sexta-feira, 5 de março de 2010

Almoço na esplanada da Gulbenkian 2

O meu amigo chegou apressado, como de costume, deu-me um abraço, arrastou-me sem mais demoras para o balcão do restaurante da biblioteca e museu da Gulbenkian e pediu à simpática funcionária ucraniana o “vol au vent” com molho de cogumelos e uma salada de feijão verde com alho.
Como já vos contei, almoço com ele de vez em quando na esplanada.
Recordamos o que vivemos, mais do que comentamos a atualidade.
Mas ele não resiste a verbalizar e sedimentar o pensamento crítico sobre os últimos momentos da sua vida profissional ativa no Metropolitano de Lisboa.
Desta vez o meu amigo começou por lamentar que tinha ouvido os colegas da secção dos relatórios dizer que em 2009 o metro tinha transportado menos passageiros e tinha tido uma quebra de receitas. As coisas ainda não estavam confirmadas e receava-se que alguém martelasse os números para disfarçar a tendência negativa. Assim como assim, os factos podem ser muito rígidos, mas as estatísticas podem ser  mais flexíveis (não me lembro onde vi isto escrito).
Já antes a leitura dos jornais de fim de semana tinha-o deixado desanimado.
Um leitor zangado participava à diretora da revista de sábado a sua indignação e o seu cansaço, possivelmente por já não ser jovem, com a repetição de casos em que cidadãos se encostam a quem abriu as portas dos canais de controle de acesso do metro com o cartão sem contacto e entram, incomodativamente quase abraçados.
Dizia o leitor que era mais um caso de um investimento elevado que não estava a ser bem utilizado, e que os oportunistas estavam assim a afetar a rendibilidade dos dinheiros dos contribuintes.

- Mostrei a revista ao meu colega que trata do assunto e sabes o que me disse?- isto era o meu colega a questionar-se - Que estes casos têm expressão ínfima e que há controle aleatório no interior dos comboios para fiscalização da validade dos títulos de transporte.
- Para um observador de fora, como eu, dir-se-ia que se há fiscalização no interior da linha para controlar as fraudes, não haveria necessidade de portas nos canais de acesso. Temos de ter confiança nas amostragens.
- Claro. Para determinarmos a taxa de fraudes real não precisamos de perguntar a todos os passageiros se entraram com cartão válido ou não. Formamos dois grupos aleatórios, em vários locais e momentos, num fazemos uma amostragem de apenas alguns passageiros; no outro grupo interpelamos todos os elementos. E comparamos.
- Por exemplo. Podia ser que se convencessem a tirar as portas e a assumir os custos com pessoal de fiscalização - fui dizendo eu enquanto punha um bocadinho de doce de ameixa por cima da minha tarte quiche-lorraine - Quando no fim dos anos noventa comecei a ver muita gente nas administrações a interessar-se pelo cartão sem contacto para organizar a bilhética dos operadores de transportes, em Lisboa e no Porto, ainda fui dizendo que os sistemas de controle de acessos de passageiros devem ser o menos intrusivos  possível, que deviam ter as portas abertas, porque é impossível garantir uma fiabilidade e uma disponibilidade elevadas.
Isto é, os canais de entrada e de saída deviam ser transparentes, como se não existissem, para não incomodar os passageiros. Bem basta eles terem de pagar.
O sistema ideal de transporte é o que põe as pessoas de um lado para o outro com o mínimo de perturbação causada ao passageiro.
- Não foi o critério que prevaleceu. Basta pensar nos extensos corredores nas estações de correspondência para obrigar os passageiros a passar pelas lojas.
-Marketing, a quanto obrigas.
- Além do mais, a grande razão que foi apresentada aos senhores governantes foi a contagem dos passageiros dos diversos modos de transporte para redistribuição das receitas.
- É claro que mais valia haver um operador único de transportes na área metropolitana, mas isso iria contrariar o dogma da religião da liberalização “a tout prix”.
Lá tinham os eurocratas de mudar a lei da concorrência… ou talvez não.
Não há nada escrito nas diretivas de Bruxelas que proíba um operador único público, do género das régie francesas, como a RATP. O que existe é a obrigação de fazer concursos públicos para atribuir as concessões.
Mas é como eu costumo dizer, são problemas topológicos, problemas de redes,  que os decisores burocratas têm dificuldade em dominar.
Veja-se o estoiro da infraco em Londres (companhia  de manutenção exterior ao metro) que teve de ser coberto pela municipalidade. Com empréstimos, claro. E o excelente negócio que é para a Fertagus a travessia da ponte 25 de Abril.

Mas o meu amigo não estava interessado em discutir estratégias, ainda por cima com conotações políticas, e repisou o tema dos colegas obcecados com a qualidade do seu sistema de controle de acessos.

- E sabes o que eles me disseram quando eu lhes falei do inquérito de um dos jornais, em que os leitores se queixavam das avarias do sistema de controle?
http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/Interior.aspx?content_id=1495988
Que era porque as pessoas não queriam pagar.
http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/293321.html
É o que eu digo, as contas do metro estão a piorar, os passageiros a queixarem-se e os meus jovens colegas a fazerem powerpoints muito bonitos com as melhorias dos indicadores da perceção da qualidade do nosso transporte. É uma espécie de “second life”.


E assim acabámos o café e fomos apanhar o metro da linha azul, não sem eu ter de apertar bem o meu cartão “Lisboa Viva” de encontro ao leitor do canal de acesso, porque o fio da antena embebida no cartão sem contacto deve andar partido há uns tempos, a avaliar pela relutância com que as portinholas abrem.

Sem comentários:

Enviar um comentário