terça-feira, 7 de janeiro de 2014

memórias do metropolitano: uma reestruturação

o texto seguinte faz parte de umas memórias no metropolitano de Lisboa



uma reestruturação


A exploração de um metropolitano exige o cumprimento de padrões de segurança rigorosos.
Senti que a orientação dos técnicos de engenharia, muitos deles com experiencia anterior na CP, era nesse sentido, o que diferenciava o metro, empresa jovem, da maioria das empresas de transportes da época.
Também o ambiente entre os trabalhadores e nos seus orgãos sindicais, ainda antes da revolução de 25 de abril de 1974, revelava modernidade, com acordo coletivo  e espírito de abertura.
Recordo, no dia da entrevista para a minha admissão, com Rocha Cavalieri, a sua preocupação, como diretor de exploração, com a greve dos maquinistas, em fevereiro de 1974.
Para ele, os comboios não circularem colidia com o seu código deontológico.
E na verdade, os engenheiros deviam ter um juramento semelhante ao de Hipócrates, darem ao objeto da sua atividade profissional, neste caso transportar pessoas, a prioridade máxima.
Com mais ou menos sobressaltos, os dias que se seguiram à revolução não foram tormentosos.
Algumas mudanças nos lugares de chefia, convites até a jovens engenheiros, recem admitidos para assumirem funções de responsabilidade, enquanto seniores se transferiam para gabinetes de estudos e de obras novas ou de apoio à administração, preparando a remodelação das estações e, de colaboração com os consultores alemães da Deconsult, o plano da futura rede.
Não houve grande animosidade entre grupos, prevaleceu sobre ímpetos de vingança a consideração pelo prestígio profissional do ex-membro da Legião Portuguesa, do familiar do latifundiário morto numa rixa com trabalhadores rurais. A comissão de trabalhadores foi representativa com pluralismo.
Os  comboios não pararam, apesar do boicote de alguns fornecedores estrangeiros, e a comunidade de trabalho cumpriu a sua missão, não de Hipócrates, mas talvez de Hieron, o da força do vapor.
Não pararam, estranhamente para quem se deixava impressionar pelo que lia nos jornais; até a própria economia do país, apesar das descapitalizações e da quebra do PIB reagiu bem à crise internacional do petróleo de 1973, a ponto de uma equipa do MIT fazer um relatório elogioso em novembro de 1975.
A maioria viveu dias de intensa esperança, acreditando que podia participar na vida política e ter uma opinião sobre os problemas do país.
O meu especialista de peças de precisão para as máquinas de impressão de bilhetes, pela sua ingenuidade natural, era o exemplo juvenil, embora já fosse avô, de quem passava muito do seu tempo a pensar em mudanças, no bairro, na empresa, no país.
Dizia-me sempre, depois de rejeitar sistematicamente as minhas propostas de alterações nos mecanismos em que trabalhava para corrigir deficiencias de funcionamento porque achava que as tinha melhores: “Sabe, isto está a precisar de uma reestruturação”.
E assim serenava, mesmo sem apresentar propostas concretas de reestruturação da empresa ou da nossa área.
Era o tempo da experiencia da cooperativa da Torre Bela, na estrada de Alenquer, com as mulheres do campo a recolherem cuidadosamente todas as azeitonas caídas para fazer azeite e óleo combustível.
Ou da cooperativa Salvador Joaquim do Pomar, registada como unidade coletiva de produção, no Escoural, ocupada e descrita nos jornais como foco de agitação de partidos politicos, mas eu estive lá na véspera da promulgação da lei da reforma agrária.
Em surdina os trabalhadores agrícolas murmuravam “a terra a quem trabalha, vamos ocupar, já” mas os discursos dos militantes do partido acusado de agitador repetiam: “esperem pela promulgação da lei no Parlamento”. 
E não vi travessas da companhia das Índias à venda à beira da estrada.
Ou do voo do T6 Harvard em 11 de março de 1975, que vi da janela do meu gabinete, quando discutia pormenores do sistema de travagem automática com o técnico francês instalador.
Ou do grupo de adolescentes que atravessava ao fim do dia a Praça de Londres, já a bomba do T6 Harvard tinha caído sobre o Ralis, seguindo um ingénuo professor barbudo, gritando “a reação não passará”, em véspera da nacionalização das grandes empresas.
Nasce no nosso cérebro uma ilusão, uma construção de fé numa lei universal da qual se deduz a lei que rege uma aplicação concreta. Pensa-se que há uma verdade, uma lógica.
Adora-se essa verdade, quando a adoração pode ser apenas uma manifestação de insegurança que se compensa com a imposição aos outros.
Mas a realidade é difusa, tem aspetos contraditórios para uma mesma existencia.
A lei que se julgou universal só é aplicável num domínio restrito.
Não existem verdades e soluções únicas.
Num ápice estamos a defender uma coisa com argumentos que nos parecem lógicos, mas se tivessemos optado por defender o contrário também alinhariamos argumentos de lógica imbatível para sua defesa.
Não é possível criar um modelo de representação exata da realidade.
Vivemos na caverna e só vemos as sombras de Platão.  
Não procuremos só a síntese, analisemos as diversas perspetivas, tentemos deslocar para um lado ou para o outro, a linha que separa o modelo de sociedade de uns, do modelo de sociedade de outros, da garantia de serviços públicos de uns , ou da expetativa de crescimento dos mercados livres, conforme seja nesse instante melhor para a comunidade nacional, com o contributo de todos, como defendeu o major Melo Antunes depois da crise politica de novembro de 1975.
Por isso fomos felizes no metropolitano por não terem degenerado em violencia as nossas discussões ao longo das peripécias da transição da ditadura para a Republica democrática.
“Sabe, isto está a precisar de uma reestruturação”.  
Isto dizia sem ter lido Chandler e a sua teoria baseada na observação das grandes empresas norte americanas, “structure follows strategy”.
Que mais importante que a estrutura são as pessoas, o seu modo de pensar e agir, de colaborarem umas com as outras, de se organizarem em equipa, de circularem a informação e planearem a ação, de monitorizarem os resultados e de corrigir as deficiencias.
De definirem a estratégia ao serviço da comunidade.
Isso foi feito, com as nossas limitações, dentro do metropolitano, com o crescimento aos poucos da sua frota e da sua rede.
Isso foi feito no país, com a maravilhosa conquista das melhorias na saúde pública, especialmente na redução da mortalidade infantil, e na democratização do ensino.




   

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