Os textos sob esta rubrica são uma adaptação anacrónica e discrónica de um papiro encontrado recentemente perto de Taormina, nas escavações de uma vila romana cuja presença insuspeita até agora se ocultava sob uma camada de 2 metros de terra, arrastada pelos ventos do Mediterraneo, e de cinzas de uma erupção do Etna, com lava a escorrer pelas ribeiras até ao mar, no século V DC, poucos anos depois de mais um maremoto em Olissipo, na Ibéria.
Os testes do carbono datam o papiro do século IV DC, parecendo ser uma cópia de cópias sucessivas de um texto escrito em Siracusa, pouco tempo depois da tomada da cidade pelos soldados do general romano Marcelo.
Tema:
O soldado de Marcelo e Arquimedes: cada um com a sua linguagem; duas linguagens incompatíveis, porque reproduzem mundos diferentes, e porque o soldado e Arquimedes nunca existiram.
Existiram sim as suas sombras, como explicou Platão, e foram as suas sombras que vimos refletidas sobre o fundo da caverna em que vivemos.
E, pior ainda do que pensou Platão, nem as sombras que vemos existem. O que existe é uma sucessão de preenchimentos de vazios que o nosso cérebro executa, decidindo, arbitrariamente, que movimentos as sombras fazem entre os breves instantes em que se insinuam mais próximas da realidade, e enganando-nos com o resultado do seu trabalho.
1º diálogo – A morte de Arquimedes
Caio Indivisio – No ano 541 da era romana, uma esquadra romana cercou, uma vez mais, a colónia grega de Siracusa. O general Marcelo demonstrou as suas qualidade de líder ocupando a cidade
Publius Coletius – Eu, que estudei com quem estudou com Arquimedes, diria que foram os soldados de Marcelo, e não Marcelo, que conquistaram a cidade. Uma pena que tenham sido uma força bruta. Que tenham morto o mestre.
Caio Indivisio – Arquimedes criava engenhos para destruir vidas romanas. Os soldados tinham ordens para abater quem não lhes obedecesse. Arquimedes não respondeu ao soldado; o soldado matou-o.
Publius Coletius – A violência é quase sempre a fraqueza dos mais fortes. Já o dizia Sigmund Freud, das terras do Danubio. Se o soldado se sentisse seguro, se compreendesse a linguagem de Arquimedes, tinha-se debruçado sobre o seu ombro e discutido o que ele estava a desenhar na areia.
Caio Indivisio – Que era?
Publius Coletius – Entretinha-se a desenhar polígonos, com o número de lados cada vez maior, tentando aproximar os polígonos do círculo perfeito.
Caio Indivisio – Isto é, com o comprimento do lado a ficar cada mais pequeno, até ao infinitamente pequeno.
Publius Coletius – Isso mesmo, calculus infinitesimus, a partir da geometria, no melhor da escola grega. Arquimedes teria chegado lá, teria chegado à noção de limite, se a espada do soldado não lhe tivesse cortado a cabeça.
Caio Indivisio – Aconteceu o mesmo com Anton Webern, também nas margens do Danubio, quando o exército norte americano ocupou a cidade. O compositor estava a fumar à noite, no seu jardim, o soldado assustou-se com o lume do cigarro, pediu a identificação de Webern e, como ele estivesse imerso a pensar nas suas séries atonais, disparou
Publius Coletius – Lá está, o soldado com a arma mortífera era dos dois quem estava assustado.
Caio Indivisio – Os deuses espalham o medo pela terra como poeira soprada por Eolo. Mas é uma poeira que sufoca os inermes e a que os fortes são imunes. O medo desperta a violência, que é a grande ilusão dos fracos. Enquanto os fortes se contêm, ou cínicos, manobram para que os fracos e inseguros constituam os seus exércitos e ponham a violência ao seu serviço.
Publius Coletius – Eolo espalha o medo pelos homens como a cornucópia da deusa da Fortuna quando, e só quando, ela quer. Por ti próprio chegaste à caracterização da distribuição da riqueza a partir da distribuição do medo. Tu, tão cioso das tuas virtudes individuais de busca e conquista do sucesso.
Caio Indivisio – Estás a querer confundir-me? Eu disse isso?
Publius Coletius – Disseste. O medo da multidão é a força do senhor que a domina. Jupiter domina os homens pelo terror dos seus relâmpagos. Jeová domina os seus próprios soldados, e até Jupiter, porque é o senhor deus dos exércitos, porque segreda aos hititas a composição metalúrgica ideal para a rijeza das suas armas e porque deixou Juliano sozinho com a sua razão, derrotado por Constantino.
Eu desejaria que fosse pela razão e pela demonstração da ciência que a coisa pública fosse gerida. Sem tiranos, escolhidos ou não pelo povo, sem guerras.
Mas não consigo que assim seja.
Caio Indivisio – Quando os que estudaram com os que estudaram com Pitágoras e com Platão montaram a sua república e os seus governos de tiranos esclarecidos, acabou por não dar bom resultado.
Publius Coletius – Estamos todos de acordo. Não deu bom resultado. Mas o individualismo dos que estudaram com os que estudaram com Aristoteles também não dá bom resultado, como tu sabes mas não queres reconhecer.
Caio Indivisio – Não reconheço, por Jupiter. Os insucessos que vejo no individualismo, como tu dizes, ou em linguagem mais moderna, no liberalismo de Adam Smith, esse anglo clarividente das ilhas de Albion, são apenas clivagens ou diferenças de linguagem entre os protagonistas da vida económica. Não, não me parece possível entender-se um parto com um romano, mesmo que aprendam o significado das palavras, o parto em romano e o romano em parto.
Publius Coletius – Talvez seja possível entendermo-nos. Vamos encher Roma de sábios gregos. Temos aqui em Siracusa todo o “know how” que os gregos desenvolveram. Eles serão os precetores dos filhos dos imperadores. Os patrícios e os generais, e os grandes negociantes e os grandes proprietários de terras irão querer para os seus filhos uma educação semelhante, e os artesãos e os soldados e toda a plebe quererão o mesmo e viveremos em paz e prosperidade.
Caio Indivisio – Sempre iludido, amicus mei. Tens de deixar funcionar os mercados do trigo e do circo. Tens de deixar que os cônsules enviem os exércitos para recolher os cereais e os metais, e lembra-te que, depois, ainda têm de entreter a plebe.
Mas repara, o sol já se pôs atrás do Etna. Como está vermelho o céu. Vamos ter de continuar a conversa noutro dia. Gostava de discutir contigo o pensamento dos sacerdotes daquele Jeová de que falaste.
Publius Coletius – Estou de acordo contigo e partilho a tua vontade de discutirmos esse assunto. Até amanhã.
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