Por uma associação de ideias, recordei, com a abertura do ano jurídico e a extraordinária sucessão de discursos, uma pequena história passada no país do caos jurídico, a Juricaolandia.
Tinha-se verificado uma acumulação, não de excedentes de capital, mas de processos pendentes de resolução relativos a utilização fraudulenta de cheques bancários.
Após insistentes clamores dos grandes analistas político-televisivos contra o que isso representava de obstáculo ao funcionamento das forças económicas (o que impedia a tal acumulação de capital), o governo da altura resolveu encomendar, a um dos grandes gabinetes de advogados que oligopolizavam o trabalho para o Estado, nova legislação tendente a flexibilizar o andamento dos processos contra cheques sem cobertura ou de outra forma fraudulentos.
O grande gabinete procedeu como de costume.
Primeiro os grandes sócios, elementos de ligação privilegiada com os executivos do respetivo ministério, reuniram com o grupo de diretores para ver como utilisar as exceções da lei da contratação pública, aliás preparada pelo próprio grande gabinete, para justificar a atribuição da encomenda.
Depois, o grupo de diretores reuniu com os executivos de segunda linha.
E finalmente estes escolheram um estagiário prometedor, que aliás tinha sido acolhido no grande gabinete por recomendação de um anterior secretário de Estado do respetivo ministério e que tinha recentemente desposado a neta de um grande professor catedrático de direito, muito ligado ao anterior regime que tinha vigorado na Juricaolandia.
O prometedor estagiário encheu-se de orgulho e as noites com os amigos de sexta feira e sábados seguintes foram ocupadas com as suas descrições do complexo trabalho que lhe tinha sido confiado.
Porém, o que ele tinha dito ao executivo de segunda linha que lhe tinha dado o trabalho é que não conseguia encontrar na Internet nada que dese substancia ao trabalho.
- Procuraste mal, pá, há pouco tempo os franceses reviram a lei dos cheques. É como no caso do código penal. Procura por aí.
E o pobre moço lá encontrou o texto da lei francesa, escrito em francês, claro. O que era um problema porque ele tinha aprendido o inglês nos filmes da televisão que, como se sabe, poucos filmes franceses transmite, apesar dos 400 coups, do Jules et Jim, da fête de Babette e de la fille coupée en deux.
De modo que, "tant bien que mal", o moço lá verteu o texto que objetivamente pretendia "libérer toutes les pendances de chéques suspens et tout que pourrait retarder le rebondi des chéques".
Só que o que saiu em português, dada a limitada preparação em francês do tradutor, foi que devem ser libertados todos os cheques pendentes e todos os que os emitiram.
Daí a libertação posterior, por senhores juízes bons intérpretes da nova lei, de alguns cidadãos já condenados e presos por emissão de cheques fraudulentos.
O meu correspondente da Juricaolandia que me contou esta história andava desanimado e, de facto, também lhe disse que, no estado em que as coisas estavam, já não se podiam resolver dentro do próprio sistema, já era necessário utilisar competências exteriores.
Fui-lhe dizendo que, de acordo com as disciplinas mais técnicas e científicas, estas coisas exigem pelo menos duas entidades distintas dotadas de poder executivo que se controlem uma à outra e corrijam progressivamente os desvios, utilisando técnicas diferentes. Porém, para traçar a rota que defina os desvios, ou a estratégia, dentro da ideia de que "structure follows strategy", são mesmo necessárias as competências externas. Pelo menos exteriores à especialidade jurídica, salvo melhor opinião, claro.
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