Lido pelo senhor ministro das finanças na assembleia da Republica:
“o DEO (documento de estratégia orçamental) , como documento de trabalho para efeitos do MOU (memorandum of understanding) , não precule a sua apreciação em simultâneo pelo Parlamento, razão pela qual se prevê no calendário acima a obrigação de submissão à Assembleia da República antes da sua conclusão definitiva”.
Pode ser irrelevante debruçar-nos sobre isto, mas eu diria que é importante aplicar a semiótica para tentarmos ver se há algum problema de dificuldade de expressão do senhor ministro ou se o excesso de preocupações perturbou os seus mecanismos de linguagem.
Veja-se o caso do colega do senhor ministro das finanças com a pasta dos assuntos parlamentares, que confessou que o governo não consegue dormir por causa do desemprego (sugere-se que algum economista do governo explique ao senhor ministro a lei de Philips, que correlaciona o custo de vida baixo com a taxa de desemprego elevada).
Se assim for, esta crítica será bem mais útil ao senhor ministro das finanças, que assim poderá atacar as causas da sua instabilidade linguística, do que os aplausos dos admiradores de linguagem tão rebuscada.
Depois do senhor ministro ter citado Pangloss (personagem do Candide de Voltaire, defensor de “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos”) para criticar os adversários da austeridade “a tout prix”, foi criado um nível de exigência linguístico que justifica determo-nos um pouco sobre a frase supra.
1 – “precule”- Deduzo que se trata do tempo de um verbo. Talvez do verbo “precular”.
Perguntei à minha amiga professora de português se sabia deste verbo; não sabia. Consultei o Houaiss e a internet. Nada.Pensei ser uma corruptela de percolar, aquela assunção de humidade passando por capilaridade pelos interstícios do cimento, como se este fosse um filtro, mas fazia pouco sentido, dizer que o DEO não filtra ou não é filtrado na assembleia.
De modo que, por sugestão da internet, me pareceu que houve aqui uma confusão da linguagem anglo-saxónica com o raciocínio da expressão em português.
Tentemos o verbo “to preclude” (tornar impossível):
http://www.thefreedictionary.com/preclude
Talvez, talvez seja isso, a vasta experiencia internacional do senhor ministro, sempre a exprimir-se, longe da realidade portuguesa, na língua de Shakespeare, mesmo que recorrendo a termos de pouco uso como “preclude”, é natural que o lapso surja.
Ficaria então que “o DEO não se torna impossível de ser apreciado em simultâneo pelo parlamento…”
Mas a internet sugeriu outra coisa, também digna da cultura clássica do senhor ministro, uma criação de Rabelais:
http://www.jimena.com/cocina/apartados/rab_pant.html
Transcrevo uma frase do texto de Pantagruel e Gargantua, chamando a atenção para que os barbarismos neo-latinos de Rabelais são da sua lavra:
“Et submirmillant mes precules horaires, elue & absterge mon anime de ses inquinames nocturnes…”
Que talvez possa traduzir-se assim:
“e sussurrando as minhas preces diárias, elevo e liberto a minha alma das inquietações nocturnas…”
E aqui está, também faz sentido, “precule” como oração, prece, numa altura em que as preces da senhora ministra Assunção se converteram em água, como em rosas os pães da rainha santa. O senhor ministro das finanças a “precular” pela conversão dos mercados…
2 – “conclusão definitiva” – eu sei que a legitimidade democrática da maioria absoluta tem dispensado os senhores ministros de pensar bem e avaliar a extensão possível do que dizem, mas se não exercem esse auto-controle nos conceitos, podiam usar nas redundâncias, não?
PS em 9 de maio de 2012 - Ignorancia a minha, que o meu amigo jurídico me pôs a nu: o preclude anglo-saxónico é latim, e jurídico; tem o étimo precludis ou precludere, e deu em português o precluir ou precludir , que só os jurídicos usam, ou os senhores financeiros gostariam de usar na sua forma correta. Precule é que não, como se costuma dizer, a menos que se quisesse usar no sentido da prece gargantuesca.
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