quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O mundo em 23 de fevereiro de 2012 - acidente ferroviário em Buenos Aires

Espetáculo no S.Luis, de que faz parte a frase de Clarisse Lispector “tenho medo de entender, o mundo assusta-me com os seus planetas e baratas” :

http://www.teatrosaoluiz.pt/catalogo/detalhes_produto.php?id=275&month=3&year=2012

O dia 23 de fevereiro de 2012 começa com notícias angustiantes.
Não bastava o clima de desânimo deste país.
As notícias justificam o tema do espetáculo do S.Luis.
Antigamente as notícias circulavam menos e com mais lentidão.
O jornal não era lido todos os dias e trazia apenas uns vagos relatos de longínquas guerras, a que chamavam questões: a questão da Crimeia, a questão afegã, e refiro-me à segunda metade do século XIX.
Havia um círculo protetor da vida calma, no fundo ignorando os desastres extra círculo, mesmo que se vivesse em plena bancarrota , e refiro-me ao ano de 1892, o ano da bancarrota. De que se saiu com o apoio do Barings (desaparecido nos confins da crise de Singapura) e da concessão do imposto do tabaco (a Califórnia também se saiu há pouco tempo com a taxaçã e a legalização da droga).
Mas as desgraças alheias fazem esquecer as nossas próprias:
- 12 mortos no Paquistão, num atentado numa paragem de autocarros
- 32 mortos em Bagdad, em mais um atentado
- continua a selvajaria na Siria
- 50 mortos no acidente ferroviário de Buenos Aires.

Clarisse Lispector diria que deveríamos atenuar os efeitos dos planetas e das baratas.
Planetas, demasiada convicção e segurança de convicções, dificuldade em ouvir o outro que fala. Nunca mais se discutem os textos sagrados de modo a argumentar contra os fudamentalistas.
Baratas, demasiado dinamismo em pôr-se por cima ou à frente do outro. Os argumentos perdem-se na luta emotiva com que uns ofendem outros.

O sistema ferroviário de Buenos Aires sofre há muito de falta de investimento, carece de equipamentos de controle do movimento de comboios que possam compensar uma falha humana, o material circulante é obsoleto.
Sempre que ocorre um acidente em Buenos Aires (9 mortos em setembro de 2011, quando um autocarro numa passagem de nivel fez descarrilar um comboio que  em seguida embateu noutro; 17 feridos em dezembro de 2011 no choque de uma automotora com um comboio) recordo  o ar convencido do representante de uma companhia argentina à assembleia de metros sul-americanos e ibéricos Alamys: "orgulho-me de enquanto ministro dos transportes ter legislado para viabilizar a privatização dos transportes ferroviários na Argentina e de ser agora o presidente da principal companhia".
Assim, deste modo, é muito difícil garantir o transporte das pessoas em condições de segurança.
Buenos Aires é uma cidade populosa e de muito trabalho.
São muitas as deslocações diárias. Depois da crise cambial de 2000 muitos cidadãos e cidadãs não têm rendimentos suficientes para se deslocarem de transporte privado. Por razões políticas o transporte ferroviário é subsidiado mas os investimentos são extremamente parcos.
A situação é, em termos do normativo internacional, intolerável.
Mas certamente que os decisores lá do sítio garantirão que a culpa foi do maquinista que não travou ou dos trabalhadores da manutenção que deixaram sair o comboio com deficiência  (é sempre muito fácil aos decisores virar a população contra os trabalhadores de uma empresa de transportes; como disse o representarnte de um sindicato argentino ao entrevistador da TV, "não somos assassinos, quando isto acontece ficamos de luto").
Aparentemente, o para-choques não tem capacidade de absorção de energia para um choque a 25 km/h; deveria ter um espaço de recuo e deveria estar afastado da posição normal de paragem

Esmagamento da parte de trás da primeira carruagem por encavalitamento da segunda

A segunda carruagem, contrariamente à primeira, não parece ter sofrido muito, embora a energia do choque em carruagens completametne cheias possa tambem ter provocado vítimas por pressão excessiva

O acidente consistiu no embate de um comboio nos para-choques da estação terminal (configuração geográfica semelhante à chegada à estação Cais do Sodré ou Rossio da REFER, com os para-choques adjacentes à posição de paragem) a uma velocidade próxima de 25 km/h.
Aparentemente, os comboios argentinos não estarão equipados com o sistema automático de balizas de travagem (controle pontual de ultrapassagem de pontos limite de segurança) nem de controle contínuo de velocidade (ATP). Quer isto dizer que uma pequena desatenção do maquinista ou uma falha do comboio pode ter estas consequencias.
Alem disso, o material circulante é obsoleto. A deformação da testa do comboio nos para-choques não foi grande (seria desejável que os para-choques fossem do tipo de arrasto e que tivessem uma folga de segurança antes da posição final de paragem).
No entanto, a inércia de um comboio com 6 carruagens cheias (1500 a 2000 passageiros), possivelmente a circular com algumas carruagens com o sistema de travagem deficiente, e a ausencia dos dispositivos de anti-climbing que impedem, por efeito de "enganchamento" o encavalitamento entre carruagens, levou a que a segunda carruagem esmagasse a cabeceira da primeira carruagem, e terá sido aí que houve a maior parte das vítimas mortais.
Um sistema de transportes é um fator de produção para qualquer economia. Se se corta o seu investimento, as consequencias são estas, acidentes, e influencia negativa sobre a economia no seu todo, porque o fator trabalho não é posto no seu local de produção em condições de segurança, conforto e rapidez.
São assuntos já muito estudados, mas há decisores que ainda acham que não é assim e só olham aos números, ou à invocação de "crowding out", que o sistema de transportes está a roubar investimento à iniciativa privada...
Esperemos que no nosso país não cortem na segurança e na manutenção necessária.
E que ponderem bem quando o material circulante já é obsoleto, como no caso da linha de Cascais onde, e ainda bem, funciona um sistema de travagem automática ... (recordo que uma das razões de mortes no acidente do metro de Washington em 2009 foi a inexistencia de dispositivos "anti-climbing"; no caso desse acidente, a causa principal foi a obsolescencia dos circuitos de via, ou dispositivos detetores da presença dos comboios).

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