terça-feira, 2 de abril de 2013

Noticias Magazine – a via sacra dos portugueses

ministério da Finanças, sem abrigo



Não encontro na internet a reportagem nem o seu resumo, pelo que vou resumi-la adiante.
Apenas as fotografias que vejo no facebook do Noticias Magazine, a revista dominical do DN e JN:

A reportagem é um trabalho jornalístico do mais alto nível pela sua ligação à realidade e por abarcar vários dos seus aspetos.
Mereceria a publicação em separado.
Estabelece um paralelismo entre as 14 estações da via sacra da tradição cristã e 14 situações dolorosas ou indignas de parte da sociedade portuguesa.
Infelizmente a situação atual de parte significativa da população portuguesa e a aparente incompreensão dos governantes pela problemática associada justifica este tipo de reportagem.
A reportagem sobressai pelo contraste positivo numa revista recheada de anúncios a automóveis, relógios e perfumes caros (eu sei, como dizia Grandela nos anos 20 do século passado, que o comércio de artigos de luxo dá emprego a muita gente) e que privilegia histórias de sucesso, por vezes estereotipadas, fúteis, estouvadas e frívolas.
Tal como na estética neo realista do pós guerra, o tratamento de situações trágicas deixa de ser um exagero para ser uma tomada de consciência pela outra parte da população, que felizmente não sofre as consequências da crise e da resposta que os governantes estão a dar.
Não são apresentadas soluções, que infelizmente são cada vez mais difíceis de apresentar dado  o agravamento da complexidade das questões, mas a divulgação da realidade e a tomada de consciência destas situações já é um passo, pequeno mas efetivo, para a resolução.
1ª estação – Jesus é condenado à morte – a loja Anzolmar de artigos de pesca, em Belém, vai fechar, juntando-se às 12 lojas vizinhas da Rua da Junqueira que já fecharam. Incomportável a nova máquina registadora exigida pela autoridade tributária.”Não sobra quase nada das lojas… a exigência da nova máquina foi apenas mais um prego para o caixão…vou fechar e entregar a chave à senhoria…se me custa? Não, já custou o que tinha a custar…acabou-se”. Disse o lojista à senhora reporter
2ªestação – Jesus carrega a cruz às costas – o filho de 3 anos tem paralisia cerebral de grau 5 devido a um parto anormal e exige atenção constante, com uma vida quase vegetativa. Os pais são heróicos, conseguem trabalhar  e não querem ser subsidiodependentes. Vale o apoio da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa, Odivelas. Segurança Social devia ser também para estes casos, sendo certo que não se pretende que os pais fiquem em casa porque a  natureza humana requer uma atividade profissional; mas o país é pobre, pelo menos parte do país. Haverá correlação entre o parto mal realizado e o ambiente cada vez mais restritivo vivido nos últimos anos na Maternidade Alfredo da Costa? E entre os condicionalismos morais e religiosos e a criminalização de uma eutanásia piedosa no momento do parto?
3ªestação – Jesus cai pela primeira vez – é licenciada em História moderna e contemporânea e é operadora de caixa e chefe de caixas no Pingo Doce. Ordenado base 500 euros (não estou a criticar o Pingo Doce por este ordenado; as criticas que faço ao Pingo Doce, tal como se pode ver noutros locais deste blogue, são a outro nível). Não deram em nada as candidaturas a concursos em muitas camaras municipais. Acabou por gostar do que faz. Mas não tem ainda 30 anos e, por razões económicas,  não pode constituir família. Seria tão bom que os governantes compreendessem que as economias que fazem contendo os salários são menores do que o prejuízo de se cortar a liberdade  a quem quer constituir família? E para  a sociedade essas economias são menores do que os prejuízos da diminuição constante da natalidade? Não querem ver isso, é?
4ªestação – Jesus encontra a sua mãe – São uma família com duas crianças de menos de 2 anos. Iniciaram obras de remodelação na sua  moradia térrea e o crédito bancário falhou. Realojaram-se em casa dos sogros do pai de família, que sorteou a moradia para pagar as dívidas. É discutível, a opinião seguinte, mas parece-me que o grande problema da habitação em Portugal é a dificuldade de acesso a obras ou arrendamento e seu financiamento a custo controlado e garantido, através de gabinetes oficiais das autarquias, organizados para ajudar e não para exigir.
5ªestação – Simão de Cirene ajuda Jesus – é a história de um homem, administrativo numa escola pública nas Caldas da Rainha, que se dedica a promover a recolha e a distribuir alimentação e agasalhos a sem abrigo da cidade. É impressionante a sua solidariedade e a das pessoas que o ajudam, mas recordo sempre a afirmação duma manifestante: “se houvesse justiça social não era preciso caridade”. Sendo certo que já Adam Smith falava da necessidade de redistribuição social.
6ªestação – Verónica limpa o rosto de Jesus – Graças à junta de freguesia de Alcântara, o balneário público  de Alcântara funciona, e os seus dois funcionários ajudam a recuperar alguma dignidade a quem não tem onde tomar banho.
7ªestação – Jesus cai pela segunda vez – o Brevet OP da Oficina de Psicologia na rua Pinheiro Chagas, em Lisboa, desenvolve uma terapia para desempregados trabalhando , em sessões ao  longo de 4 meses, “a desmotivação, a desesperança e a desorganização” de desempregados. De facto, a necessidade de trabalhar faz parte da natureza humana, e estar desempregado reduz a auto estima e aumenta a depressão. Claro que os governantes deveriam querer compreender isto, até porque são cláusulas da Declaração universal dos direitos humanos e da Constituição; deveriam estimular o tratamento do desemprego em termos de psicologia e, especialmente, atuar preventivamente criando emprego (o artigo 58º até fala em pleno emprego).
8ªestação – Jesus encontra as mulheres de Jerusalém – é o testemunho de três grávidas sem emprego, com formação universitária. Já trabalharam no estrangeiro, já tiveram empregos em Portugal mais ou menos certos. Agora estão no desemprego. Uma sociedade que trata assim as grávidas soma problemas aos problemas que já tem.
9ªestação – Jesus cai pela terceira vez – é a história do dono de uma fábrica têxtil que fechou por falta de trabalho em março de 2012. Deixou em Portugal  a família, mulher e dois filhos. Trabalha no bar de um grande restaurante em Hamburgo. “Tenho medo se a minha família vier ter comigo porque a minha filha é adolescente e o corte pode não ser bom. Mas que futuro podem os meus filhos ter em Portugal? Como posso pensar em voltar se não há lá nada para mim?” . Dir-se á que as economias dos cortes no apoio às famílias portuguesas emigrantes, nomeadamente na parte escolar, são menores do que são os prejuízos que resultam dos cortes.
10ªestação – Jesus é despojado das suas vestes – é a história do estímulo do crédito fácil e do endividamento familiar para alem do suportável e do garantido. Foi contraído um crédito há 4 anos para a compra de um apartamento na Moita com mais uma divisão do que a casa em que viviam. O casal com dois filhos trabalhava na mesma empresa. Não conseguiram vender a casa antiga e foram ambos despedidos num processo de redução de pessoal. A casa nova foi entregue ao banco. “No inicio custou-me muito, mas agora já não doi. Quero recomeçar, arranjar um emprego para pagar as dívidas e dormir descansado”.
Será que, se somarmos as economias conseguidas por todas as empresas que reduzem pessoal obteremos um número sequer igual à soma dos prejuízos a que as reduções dão origem, desde os encargos com os subsídios de desemprego à queda da produção e pioria de qualidade de serviço ou do produto, por falta de pessoal?
11ªestação – Jesus é pregado na cruz – quando se fala em reformas elevadas superiores à expetativa dos descontos, normalmente obtidas em meio bancários ou em atividades ligadas ao poder político ou ao poder judicial, deve-se também falar nas carências da assistência social a quem trabalhou por conta de outrem durante toda a sua via e por uma razão ou outra têm reformas baixas. A situação agrava-se na fase terminal. O casal de antigos mordomo (84 anos) e empregada doméstica (83 anos ) duma casa rica do Estoril, vive agora com um neto num apartamento do bairro social do Rego, num prédio municipal degradado. As duas reformas somam menos do que 500 euros. O neto, de vez em quando, ganha a recibos verdes, “com computadores”, diz o antigo mordomo porque a senhora sofre de Alzheimer. “A neta dos nossos patrões ajuda-nos muito. Tomara que  morrêssemos os dois no mesmo dia”.  Não quero responsabilizar o atual governo pela falta de uma politica de velhice em Portugal, mas há muito a fazer neste campo, e nem tudo exige muito dinheiro.
12ªestação – Jesus morre na cruz – Porto, bairro da Boavista. Um grupo de voluntários distribui, à noite, comida quente e agasalhos. O fotógrafo captou a imagem de Leninha, 19 anos, que chama”mamã” a uma das voluntárias. “Com a crise, a Segurança Social deixou de pagar as casas de hóspedes que albergavam os sem abrigo. Cada vez há mais”. Existe uma correlação forte entre desemprego e sem abrigo, entre falta de assistencia social e psicológica e degradação de condições de vida. Por isso deveriam ser limitadas as politicas que estimulam o desemprego. Embora essas politicas se fundamentem na correlação forte entre desemprego e contenção de preços. Se isto é contenção de preços, então não deveríamos querer contenção de preços.
13ªestação – Jesus morto nos braços de sua mãe – Tem 60 anos, é enfermeira da Santa Casa da Misericórdia e acompanha funerais de solitários. Também aqui não podemos responsabilizar a crise atual, mas verificar a carência da assistência social a nível nacional. Não há também uma politica eficaz contra a solidão, e o desemprego de jovens técnicos de serviço social é também significativo.
14ªestação – Jesus é sepultado – Fé na ressureição? Questão posta ao próprio país e à sua população, sendo certo que esta reportagem pode e deve ser um elemento de apreciação durante a próxima campanha eleitoral. A reportagem reconhece que muitos dos portugueses descritos já nem sequer têm esperança. Mas a questão mantem-se, quer o atual governo tenha razão ou não na politica de ruína que executa, a tentar convencer os cidadãos a, resignados, acreditarem que não há opção.
E contudo, não se propôs já ao governo a operacionalização de uma taxa sobre as transações financeiras e de outra taxa sobre as operações no multibanco sem reflexo nos clientes e a urgência na negociação com os poderes centrais da UE de uma verdadeira politica federal, financeira e fiscal sem os bancos a servirem de intermediários para a divida dos Estados?
Já se operacionalizou a auditoria completa à divida pública e à privada para se saber onde atuar?
Não se diga pois que não há alternativa à via sacra.
Ou, como pergunta finalmente a reportagem: “depois da via sacra que muitos portugueses estão a percorrer, haverá também lugar para a ressureição?”

                          Notícias Magazine, revista semanal do Diário de Noticias e do Jornal
                                                         de Noticias, 31 de Março de 2013
                                        

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