Este assunto incomoda as pessoas.
Compreendo a simpática porta voz da REFER.
Os suicidios não contam porque não são uma avaria do material, não são um acidente, não são uma falha de exploração (embora este tema valha a pena ser discutido).
Acresce que a publicitação do suicidio tem um efeito de contágio e imitação.
Por isso não se contam os suicidios.
Luis XVI escreveu no seu diário, ao fim do dia 14 de julho, tomada da Bastilha: "Não se passou nada".
Já nesse tempo havia confusão entre o que é essencial e o que é acessório.
Um filme japonês dos anos 60 conta a história de um mosteiro de monges guerreiros que obrigou um jovem candidato a fazer hara-kiri com uma espada de bambu; o avô do jovem, sozinho, atacou o mosteiro e vingou o neto com a morte de vários guerreiros; porém, o chefe do mosteiro escreveu no diário: "Hoje não aconteceu nada".
A REFER fez o mesmo. No dia 25 de Agosto de 2011 não aconteceu nada na estação de Santa Iria da Azoia, para alem de uma interrupção da circulação de comboios.
Embora um pai se tivesse suicidado, com um filho de 6 anos ao colo.
Tentemos utilizar a lógica.
Temos um negócio, acontece algo (nunca deve negar-se uma coisa que aconteceu) que interrompeu o negócio.
O dono do negócio tem o direito de pedir uma indemnização à causa da interrupção.
Não me refiro ao suicidio.
Refiro-me à causa do suicidio.
Uma empresa de transportes transporta pessoas.
A própria empresa ou o estado tem a obrigação de fornecer as infra-estruturas para a exploração do transporte das pessoas (segundo a teoria, as infra-estruturas pesadas de construção civil são obrigação da comunidade organizada, isto é, o Estado; as infra-estruturas do tipo equipamento ou material circulante são da competencia da empresa).
Mas a quem compete o fornecimento dos passageiros em condições de serem transportados?
Pode perguntar-se, porque para transportar mercadorias, o cliente tem de as entregar em condições de serem transportadas; por exemplo, alfaces, não podem ser entregues cozidas pelo calor.
Condição para transportar passageiros é que estejam em condições físicas asseguradas por um serviço público de saúde, que se tenham desenvolvido emocionalmente, psicologicamente e educacionalmente de forma a estarem integrados na vida social, sem práticas de vandalismo e roubo.
Parece que brinco?
Não brinco, e esta é uma das principais razões da baixa produtividade do trabalho em Portugal.
Os passageiros cansam-se no percurso casa-escola-emprego porque têm de levar as crianças à escola e já se levantam cansados, porque trabalham em condições precárias aqui e ali longe de casa e porque se privilegiou o transporte por automóvel em vias rápidas.
As empresas têm de gastar verbas avultadas em circuitos de video-vigilancia porque o sistema escolar não consegue suprir a incapacidade financeira e educacional dos pais dos alunos que derivam assim para o insucesso escolar e a marginalidade.
As empresas têm de pagar serviços de segurança privados ou da policia para defender os seus passageiros de assaltantes, quando essa responsabilidade compete ao ministério da administração interna.
As empresas têm de lidar com uma taxa de suicidios cujo crescimento a situação económica e as politicas liberais estimulam, como mostram as estatísticas do aumento das depressões em Portugal.
As empresas têm então o direito de exigir uma compensação indemnizatória à comunidade organizada, já que ela quis organizar-se assim.
Os custos do vandalismo, dos roubos e dos suicídios deveriam ser imputados ao Estado e não
às empresas.
Isto é, estes custos são dívida pública e não dívida da empresa pública, o que é uma pena por sobrecarregar a pobre dívida pública, mas terá a vantagem de atenuar o argumento de que as empresas públicas, por terem dívidas elevadas, deveriam ser privatizadas (sem a dívida, claro, que as empresas interessadas não são instituições de beneficencia).
E se o vandalismo e o roubo são consequencia do desemprego e do insucesso escolar, então poderiamos perguntar se os teóricos do nosso tempo, quando conseguem cortar nos quadros de pessoal, pensam no que vão fazer as pessoas que vão para o desemprego.
Ou se pensam na correlação desemprego-criminalidade e nos custos que o aumento da criminalidade induzem nas empresas públicas de transporte.
É que qualquer estudo de viabilidade, por exemplo, de um corte de pessoal, deverá contabilizar os benefícios indiretos mas também os prejuizos indiretos.
Nos primeiros tempos do metropolitano de Lisboa, no principio dos anos 60, o chefe de estação em Sete Rios conseguiu evitar o suicidio de uma senhora, mas ralhou com ela dizendo-lhe para se ir suicidar longe. No dia seguinte a senhora atirou-se da ponte sobre o Tejo e o nosso colega chefe andou uns dias largos afetado pelo caso.
Por mim, interessei-me pela problemática e recolhi alguma informação junto dos nossos colegas de metros estrangeiros.
Assim, por exemplo, no metro de New York chega a haver um suicidio por dia; em Paris um por mês, ou por semana, já não me recordo. Em Lisboa tivemos um periodo de dois meses com vários casos.
Sugeri uma proposta a apresentar à UITP especificando portas deslizantes de cais em todas as estações de metro a construir ou a remodelar. Em Paris não se colocava o problema, devido ao programa de automatização das linhas, que impõe as referidas portas deslizantes, mas não consegui convencer os colegas das outras redes que não tinham os programas de automatização.
É tudo uma questão de critérios.
Compreendo, num contexto financeiro agora agravado, que se silenciem os suicidios e se classifique qualquer queda à linha como suicidio (na verdade, pode ser excesso de passageiros no cais por insuficiencia de oferta de transporte).
Mas as decisões, as ações ou as omissões justificam-se com cálculos.
E isso exige contar os suicidios, para se contabilizarem os benefícios (não é dificil usar as mesmas tabelas das companhias de seguros para contabilizar a perda de uma vida) e os prejuízos do investimento de fechar os cais com as portas deslizantes (a alternativa seria as empresas de transporte patrocinarem campanhas publicitárias de prevenção de suicidios).
Pelo menos nas estações novas ou remodeladas.
Por isso discordo da simpática porta-voz da REFER, por mais isolado que possa estar nesta minha opinião.
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