uma
reestruturação
A exploração
de um metropolitano exige o cumprimento de padrões de segurança rigorosos.
Senti que a
orientação dos técnicos de engenharia, muitos deles com experiencia anterior na
CP, era nesse sentido, o que diferenciava o metro, empresa jovem, da maioria
das empresas de transportes da época.
Também o
ambiente entre os trabalhadores e nos seus orgãos sindicais, ainda antes da
revolução de 25 de abril de 1974, revelava modernidade, com acordo coletivo e espírito de abertura.
Recordo, no
dia da entrevista para a minha admissão, com Rocha Cavalieri, a sua
preocupação, como diretor de exploração, com a greve dos maquinistas, em
fevereiro de 1974.
Para ele, os
comboios não circularem colidia com o seu código deontológico.
E na
verdade, os engenheiros deviam ter um juramento semelhante ao de Hipócrates,
darem ao objeto da sua atividade profissional, neste caso transportar pessoas,
a prioridade máxima.
Com mais ou
menos sobressaltos, os dias que se seguiram à revolução não foram tormentosos.
Algumas
mudanças nos lugares de chefia, convites até a jovens engenheiros, recem
admitidos para assumirem funções de responsabilidade, enquanto seniores se transferiam
para gabinetes de estudos e de obras novas ou de apoio à administração,
preparando a remodelação das estações e, de colaboração com os consultores
alemães da Deconsult, o plano da futura rede.
Não houve
grande animosidade entre grupos, prevaleceu sobre ímpetos de vingança a
consideração pelo prestígio profissional do ex-membro da Legião Portuguesa, do
familiar do latifundiário morto numa rixa com trabalhadores rurais. A comissão
de trabalhadores foi representativa com pluralismo.
Os comboios não pararam, apesar do boicote de
alguns fornecedores estrangeiros, e a comunidade de trabalho cumpriu a sua
missão, não de Hipócrates, mas talvez de Hieron, o da força do vapor.
Não pararam,
estranhamente para quem se deixava impressionar pelo que lia nos jornais; até a
própria economia do país, apesar das descapitalizações e da quebra do PIB
reagiu bem à crise internacional do petróleo de 1973, a ponto de uma equipa
do MIT fazer um relatório elogioso em novembro de 1975.
A maioria
viveu dias de intensa esperança, acreditando que podia participar na vida
política e ter uma opinião sobre os problemas do país.
O meu
especialista de peças de precisão para as máquinas de impressão de bilhetes,
pela sua ingenuidade natural, era o exemplo juvenil, embora já fosse avô, de
quem passava muito do seu tempo a pensar em mudanças, no bairro, na empresa, no
país.
Dizia-me
sempre, depois de rejeitar sistematicamente as minhas propostas de alterações
nos mecanismos em que trabalhava para corrigir deficiencias de funcionamento
porque achava que as tinha melhores: “Sabe, isto está a precisar de uma
reestruturação”.
E assim
serenava, mesmo sem apresentar propostas concretas de reestruturação da empresa
ou da nossa área.
Era o tempo
da experiencia da cooperativa da Torre Bela, na estrada de Alenquer, com as
mulheres do campo a recolherem cuidadosamente todas as azeitonas caídas para fazer
azeite e óleo combustível.
Ou da
cooperativa Salvador Joaquim do Pomar, registada como unidade coletiva de
produção, no Escoural, ocupada e descrita nos jornais como foco de agitação de
partidos politicos, mas eu estive lá na véspera da promulgação da lei da
reforma agrária.
Em surdina
os trabalhadores agrícolas murmuravam “a terra a quem trabalha, vamos ocupar,
já” mas os discursos dos militantes do partido acusado de agitador repetiam:
“esperem pela promulgação da lei no Parlamento”.
E não vi
travessas da companhia das Índias à venda à beira da estrada.
Ou do voo do
T6 Harvard em 11 de março de 1975, que vi da janela do meu gabinete, quando
discutia pormenores do sistema de travagem automática com o técnico francês
instalador.
Ou do grupo
de adolescentes que atravessava ao fim do dia a Praça de Londres, já a bomba do
T6 Harvard tinha caído sobre o Ralis, seguindo um ingénuo professor barbudo,
gritando “a reação não passará”, em véspera da nacionalização das grandes
empresas.
Nasce no
nosso cérebro uma ilusão, uma construção de fé numa lei universal da qual se
deduz a lei que rege uma aplicação concreta. Pensa-se que há uma verdade, uma
lógica.
Adora-se
essa verdade, quando a adoração pode ser apenas uma manifestação de insegurança
que se compensa com a imposição aos outros.
Mas a
realidade é difusa, tem aspetos contraditórios para uma mesma existencia.
A lei que se
julgou universal só é aplicável num domínio restrito.
Não existem
verdades e soluções únicas.
Num ápice
estamos a defender uma coisa com argumentos que nos parecem lógicos, mas se
tivessemos optado por defender o contrário também alinhariamos argumentos de
lógica imbatível para sua defesa.
Não é
possível criar um modelo de representação exata da realidade.
Vivemos na
caverna e só vemos as sombras de Platão.
Não
procuremos só a síntese, analisemos as diversas perspetivas, tentemos deslocar
para um lado ou para o outro, a linha que separa o modelo de sociedade de uns,
do modelo de sociedade de outros, da garantia de serviços públicos de uns , ou
da expetativa de crescimento dos mercados livres, conforme seja nesse instante melhor
para a comunidade nacional, com o contributo de todos, como defendeu o major
Melo Antunes depois da crise politica de novembro de 1975.
Por isso
fomos felizes no metropolitano por não terem degenerado em violencia as nossas
discussões ao longo das peripécias da transição da ditadura para a Republica
democrática.
“Sabe, isto
está a precisar de uma reestruturação”.
Isto dizia
sem ter lido Chandler e a sua teoria baseada na observação das grandes empresas
norte americanas, “structure follows strategy”.
Que mais
importante que a estrutura são as pessoas, o seu modo de pensar e agir, de
colaborarem umas com as outras, de se organizarem em equipa, de circularem a
informação e planearem a ação, de monitorizarem os resultados e de corrigir as
deficiencias.
De definirem
a estratégia ao serviço da comunidade.
Isso foi
feito, com as nossas limitações, dentro do metropolitano, com o crescimento aos
poucos da sua frota e da sua rede.
Isso foi
feito no país, com a maravilhosa conquista das melhorias na saúde pública,
especialmente na redução da mortalidade infantil, e na democratização do
ensino.
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