A industria cinematográfica tenta combater a televisão e utiliza agora as mesmas armas que afastam as crianças e os adolescentes da compreensão das coisas.
Os três filmes anunciados antes do inicio da projeção de “Hurt Locker” (traduzido em português por Estado de guerra e, no Brasil, por Guerra ao terror, indiciando pouca atençõ ao filme e à informação relativa) contêm elevadas doses de efeitos especiais de rebentamento de bombas, explosões de automóveis, disparos de espingardas metralhadoras, tudo a acompanhar proezas e poderes imaginários ou simplesmente extraordinários. As histórias repetem-se, são primárias e baseiam-se muitas vezes na morte de inocentes e na vingança solitária do ente querido.
Estamos em peno território de alienação psicológica e sociológica. Toda uma industria de entretenimento que utiliza todas as suas armas de sedução para cativar os jovens numa altura em que os seus córtex pré-frontais ainda não estabilizaram e a mielinização ainda não se concluiu.
Dito de outra forma, numa altura em que o sentido crítico dos jovens ainda não despertou para resistir à droga que lhe é proposta, ficando portanto dela dependente, e acreditando, a exemplo dos heróis que vêem na tela, que são imortais e impunes.
Ainda por outras palavras, esta indústria está a contribuir para:
1 – uma cultura de violência entre os jovens;
2 – inviabilizar a prática pelos jovens de uma cultura de solidariedade e de trabalho em função dos benefícios para a comunidade
Tudo isto a propósito de Hurt Locker, que é mais um filme de guerra de clara propaganda ao exército dos USA e que foi para mim uma grande desilusão por ser isso mesmo: um apelo ao heróico cumprimento do serviço militar em guerra.
Da informação em
Significado em calão de Hurt Locker: ferido em explosão, sítio de tortura, da maior dor, estar em maus lençóis.
Filme realizado na Jordania, sem apoio explícito do exército dos USA, baseado na experiencia do correspondente de guerra Mark Boal.
Citação com que o filme abre: “A fúria de uma batalha é uma potente e muitas vezes letal adição (dependência); por isso a guerra é uma droga”. A citação pertence ao livro “A guerra é uma força que nos dá a razão de ser”, de 2002, do correspondente de guerra Chris Hedges.
Talvez se possa concluir que a interpretação do livro e do filme é a de que quem faz a guerra fá-lo para se sentir realizado e para sentir o prazer, nos seus centros límbicos, do desprendimento da adrenalina e da dopamina associado às situações de risco. Uma das personagens secundárias do filme, coronel Reed (podiam ter escolhido outro nome que não o do único americano enterrado na Praça Vermelha em Moscovo), parece ser a encarnação disso mesmo, fazendo-me lembrar, no meu imaginário, como seria o marquês de Marialva, a combater selvaticamente em Marrocos.
Há aqui uma semelhança entre a guerra e outras atividades. O sistema de transportes de um país melhorará quando os decisores políticos tiverem de ir para os seus ministérios de transporte coletivo; a guerra terminará quando os decisores políticos sofrerem na sua carne a tortura da guerra.
Não pretendo negar a qualidade técnica nem a aproximação realista do filme conseguidas com notável economia de meios, nem o domínio da técnica de Hitchcock.
Mas o herói “sans reproche”, invencível, com métodos não ortodoxos, capaz de apagar o fogo de um automóvel armadilhado com um único extintor (não é possível, a gasolina não se apaga só com um extintor), que abre pacotes de sumo no deserto e os dá aos camaradas exangues enquanto ele não precisa, está, parece-me, a mais nos tempos que correm.
Eu gostaria que os filmes de agora mostrassem as pessoas como elas são, com os seus problemas e as suas limitações, sem fantasiar muito.
Super-homens, dispensam-se, ou colocam-se assumidamente em filmes para não levar a sério.
Esperar-se-ia duma realizadora e da sua sensibilidade, que pusessem mais no filme do que uma conversa em que um dos protagonistas (uma equipa de desminagem) confessa que gostaria de ter filhos; do pudor do herói (o técnico de explosivos e de desativação de bombas) em detonar o cadaver do miúdo armadilhado; do que a rábula da mulher do professor iraquiano cuja casa o herói invade numa missão impossível e que o expulsa a golpes de travessa de cobre (juntamente com o pequeno vendedor de DVDs, são as únicas personagens iraquianas humanizadas, e mesmo assim suspeitas de colaboração com os bombistas); ou ainda do que a rábula da mulher do heroi que lhe diz para trazer uma caixa de cereais do supermercado deixando-o com um problema insolúvel.
É impressionante como um exército estrangeiro ocupa um país e retrata assim os seus naturais (quase todos bombistas e assassinos ou cúmplices).
Ao menos, no Avatar, os invasores eram claramente identificados como invasores em busca de fontes de energia rentáveis (foi o que foram fazer ao Iraque, não foi? Assim como as tropas da Roma imperial iam buscar, longe, os cereais que eram na altura o combustível do principal meio de produção: os escravos). E, contrariamente aos cânones de Hollywood, os Navis sobreviveram.
O sargento York e Gregory Peck ainda tentavam convencer os jovens a alistar-se com argumentos ingénuos. Mas esta senhora e o seu argumentista utilizam os meios visuais mais sedutores para atrai-los para a adição à droga da guerra.
Como se dissessem ao presidente Obama: só mais um ano no Iraque (e outro e mais outro, porque os heróis estão dispostos a tudo, não vão querer passar a vida em compras no supermercado), e só mais 50.000 homens para o Afeganistão (e outros 50.000 e mais os que forem precisos dos países amigos, até dar cabo das economias deles).
Saio como de uma sala de pesadelos. Espero na Av.Praia da Vitória que o sinal passe a verde e curvo para a Av.5 de Outubro, onde o sinal seguinte seguinte já está vermelho. Ouço o Smart que estava atrás de mim, conduzido por uma jovem, a acelerar, ultrapassa-me e passa o sinal vermelho. Ao fundo do quarteirão faz o mesmo e desaparece, enquanto eu espero pelo sinal verde. Talvez viesse de ver o Estado de guerra e se sentisse imbuída do sentimento de heroicidade e de impunidade.
Diz a minha mulher:
- Mais valia que ficasse em casa a coser meias.
- A rapariga do Smart?
- Não, as duas, a rapariga do Smart e a realizadora.
Dito por uma feminista assumida como a minha mulher, pode avaliar-se o que podemos pensar do trabalho da realizadora, não técnico, claro, mas cultural.
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Gostei de te ler.
ResponderEliminarÉ bom saber.
ResponderEliminarMas gostava de conhecer os argumentos de quem não gostou.
Ou será que o silencio é por não haver argumentos, apenas força mediática?