado errado do comboio porque a água tinha penetrado na conduta de cabos e fizera um curto-circuito numa ficha que era suposto ser estanque). Lembro-me , noutro caso, dum técnico muito triste porque o alimentador de 24 Vcorrente continua lhe tinha rebentado nas mãos porque tinha trocado o condutor dos 220 V corrente alternada pelo dos 24 V corrente contínua. E desculpou-se que eram da mesma cor. E eu a explicar-lhe que estivesse descansado, não iria obrigá-lo a pagar o aparelho, mas que ao erro de projecto ele tinha adicionado o erro, ou melhor, a omissão de verificar as ligações dos condutores antes de lançar a energia. E daquele técnico também muito triste porque trocou um bloco de contactos igual por fora ao bloco de projecto, como aconteceu na história triste da troca dos frascos do medicamento para os olhos que deu em cegueira. Felizmente que a troca de blocos não deu em nada porque as portas abriram do lado errado mas não estava lá ninguém para cair. Mas dá que pensar. Não podemos culpar quem troca, seja o que for, mas podemos exigir que o que um faz, outro verifique, e que essa verificação seja feita com calma, sem ter de ir a correr para um computador registar as melhorias dos indicadores económicos e actualizar o controle das tarefas executadas. E, como dizia Aristóteles que o homem é um animal político, como seria bom que na actividade política também se aplicasse esse princípio: um (ou uns) faz (ou fazem), outro (ou outros) verifica (ou verificam), quer o que se pretende fazer, quer o que se vai fazendo, quer o que se fez; e que os dois não estejam constrangidos para apresentar resultados previamente previstos no plano estratégico. Será este princípio um horizonte que se afasta de nós à medida que nos queremos aproximar dele?
O curioso é que a água de descongelação também não deixa vestígios. O primeiro registo que existe deste facto foi uma fraude em contadores de energia eléctrica accionados por um aceitador de moedas em França, nos primórdios da electricidade (já nessa altura havia o “pay what you use”). O senhor autor da fraude alimentava o contador com moedas de água e a companhia só descobriu quando lhe pagou o segredo. O tema foi retomado num filme de que não me lembro o nome: os assaltantes digitavam o código do cofre forte sem necessidade de abrir a porta gradeada, utilizando balas de água congelada para premir as teclas. Mas neste caso, se houve curto-circuito, os vestígios hão-de lá estar.
Voltando ao Eurotunnel, outras hipóteses seriam que a neve, ou a temperatura baixa, simplesmente tenham danificado circuitos semicondutores (as junções semicondutoras que estão na base dos circuitos integrados têm limites de tolerância de temperatura, pressão e humidade) cuja disrupção aconteceu quase simultaneamente, mesmo sem ser por causa da descongelação. Ou que o defeito tenha sido propagado pela catenária (sobretensões transitórias provocadas pelo mau tempo?).
Mas vamos a outra hipótese que mete economistas.
Em 2008 a Eurotunnel obteve lucros. Não o breakeven, mas lucros de exploração. Então a Goldman Sachs (foi antes do breakdown financeiro) comprou uma fatia larga do capital da Eurotunnel (pelas reacções do pessoal que quer exercer o seu direito à mobilidade e agora não pode, eu diria que uma companhia destas deveria ter maioria de capital público, mas isso sou eu a dizer, além de que o “projecto financeiro” do Eurotunnel vem dos tempos dos senhores Tatcher e d’Estaing, que não eram nada prosélitos dos contestatários de Adam Smith).
É natural que a gestão da manutenção e da operação da Eurotunnel reflicta essa feliz aquisição (perdoe-se-me a ironia), e que os quadros e os meios para efectuar as acções de manutenção e as acções de prevenção de evacuações e de evacuações tenham sido contidos, em ordem aos gestores poderem mostrar, orgulhosamente, apresentações powerpoint em que os encargos com pessoal e com a manutenção vieram a baixar significativamente no último ano,com destaque para o crescimento do indicador de eficiência económica.
É apenas uma hipótese (contenção de custos em meios e pessoal), claro. Não prova o que aconteceu; apenas diz que o que aconteceu pode ter sido por isto. Pode.
Porque em Abril de 2008 um comboio avariou e foi rebocado para porto seguro em 3 horas. Em Agosto de 2009 um comboio precisou de 6 horas para ser retirado. Agora 4 comboios e a evacuação de outro demoraram 16 horas. Possivelmente vão ter de ser alocados mais meios aos procedimentos de evacuação (atenção que o socorro de vários comboios parados no túnel pode ser feito através da terceira via de serviço do tunel, e não precisa de ser apenas um comboio de socorro; obviamente que precisa de maquinista para se deslocar e os gestores parece terem alergia a maquinistas) .
Também deveria a Eurotunnel pensar em prever melhores meios de fornecimento de água , alimentos, instalações sanitárias e conforto térmico aos passageiros retidos. Vejamos: depois do acidente do Titanic passou a ser obrigatório coletes e lugares nos salva-vidas para todos (julgo que também ficou combinado que as prioridades de embarque no salva-vidas eram mulheres e crianças e não primeiro os senhores passageiros de primeira classe; digo isto porque parece que no caso do Eurotunnel evacuaram primeiro a senhora Claudia Schiffer; digo parece, mas se for verdade é uma maçada, ter-se feito a revolução francesa há mais de dois séculos e ainda não se ter chegado lá, ao mesmo horizonte de há pouco que se afasta de nós à medida que nos aproximamos dele e que é o local onde os meus neurónios, pelo facto de serem mais ágeis a imaginar e correlacionar oportunidades de enriquecimento não me dão o direito de usufruir uma vida melhor do que quem não dispõe desses neurónios, porque os neurónios são apenas processamento biológico em moléculas que não têm nada de inteligente; nem à minha vizinha, pelo facto de ter recebido o dote da beleza física, ter prioridade num salvamento relativamente ao bebé da carruagem de “turística”, para não dizer segunda classe). Não será então disparate querer que a bordo dos comboios do Eurotunnel exista um fato térmico para cada cidadão ou cidadã, um “stock” de água para o número de horas máximo que vier a ser acordado em contrato público de garantia de prestação de serviço público com prémios e multas, um número mínimo de sanitas químicas a bordo e ao longo da via, um serviço GSM para a tripulação especialmente útil em caso de paragem (admito que, devido aos riscos de terrorismo, não exista GSM disponível para os passageiros).
Enfim, tudo isto custa muito dinheiro e o bilhete do Eurotunnel já é caro.
No entanto, pelo historial, haverá que investir: um fogo em Setembro de 2008, com a exploração parada 2 dias, um comboio parado 3 horas em Abril de 2008, outro em Agosto deste ano 6 horas.
O episódio servirá para concluir que haverá que fazer qualquer coisa no domínio dos meios para evacuação, materiais e humanos. E que, para os idealistas que acham que os automatismos integrais são aquilo que mais desejam, são precisamente as situações de emergência e de evacuação que constituem o calcanhar de Aquiles dos sistemas de automatismo integral. Quando tudo funciona bem, é uma maravilha. Mas quando Murphy decide entreter-se a arreliar os técnicos (ele , que também era especialista de manutenção, nem sequer se preocupa em azucrinar os gestores, mas aceita de muito bom grado a sua ajuda) parece um deus grego a castigar quem trabalha em condições cada vez mais limitativas de cada vez maior eficiência económica. Com a agravante de, como tudo funciona bem durante quase todo o tempo, no pouco tempo em que é preciso accionar os mecanismos de emergência o pessoal não tem a prática necessária.
Mas aguardemos, a ver a que conclusões chegam os nossos colegas do Eurotunnel. Esperemos que não ocultem nada, à boa maneira latina (o metro de Madrid já explicou o descarrilamento em Moncloa?).
PS 1 (22DEZ09) - Retomada a circulação de comboios, a Eurotunnel insiste que a neve penetrou nas condutas de ventilação e, por condensação, afectou os motores (confesso que não percebo como possa ter afectado os motores, mas admito que tenha afectado as placas de circuito impresso com os processadores e os sensores de comando dos ditos motores). E insiste com veemência, dizendo que este tipo de neve foi diferente do habitual; era uma neve muito seca (!!!! deixem-me pôr uns pontinhos de exclamação aqui dentro deste parenteses) e muito pulverizada, como se fosse um spray, ao contrário da habitual (e pelos vistos bem comportada, que é muito húmida e em flocos grossos (daí as grelhas de ventilação terem deixado passar a neve). Eu, como sou cartesiano, tenho muitas dúvidas, embora, se calhar vamos ter de acreditar e lá fica por esclarecer se houve ou não cortes nos meios humanos e materiais de manutenção e de socorro em emergência e se a “invernização “ teve alguma coisa a ver com isto (fica também por explicar se houve tratamento preferencial nas evacuações).
Mas não resisto a comentar que a Eurotunnel está a desmentir as lições de Física dos nossos professores. Insiste que foi condensação (condensation em inglês).
Ora, condensação é a passagem do estado gasoso ao estado liquido quando, por exemplo, um vapor encontra uma superficie fria.
Não terá sido o caso: a neve em suspensão no ar das condutas de ventilação encontrou uma superfície mais quente no compartimento dos motores quando entrou no tunel e fundiu as partículas sólidas de neve (a mudança de estado do estado sólido para líquido chama-se fusão; em inglês "melting" ou "fusion"; e não "condensation").
A menos que achem que a neve estava tão pulverizada que se podia assimilar a um vapor, e , de facto, passar de vapor a liquido é condensação, embora para haver condensação é preciso baixar a temperatura e não subi-la, como foi o caso.
Seria bom que o Eurotunnel não andasse a confundir os conceitos físicos ou então explicasse o que realmente se passou.
Eu gostaria de não ter de concordar com o meu comentador que acha que estão sempre a querer enganar o pessoal (lembrei-me agora do senhor Blair e dos 4 dos Açores, mas já passou; e por associação de ideias, do senhor Sarkozy, que mandou chamar ao Eliseu o presidente da SNCF, ralhou com ele e mandou-o repôr os comboios do Eurotunnel em circulação. Valente, o homem; mas será que essa intervenção não vai contrariar os sacratissimos princípios do "laissez faire, laissez passer? ou então o senhor reconhece que transportar pessoas é um assunto muito sério, um direito fundamental, que não pode ser deixado ao critério da maximização do lucro - e agora lembro-me do nível de ordenados dos pilotos comerciais das companhias aéreas americanas...).
As coisas que se dizem a propósito dumas avarias de comboios por causa da neve...
PS 2 (23DEZ09) - Ouvi uma conversa cruzada numa loja de telemóveis e recordei uma polémica há uns anos, com os fabricantes de telemóveis a não quererem assumir os custos de reparação de aparelhos vítimas de condensação no interior. Em tempo quente e húmido, o ar carregado de humidade penetra no telemóvel.
Com o arrefecimento nocturno a água condensa-se e danifica os contactos ou as placas de circuito impresso.
E o fabricante diz que o utilizador não devia ter levado o telemóvel para a praia ou para junto do mar.
Tal como já fazem há muitos anos os fabricantes de material eléctrico e electrónico de potência, as placas de circuito impresso devem ser revestidas de verniz isolante. É verdade que nas altas frequências dos telemóveis e dos circuitos de controle o verniz tem de ser mais caro, mas as cabecinhas convencidas e inovadoras dos fabricantes de novas tecnologias devem meter dentro delas que as suas novas tecnologias vêm substituir umas velhas que não tinham esses problemas.
Será que foi o caso com o Eurotunnel? Se foi, foi uma pena porque existem normas para os fabricantes de comboios às quais os fabricantes de telemóveis gostam de fugir, até porque lhes convem que os telemóveis se gastem depressa. Mas com os comboios não. A norma diz que os circuitos electrónicos devem poder suportar 40 graus negativos e 100% de humidade, mesmo em ambiente poluido com algum óxido de azoto, de enxofre e quejandos. Lamento, mas as grelhas de ventilação não são solução, são paliativo, por mais convincentes que sejam as relações públicas do Eurotunnel.
Alguém na fábrica daquelas locomotivas devia lançar uma acção de melhoria mais profunda.
A menos que queiram que fique a dúvida. Dúvida só, porque é claro que não posso provar nada.
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Um dos problemas das civilizações galopantes é o empacotar da "carneirada" em todas as vertentes possíveis.
ResponderEliminarAplica-se o método KISS (keep It Simple And Stupid) e a massa populacional é vista em números.
Aplicam-se soluções globais geridas por um mentecapto eleito por uma minoria válida, crente que esse idiota vai favorecer a mesma.
Todos os dias passamos cheques em branco para uma máquina alienante tomar decisões por nós.
Vivem-se os dias acéfalos clubisticos aplicados à democracia.
O receio de ser ovelha negra e não pertencer aos rótulos da sociedade sob a perspectiva politica, clubistica ou religiosa (embora esta última tenha enfraquecido muito da sua sua força institucional), vê-se uma rendição da populaça ao sistema que lhe suga mais do que lhe oferece.
Aliás, comentários para quê?
A maioria nem se atreve a pensar, quanto mais escrever....
Pensar faz mal, compromete a sobrevivência dentro do sistema.
Falar do sistema para quê?
Para o aperfeiçoar contra nós?...
Já atingimos o NRP. Agora vai ter de descolar/largar...
Carissimo anónimo
ResponderEliminarQue de desalento.
Prefiramos o método KIS, sem stupid. Se calhar, até foi por não serem KIS que os comboios pararam: entrou água (congelada ou não) pelas grelhas frontais e talvez as placas de circuito impresso não estivessem protegidas. Aguardemos as investigações. Os comboios agoram já andam com grelhas mais protectoras.Mas desconfiemos, de facto, isso é um remédio, não é uma prevenção.
Quanto ao empacotamento da carneirada, é verdade que há essa tendencia. Mas há sempre alguém que resiste, como diz o poeta. E o Eurotunnel até tinha assinado um contrato, no dia 15, para equipar os comboios com o sistema de radiocomunicações e protecção de circulação GSM-R. Para maior segurança. Vamos ver se eles corrigem também os meios de evacuação. Descolemos sempre que pudermos. E aproveitemos o direito de expressão, mesmo sendo minoria.