https://www.transportesenegocios.pt/tn-debate-transporte-ferroviario-de-mercadorias-2/
Tendo assistido a parte deste seminário, enviei ao diretor da T&N o seguinte comentário.
https://www.transportesenegocios.pt/tn-debate-transporte-ferroviario-de-mercadorias-2/
Tendo assistido a parte deste seminário, enviei ao diretor da T&N o seguinte comentário.
Salvo melhor opinião, o problema das ciclovias na cidade deve ser resolvido não só com planeamento integrando todos os modos de transporte aplicáveis, mas com o estudo de dados concretos da sinistralidade, da atualização permanente do código da estrada, da eficiência espacial e energética dos modos de transporte e, naturalmente, das análises de custos benefícios.
A discussão da sinistralidade exige a contagem eficiente dos veículos-km (ou pessoas-km) para determinação do número de fatalidades e de feridos graves por mil milhões de veículos-km e sua comparação com os outros modos e controle da evolução.
Infelizmente, não estão disponíveis estatísticas atualizadas com discriminação suficiente por modo de transporte (por exemplo, separando os acidentes com bicicletas, com trotinetas, skates ou monociclos).
Esta situação, juntamente com a ausência de campanhas publicitárias com os procedimentos corretos para a circulação segura, impede a tomada de decisões o planeamento certos.
Exemplo de estatísticas disponíveis:
- relatório de sinistralidade a 24h da ANSR (multiplicar o número de vítimas mortais por 1,3 para obter as vítimas mortais a 30 dias) de janeiro a julho de 2021 comparada com igual período de 2020; na página 17 a sinistralidade por distrito e nas páginas 18 e 19 a sinistralidade por categoria do veículo; não estão disponíveis as vítimas mortais em velocípedes, nem os veículos-km percorridos, o que aliás acentuaria o peso dos acidentes dos velocipedes, ciclomotores e motociclos quando comparados com os dos automóveis:
- relatório de sinistralidade da ANSR de 2019; mais pormenorizado, com comparções com países europeus; na pág.130 a estatística de vítimas mortais por tipo de veículo
- relatório de sinistralidade da ANSR do distrito de Lisboa de 2018; na página 11 o número de vítimas mortais por tipo de veículo (3 em velocípedes e 3 em ciclomotores)
- relatório de 2018 da ANSR para o continente,
retira-se 24 ciclistas como vítimas mortais a 30 dias no Continente (infelizmente, as mortes em acidentes são superiores às contabilizadas no local e no transporte para o hospital). Considerando a população da AML, 2,8 milhões, que realizam por dia cerca de 5 milhões de deslocações em veículos e admitindo por ano 5 mortes na AML e que 2,5% do total de deslocações é feita em bicicleta com percurso médio de 15 km estimo 9 mortes de ciclista por mil milhões de pass-km. Este valor é superior ao das mortes em automóvel (3 por mil milhões) e inferior em motos e motociclos (50 por mil milhões!) e contraria a falsa sensação de segurança que o artigo pretende passar (embora, efetivamente, aumentando o percurso médio e o número de utilizadores o indicador de risco melhor se, e só se, o número de acidentes não aumentar).
No relatório do inquérito à mobilidade IMOB 2017 os valores para as deslocações em bicicleta foram: 0,7% do total de deslocações com percurso médio de 8,9km, admitindo-se entretanto um crescimento acentuado.
Segundo o relatório de 2020 da DG MOVE da Comissão Europeia, a posição de Portugal na sinistralidade rodoviária na EU-27 é em 22º lugar com 68 vítimas mortais por ano por milhão de habitantes (média da EU-27, 52) ou 19º lugar com 7,2 vítimas mortais por ano por mil milhões de passageiros-km (média da EU-27, 5,4) .
Estes números revelam a gravidade das consequências dos acidentes para os utilizadores vulneráveis (peões e ciclistas) e a necessidade de campanhas eficazes de redução da sinistralidade, sendo certo que a própria EU necessita de melhorar os seus números. Embora a ANSR tenha campanhas em curso, duvida-se da sua eficácia, provavelmente por carência orçamental.
Ainda segundo esse relatório (os números são ligeiramente diferentes dos da ANSR devido ao critério de registo das vítimas mortais a 24h ou a 30 dias (este mais realista) em 2018 das 700 vítimas mortais 163 foram peões. Dos 537 restantes, 238 foram condutores ou passageiros de automóveis ligeiros e pesados, 112 de motos (é enorme o risco dos utilizadores de motos), 42 de ciclomotores (ignoro se inclui os utilizadores de trotinetas, bicicletas elétricas e vários com motor auxiliar) e 26 ciclistas.
Notar que os valores da sinistralidade em motos é catastrófico e em automóveis inaceitável.
- relatório da CML sobre contagens de bicicletas em 2020:
- folheto da CML com alguns dados, março de 2021:
https://www.lisboa.pt/fileadmin/cidade_temas/mobilidade/documentos/Como_Pedala_Lisboa.pdf
Para ter uma ideia da utilização real da ciclovia da Av.Almirante Reis fiz uma contagem de todos os veículos num ponto da avenida, entre as 17:30 e as 18:00 do dia 26out2021. Em cada sentido, passa 1 bicicleta por minuto e uma trotineta em pouco mais de 2 minutos (estimativa 122 bicicletas por hora e 1220 por dia nos dois sentidos). O tráfego automóvel é cerca de 5 vezes e numa estimativa grosseira, o tráfego do metro cerca de 40 vezes em termos de pessoas transportadas (intervalo de 6 minutos, 40 passageiros por carruagem):
PS em 24nov2021 - de forma muito grosseira, estimo 90 veículos (bicicletas, trotinetas e skates) por hora de ponta e sentido (intervalo de 40s entre veículos) e admitindo 2,5k para o comprimento da ciclovia, temos na hora de ponta 36 veículos/km ou uma distancia média entre veículos de 28m ou velocidade média de 2,5 km/h .
Comparando com a informação veiculada pela EMEL que de 7jul2021 a meados de nov2021 tinham sido contados 2,3 milhões de passagens de veículos nos 3 sensores dos 120 km de ciclovias, teremos
2.300.000/135 dias = 17.000 veículos/h e dois sentidos ou 8.500 veículos/h e sentido
admitindo 850 veículos/hora de ponta e sentido (intervalo de 4,2 s) teremos
850/120 = 7 veículos/km na hora de ponta, ou distancia média entre veículos de 140m
Não há coerência nestes números para o conjunto das ciclovias porque significaria uma velocidade média de cerca de 110 km/h, isto é, os 120 km não foram utilizados uniformemente.
Mais uma razão para insistir no pedido (em termos de engenharia de tráfego será exigência de controle da sinistralidade) de elaboração rigorosa das estatísticas de utilização, de preferência em termos de veículos-km e número de deslocações, e de classificação dos acidentes e suas consequências.
Não pode haver passagens de nível em linhas de caminhos de ferro, não pode misturar-se tráfego ferroviário com pedonal, não é fiável a operação por quem atravessa de verificação para os dois sentidos. O tráfego ferroviário tem de estar segregado. As estatísticas mostram isto, e o GPIAAF deveria elaborar um inquérito.
Ignoro a reação oficial ao processo de infração interposto pela CE por falta de segurança na ferrovia portuguesa: https://fcsseratostenes.blogspot.com/search?q=infra%C3%A7%C3%A3o
Devemos ao Publico um especial agradecimento pela disponibilização, com a edição de 21 de outubro de 2021, da Utopia, de Thomas More, que desde a minha adolescencia não visitava.
Transcrevo da página 166:
"Que justiça é essa quando um nobre, um joalheiro, um usurário ... que faça algo que não tem utilidade para o público, leva uma vida de magnificência? entretanto um criado, um cocheiro, um ferreiro ou um agricultor labuta como uma besta, desenvolvendo um trabalho tão necessário que a comunidade não poderia passar um ano sem ele. Apesar disso esses trabalhadores ganham pouco e vivem uma vida miserável ... carregam o fardo do trabalho árduo, estéril e sem frutos, vivendo no temor de uma velhice necessitada. O seu salário é insuficiente para os apoiar no presente, pelo que não têm excedentes para armazenar para o futuro."
Por coincidencia, a edição do Público desse dia traz um artigo de Isabel do Carmo que explica o problema da exclusividade no SNS (recordo que os sistemas de segurança social e de saúde pública historicamente foram de iniciativa de partidos conservadores, Bismarck na Alemanha, o partido conservador no pós guerra dos anos 40) :
Neste artigo, conta-se a história de uma médica altamente qualificada, com três filhos. Até 2017 ganhava 1200 euros, com um horário de 40 horas incluindo urgencias; depois de 2017, até mudar-se para o serviço privado, ganhava entre 1500 e 1800 euros, incluindo as urgencias.
Solução para isto seria o crescimento económico, mas há dificuldade em aceitsr isso. Então, recorrendo à mesma edição de dia 21, ao menos comece-se pelo que a crónica de Miguel Esteves Cardoso advoga, o encontro e o diálogo, para vencer os degraus da separação, se necessário com intermediários:
https://www.publico.pt/2021/10/21/opiniao/opiniao/questao-degraus-1981846
Caro Mr David Frost
Obrigado pelas suas entrevistas e esclarecimentos sobre o Brexit e o atual papel do UK no mundo.
Um dos temas dessas entrevistas foi a Irlanda. Por uma associação de ideias, ocorreu-me uma crónica do nosso escritor Eça de Queirós, que nos anos de 1880 era diplomata em Londres e enviava as suas análises para um jornal do Porto.
Podemos dizer que, para além do aspeto de entretenimento das crónicas, vale a profundidade da análise política, social e geoestratégica para compreendermos o papel do UK na História, no presente e, se a estratégia britânica não mudar, no futuro. Não me pareceu necessário ir às apreciações de Marx, contemporâneas das de Eça, sobre as empresas inglesas na Irlanda, nem recuar aos tempos de Thomas More.
Vou transcrever parte dessa crónica sobre a Irlanda com referências ao Afeganistão, então como agora, e referir outra sobre o Egito (embora longe vai o caso do Suez em 1956), com a secreta esperança de que venha a ler a tradução do livro de crónicas, "Cartas de Inglaterra" e de alguns dos romances de Eça.
"Os males da Irlanda, muito antigos, muito complexos, provêm, sobretudo, do sistema semifeudal da propriedade ... Se, como é de temer, a Irlanda vier a esquecer-se do que deve a si e à Inglaterra - escrevia o solene jornal Standard - é doloroso pensar que no próximo inverno, para manter a integridade do império, a santidade da lei e a inviolabilidade da propriedade, nõs teremos de ir, com o coração negro de dor, mas a espada firme na mão, levar à Irlanda, à ilha irmã, à ilha bem-amada, uma necessária exterminação".
Isto reportava Eça depois da aprovação pela câmara dos comuns de uma lei justa para os irlandeses, mas que foi chumbada pela câmara dos lordes.
Eis como é possível, no país do povo donde saiu quem gerou grandes conquistas do pensamento humano, da organização política, das consultas populares, do método científico, da industrialização, um grupo usar as instituições para bloquear o interesse público (toda e qualquer semelhança com o processo do Brexit é pura coincidência).
Sobre o Afeganistão diz a mesma crónica:
"Em 1847 os ingleses...invadem o Afeganistão e aí vão aniquilando tribos seculares...apossam-se por fim da santa cidade de Cabul... assim é exatamente em 1880".
Sobre o Egito, Eça descreve o bombardeamento de Alexandria pelos couraçados do almirante Seymour, a pretexto da não entrega dos fortes de Alexandra aos ingleses, e presta homenagem ao patriota Arabi-Pachá. No fundo, o UK queria manter o controle do canal do Suez, como a História se repete (anos 50 do século XX, Naguib e Nasser) e para isso queria um kediva fantoche no poder .
Não perca. Mr Frost, as "Cartas de Inglaterra"
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Dear Mr David Frost
On Egypt, Eça describes the bombing of Alexandria by Admiral Seymour's battleships, under the pretext of not handing over Alexandra's forts to the English, and pays homage to the patriot Arabi-Pacha. Basically, the UK wanted to keep control of the Suez channel, as history repeats itself (the 50s of the 20th century, Naguib and Nasser) and for that they wanted a puppet kediva in power.
Tendo na campanha eleitoral o presidente eleito da CML prometido acabar com a ciclovia da Almirnte Reis no estado em que ela está, entenderam muitos ciclistas manifestarem-se em sua defesa.
Destaco, dentre tantos temas que seria interessante analisar, estas declarações de um dos organizadores da manifestação https://www.esquerda.net/artigo/manifestacao-em-defesa-da-ciclovia-juntou-mil-pessoas-em-lisboa/77458 :
"Miguel Pinto, um dos organizadores do protesto, disse à agência Lusa que “esta questão entrou no debate político de forma inquinada. Aquilo que queremos é uma solução mais equilibrada e que seja possível toda a gente circular. O que nós estamos a pedir é um diálogo”.
mesmo comentário |
Concordando com as declarações do organizador reivindicando diálogo e possibilidade para todos circularem, não esquecendo que mais vulneráveis do que os ciclistas são os peões porque, para além dos automóveis, correm o risco de serem atropelados nos passeios e nas passadeiras de peões também por bicicletas, trotinetas e skates .
Transcrevo os resultados de um pequeno cálculo da ocupação longitudinal em metros de uma rua de 6 m de largura para a deslocação de 100 pessoas deslocando-se com um intervalo de segurança de 2 segundos (para evitar colisões por travagens bruscas) a 20 km/h (exceto peões a 3,6 km/h):
automóveis 581 ma seta a amarelo indica o percurso de uma trotineta; a curva por onde passou tem pouca visibilidade |
Antecedentes:
Num editorial do "Público"
https://www.publico.pt/2021/10/06/politica/editorial/lei-ordens-bem-toxico-1980128
Numa carta ao diretor:
“Todas as profissões são uma conspiração contra os leigos”, uma das frases famosas de George Bernard Shaw que contém mais do que um grão de verdade. E as ordens
(https://www.publico.pt/2021/10/05/politica/noticia/ps-avanca-lei-acabar-entravesrestricoes-criados-ordens-profissionais-1979909 ) são um instrumento dessa conspiração.
Finalmente os políticos começam a acordar perante os dinossauros que são as ordens
profissionais, que existem na realidade para proteger os profissionais que têm um
“canudo” contra os amadores. A retórica das ordens que dizem pretender proteger os
interesses dos clientes (dos doentes no caso dos médicos) é apenas retórica. A meu ver, o
governo devia propor partir as ordens em três instituições independentes, uma que
defende os interesses dos profissionais, outra que garante os padrões profissionais e
outra que defende os interesses dos clientes (esta última constituída por maioria de
leigos). Evitar-se-iam assim os actuais flagrantes conflitos de interesse. José Ponte, Londres
Comentário meu:
Eu, mestre artesão duma guilda medieval me confesso, antes que me acusem de algo ainda pior, de impedir a criação de novas oficinas pelos aprendizes.
Este é um problema complicado devido à nossa portuguesa maneira de ser.
Há algum tempo, o patrão da Tesla afirmou que em vez de se dizer "fuel cell", deveria dizer-se "fool cell". Provavelmente não terá estudado os fundamentos da Física que explicam o funcionamento das células de combustível, mas o importante é verificar que a utilização de termos ofensivos não deve ter lugar no mundo da técnica, onde se deve seguir o método científico, com entre outros destaques, a experimentação das hipóteses.
Caro Diretor
Volto ao seu contacto a propósito do seu editorial "O país não se muda com discursos". Corro o risco de o maçar, mas responsabilizo-o também por isso, por se ter dado ao incómodo de responder a um email meu anterior sobre o manifesto em defesa do jornalismo, sendo que não consigo o poder de síntese dos seus comentadores iniciantes, influentes e experientes, alguns dos quais bastante ferinos no que escrevem.
Escrevo-lhe desta vez porque discordo que uma "ousadia estrutural" ameaçasse a estabilidade política. A portentosa máquina governamental de "marketing" (a minha sobrinha que ainda acredita nessas maravilhas diria "de comunicação estratégica") saberia com sucesso atrair a população para o apoio dessa ousadia. E os partidos iriam atrás, para isso servem as sondagens.
Mas concordo, Portugal patina, e a senhora Teodora, que não aprecio muito por desprezar o keynesianismo da ponte de Sidney (os australianos às vezes têm boas saídas, pena não as terem sempre, pena para o Pacífico e para o planeta, mas enfim, noblesse oblige) tem razão, os orçamentos devem ser um veículo de políticas estruturais (sabendo-se que, como dizia o outro, "structure follows strategy") e não um seu substituto. Os orçamentos deviam ser como as normas são na engenharia, abrangendo os pormenores, que como se sabe são o diabo, e para cumprir. Como razão tem o caro Diretor, o PRR ameaça tornar-se uma ilusão, uma oportunidade perdida.
Eu creio que aquele senhor ministro muito discreto, do Planeamento, até terá algumas medidas concretas aplicáveis a empresas, portanto ao abrigo das críticas estatizantes, mas a economia deve ser dual e não consigo esquecer a ponte de Sidney nem a pergunta de Steinbeck nas Vinhas da Ira, "porque não tem o Estado mais quintas assim?".
Chego finalmente, depois de divagar, ao motivo principal que me levou a escrever-lhe. Não é com discursos, é com medidas concretas que se muda o país. E então lembrei-me de que em fevereiro de 2021 não fiz um discurso, participei na consulta pública e enviei o que pode encontrar nesta ligação:
http://fcsseratostenes.blogspot.com/2021/02/participacao-titulo-individual-na.html
Muitos dos investimentos propostos, nomeadamente os relativos à ferrovia, até podem beneficiar de outros mecanismos europeus, como o CEF, mas eles só virão se do lado de cá se fizer o trabalho de casa, isto é, os estudos prévios com os traçados (no caso da ferrovia) e as análises de custos-benefícios, e o tempo a passar sem a mobilização da engenharia para isso ...
Pode ser que o caro Diretor mande "pescar" contributos de outros participantes na consulta pública, ou de quem agora apresente propostas, e vá publicando excertos de interesse público, pode ser, não sei, seria uma forma participativa...
Com os melhores cumprimentos
O cérebro humano resulta de uma evolução em que estádios anteriores regulavam o comportamento perante a aproximação de perigos fundamentalmente de dois modos: ou o sujeito fugia, ou o sujeito parava e avaliava a situação. Provavelmente a taxa de mortalidade no segundo caso seria superior. Já depois do desenvolvimento do cortex préfrontal, no primeiro caso a tribo, verificando que estava num contexto adverso, tentava adaptar-se (por exemplo, refugiando-se em cavernas e apelando à criatividade para encontrar sustento). No segundo caso, a tribo procurava paragens mais pacíficas. Felizmente haveria uma mistura dos comportamentos, senão ter-se-iam gerado graves desigualdades.
Depois desta introdução, consideremos uma das histórias de Bocage, sem esquecer que a categoria intelectual do poeta também se revela nalgumas dessas histórias.
Um belo dia Bocage apareceu no seu querido Rossio, envolto numa peça de fazenda, sem fato que se visse. Questionado pelos passantes, Bocage respondeu que estava à espera da última moda, porque de cada vez que comprava um fato novo havia sempre alguém que lhe dizia que esse fato já estava desatualizado, ou que por menos dinheiro poderia ter comprado noutra loja um fato melhor, ou que estava para sair um fato de desenho completamente novo.
Vamos chamar a isto o complexo do fato de Bocage. Se Bocage aparecesse com um fato, os cérebros com tendencia para fugir perante um perigo, ou simplesmente para repudiar um facto novo, diriam que Bocage teria feito melhor em escolher outro fato, até mesmo um fato que ainda não existisse, de acordo com uma moda que ainda não estivesse espalhada. Enquanto outros diriam que terá feito bem em escolher um fato de feitio já aprovado. No primeiro caso o complexo misturar-se-á com alguma insegurança, que precisa de um ideal, ainda por concretizar, portanto virtual, para desculpar a insegurança de, no fundo, não ter uma solução concreta para apresentar. Já o segundo caso poderá revelar a preocupação por avançar para uma solução já testada, de seguir uma norma testada, depois naturalmente de parar um pouco para avaliar o que haverá para escolher.
Ainda antes de dizer porque estou a escrever isto, vamos dar um salto à história longínqua do império bizantino. Tive a sorte da minha professora de História nos contar que no desenvolvimento deste império, a seguir à separação do império romano do ocidente (lembram-se do imperador Justiniano e da sua Teodora?) as corridas no Hipódromo desempenharam um papel político fundamental, e que havia dois partidos principais, os azuis e os verdes, que eram mais do que as claques de apoio das equipas de quadrigas, eram mesmo partidos políticos. Digamos que era um estádio evolutivo da democracia ateniense, então alargada às classes populares que se distribuiam pelos lugares do Hipódromo segundo as cores dos seus partidos e convenientemente segregadas das elites.
Antes de prosseguir, devo declarar que não estou a defender os fundamentos históricos das atuais lutas partidárias e das declarações de protesto de ser impensável fazer alianças com os membros do partido adversário. Pelo facto de um cérebro estar mais afeto à solução rejeição da nova proposta isso não significa que não possa interagir com outro cérebro vocacionado para a análise da nova proposta, de modo a, pela diversidade, se atingir uma hipótese mais fiável cujo teste experimental deverá ser acompanhado pelos dois e por eles melhorada a proposta em função dos resultados observados.
A recusa de colaboração entre quem pensa de forma diferente ou tem outros afetos, poderá ter explicação num complexo de inferioridade associado ao já citado sentimento de insegurança. Não vou negociar com o outro porque tenho medo de ficar a perder, por isso vou fechar-me no meu grupo, em que me revejo e que me protege, e para facilitar as coisas arranja-se um chefe ou um grupo pequeno de eleitos por nós, que definirá o que devemos pensar e fazer, e quem não tiver a disciplina partidária para aguentar isso que mude de partido, se pensarmos pela nossa cabeça tornamos o partido ingovernável. Também podemos chamar a isto o complexo da endogamia ou da segurança uterina.
Numa recente entrevista, um dos técnicos alemães que colaborou no desenvolvimento do sistema audio MP3 explicou à entrevistadora portuguesa que, perante uma nova proposta, em Portugal se ouvem imediatamente críticas ("isso não é assim") e sugestões de alternativas, mesmo virtuais ("o que era bom era..."), enquanto na Alemanha o mais frequente é ouvir-se nessas circunstancias "certo, como vamos fazer isso?", o que facilita o início do trabalho de concretização. Isto é, quando se pergunta "como fazer?" está-se longe do complexo de insegurança e do receio de iniciar algo (existem outras entrevistas em que o pensamento alemão, especialmente o financeiro, não ficará tão bem, mas isso é outro tema).
Mas vamos aos exemplos concretos do complexo do fato de Bocage, sendo que, nos tempos que correm, não é preciso ir passear para o Rossio com uma nova proposta ou, no caso da peça por costurar, com uma intenção apenas, porque basta propor-se qualquer coisa para as chamadas redes sociais se carregarem de sapientes e agressivos comentários que deixariam Bocage sem fôlego para as suas habituais respostas. Os números apresentados baseiam-se em estimativas mais ou menos grosseiras e deverão ser confirmados.
1 - Proposta: recurso à utilização do hidrogénio para tração através de células de combustível, beneficiando do excesso de produção de eletricidade eólica.
Imediatamente se levantaram vozes dizendo que o futuro da mobilidade é o das baterias de lítio, e quando se chama a atenção para a péssima densidade de energia em peso (300 Wh/kg) a resposta é que os progressos tecnológicos permitirão melhores rendimentos com eletrólito de estado sólido e com baterias de sódio e zinco, mas não se indica uma data para a sua comercialização.
Sem querermos ficar à espera da melhor solução (peça de Bocage por costurar), atualmente já se veem em exploração comercial automóveis, camiões, automotoras e locomotivas com soluções mistas, tração por célula de combustível, serviços auxiliares a partir de baterias de lítio. Isto é, retirando os benefícios de ambas as soluções, da diversidade.
2 - Proposta: precisamos na Europa de uma rede única ferroviária que una as capitais e que assegure o transporte energetica e ambientalmente eficiente de passageiros e de mercadorias em todo o território.
Imediatamente se levantaram vozes a dizer que é mais económico aproveitar a rede existente, mesmo com limitações ou, para substituir as viagens aéreas até 2000 km, construir uma rede de hyperloop .
Fazendo o paralelo com o episódio de Bocage, aproveitar as linhas existentes equivale a remendar o fato antigo, e construir o hyperloop equivale a andar de peça por costurar.
Justificação técnica: no caso das linhas existentes, foram construidas com parâmetros não compatíveis com as atuais velocidades da ordem de 300 km/h, com curvas e pendentes desfavoráveis, que limitam o rendimento do transporte de mercadorias. No caso do hyperloop, por razões de custo e de consumo energético as dimensões dos veículos são incompatíveis com o transporte de quantidades significativas de mercadorias. Não têm sido apresentadas estimativas realistas com os custos de construção (tubos de 3 m de diâmetro em viaduto, com raios de curvatura e pendentes mais rigorosos do que nas linhas de alta velocidade ferroviárias e com necessidade de suportar elevadas velocidades). As velocidades possíveis serão competitivas com o avião, possibilitando as referidas distancias de 2000 km, mas a energia poupada com vácuo para permitir essas velocidades é contrabalançada pela energia necessária para a levitação e afastamento das paredes, e para a produção do vácuo. Por razões de segurança (espaçamento entre veículos a velocidades da ordem de 800 km/h) a capacidade de transporte é limitada comparativamente com a ferrovia. Admitindo uma desaceleração de emergencia máxima de 4 m/s2, a distancia entre veículos será de 6000 m e a capacidade de transporte da via única será a velocidade x densidade de ocupação = 800 x 1/6 = 13,6 veículos/hora. Para uma ocupação de 30 passageiros teremos cerca de 400 passageiros/hora.
Em resumo, existem reservas sobre a viabilidade do hyperloop como transporte mais económico e eficiente, nomeadamente pra mercadorias pesadas.
3 - Proposta: Por razões ambientais, devemos substituir o transporte de mercadorias por camião, pela ferrovia.
Imediatamente se levantaram vozes a dizer que com os camiões elétricos por bateria ou por hidrogénio, ou até mesmo por catenária (experiencias na Alemanha e na California com camiões de bateria de lítio e com pantógrafo) a vantagem se mantem nos camiões por permitir o "porta a porta".
Mas omite-se uma questão essencial que é a da energia necessária para vencer a resistencia ao deslocamento. No caso dos camiões, o coeficiente de resistencia ao rolamento da roda de borracha sobre o asfalto é maior do que o da roda de aço sobre o carril, porque o atrito entre a borracha e o asfalto é superior.
Para o transporte de 1400 toneladas de carga útil, necessitaremos de 40 camiões de 35 toneladas de capacidade cada ou de 1 comboio de 750 m . A resistencia ao deslocamento a 100 km/h dos 40 camiões será de 250 kN e a do comboio 70 kN , conduzindo a um consumo específico de energia de 160 Wh/ton-km no caso dos camiões diesel e de 40 Wh/ton-km no caso do comboio. Valores para camiões elétricos: 80 Wh/ton-km .
Dado que os camiões têm a grande vantagem de poder fazer o "porta a porta", a melhor solução para o transporte de mercadorias, que tem também a vantagem de reduzir o congestionamento nas estradas, é o transporte de camiões ou semirreboques pelo comboio. É a solução já praticada entre Espanha e Barking, na Inglaterra. Ver http://fcsseratostenes.blogspot.com/2020/05/hoje-falamos-de-cenouras.html
É também por causa do balanço de energia que o consumo específico de energia no transporte de mercadorias numa linha nova é inferior ao consumo específico de energia numa linha existente cujos raios de curva e pendentes são mais desfavoráveis. Estimativa: comboio em linha nova de parâmetros conforme a norma 40 Wh/ton-km ; comboio em linha pre´-existente 60 Wh/ton-km. Ver https://1drv.ms/w/s!Al9_rthOlbwehiNTEh_xoxbZe16C
Em resumo, relativamente a uma linha nova segundo os parâmetros da norma da interoperabilidade, nem é mais eficiente o camião elétrico nem o comboio numa linha pré-existente.
4 - Proposta: Por razões ambientais, devemos substituir as viagens aéreas de menos de 800 km pela ferrovia.
Imediatamente se levantaram vozes a dizer que, com os progressos tecnológicos, já previstos pela própria Airbus para 2035, os aviões serão movidos por hidrogénio obtido por fontes renováveis (lá terá o nosso Bocage de andar mais uns anos com a peça por costurar).
Consideremos Lisboa-Madrid por avião e valores mais ou menos aproximados.
A energia associada ao movimento de um avião de 60 toneladas com 180 passageiros de uma cidade a outra a uma altitude de 10.000 m e uma velocidade de 800 km/h será de cerca de 8 MWh ((energia cinética=1/2 mv2) + (energia potencial=mgh) + (energia de sustentação ca 7 MWh)). Ver http://large.stanford.edu/courses/2013/ph240/eller1/ e https://es.wikipedia.org/wiki/Consumo_de_energ%C3%ADa_del_tren_y_de_otros_medios_de_transporte
Essa será também a energia aproximadamente associada ao movimento de um comboio de alta velocidade para o mesmo percurso, mas transportando o dobro de passageiros.
No primeiro caso, considerando um rendimento de 35%, será necessário consumir no avião 8/0,35= 23 MWh. No segundo caso 8/0,85= 9,4 MWh no comboio. Em termos de energia primária suporemos que em ambos os casos se aplica um fator de 1,3 (do poço ao posto de abastecimento, ou da central de produção elétrica à subestação da transportadora). 23x1,3=30 MWh para a viagem do avião e 9,4x1,3=12,2 MWh para a viagem do comboio. Terá ainda de se agravar a alimentação do comboio com um fator de 2,3 para as perdas na rede elétrica de transmissão da transportadora, o que dará 28 MWh [correção: admitindo um fator de perdas na rede de 40% teremos 1,7 para o fator entre a potencia útil e a potência de produção, o que dará 20,7 MWh em vez de 28 MWh].
A vantagem do comboio é contrariada por aproximadamente o dobro do tempo de percurso, embora isso possa ser reduzido graças à localização das estações, mas demos mais importância à energia em si.
Diziam então as vozes proféticas que vai ser possível num futuro próximo produzir hidrogénio a partir de gás natural sem emissão de CO nem CO2, através da pirolise do metano, para produção de hidrogénio e carvão sólido (destinado a armazenamento neutro) com um rendimento de 7 kWh/kg de H2 (valor teórico). Como se trata de uma reação que não produz CO nem CO2, tornaria obsoleta a utilização do comboio.
Considerando que em 1988 o Tupolev 155 voou com as suas turbinas alimentadas diretamente por hidrogénio (e pouco depois por gás natural) [correção: a alimentação por hidrogénio foi apenas a um dos três reatores do Tupolev], podemos admitir que os Airbus voarão também com as suas turbinas alimentadas por hidrogénio, solução mais simples e fiável do que com células de combustível, estando dominada a tecnologia da compressão do hidrogénio e do seu arrefecimento no estado líquido. Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Tupolev_Tu-155 e https://en.wikipedia.org/wiki/Hydrogen-powered_aircraft
Sabendo-se que 1 kg de H2 contem 10 kWh [correção: o conteúdo energético de 1 kg de H2 é de 33 kWh dos quais com um rendimento de cerca de 30% se pode retirar 10 kWh úteis], teremos como consumo de hidrogénio no avião Lisboa-Madrid 23.000/10=2.300 kg H2 . Mas esta quantidade de hidrogénio precisou [correção: teoricamente] de 2.300 x7 kWh = 16.100 kWh para ser obtida, preferencialmente a partir de energia elétrica renovável. Aplicando o fator acima de 2,3 [correção: de 1,7x1,1] para as perdas de transporte na rede elétrica de transmissão da produção de energia até à central de produção de hidrogénio, incluindo a distribuição do gás natural para a pirolise e o armazenamento do carvão sólido, temos 16.100x2,3 = 37.000 kWh de energia primária [correção: 16.100x1,7x1,1=30.100 kWh] (notar que de acordo com a tecnologia atual, com 50 kWh/kgH2, teriamos 259.000 kWh).
Comparando com o comboio, contando com as perdas de transporte nas linhas de transmissão elétrica e nos motores e transmissões do comboio, temos como visto acima 28.000 kWh no comboio em vez de 37.000 kWh do avião com hidrogénio [correção: 20.700 kWh no comboio em vez de 30.100 kWh no avião com H2 ].
Considerando 200 passageiros para o avião e 400 para o comboio, teremos em energia primária:
avião de hidrogénio 185 kWh/passageiro ou 0,308 kWh/pass-km (28 gep/pass-km)comboio 70 kWh/passageiro ou 0,117 kWh/pass-km ( 10 gep/pass-km)
[correção: 52 kWh/passageiro ou 0,087 kWh/pass-km ( 8 gep/pass-km) ]
Em resumo, a alimentação do avião por hidrogénio não o torna mais eficiente do que o comboio.