sexta-feira, 3 de junho de 2011

O pudor dos gestores

José Régio tinha pudor de contar certas coisas seja a quem for.
Mas alguns dos gestores que dominam a nossa praça não têm pudor.
Não lêem poesia, ou não a entendem, ou não querem submeter-se a ela.
Não precisam, ou porque não existe uma lei que explicitamente proiba tomar medidas que beneficiem o próprio com base no poder para tomar essas medidas, ou simplesmente porque aplicam o principio do "sauve qui peut" francês ou do "chico-espertismo" português, como quem diz que as oportunidades do mercado são para aproveitar.


O homem tinha sido nomeado pelo governo para presidir à gerencia do metropolitano com a missão de garantir a conclusão das obras de expansão antes da inauguração da exposição universal de 1998.
Não havia naquela altura grandes preocupações de natureza financeira porque os fundos europeus garantiam as expansões do metro.
De forma nova rica, os arquitetos de renome escolhidos sem concurso público tinham recebido carta branca e esmeravam-se em escolher soluções caras.
A principal preocupação era evitar atrasos nas obras, algumas das quais complexas.
O homem vinha precedido de uma fama de salvador de pátrias, de exigencia no trabalho e de aproveitamento das potencialidades de todos, gostando de lidar diretamente com os técnicos, sem grandes preocupações com níveis intermédios.
Pode dizer-se que os objetivos foram atingidos, graças à colaboração dos outros membros da gerencia, que semanalmente reuniam com os tecnicos das várias especialidades de cada frente de empreendimento, e graças ao esforço de todos os técnicos.
E até se pouparam alguns dinheiros, quando foi possivel eliminar alguns gastos sumptuários.
Mas se falo no homem não foi porque ele cometesse coisas de que deveria ter pudor.
Foi porque me permitiu participar na reunião internacional de metropolitanos da américa latina e da peninsula ibérica. 
O Metropolitano alugou uma das salas principais do hotel Tivoli e nela reuniu representantes dos metropolitanos e caminhos de ferro suburbanos da América latina de fala castelhana e portuguesa, de Espanha e de Portugal.
Nessa reunião notei o rigor técnico dos colegas de S.Paulo e de Barcelona, o início da grande expansão do metro de Madrid, uma certa indefinição de objetivos dos restantes.
Mas o que achei mais interessante foi o discurso do senhor argentino que tinha sido ministro dos transportes.
A Argentina tinha entrado na sua crise financeira devido à errada politica cambial face ao dolar americano e à indecisão nas políticas do Mercosul.
A crise foi aproveitada para fazer uma série de privatizações de empresas.
Como ministro dos transportes, o senhor argentino decretou a privatização dos transportes urbanos e suburbanos de Buenos Aires.
No seu discurso, durante a reunião, afirmou que tinha muito orgulho em ter assinado, como ministro, o decreto da privatização.
E que se orgulhava agora de ser o presidente da companhia privada de transportes ferroviários de Buenos Aires.
O interessante da história está na ausência de auto-crítica e da falta de pudor destes gestores da coisa pública quando  fazem estas coisas e quando falam delas.
Por maravilhas de desculpabilização, quem faz isto acha natural.
Em Portugal, no setor dos transportes, daí a pouco tempo, um antigo ministro dos Transportes iria ocupar o cargo de presidente da operadora das travessias rodoviárias do Tejo.
Outro antigo ministro dos transportes iria ocupar o cargo de presidente de uma das principais construtoras de obras publicas, desculpando-se em entrevista na televisão de que era natural que, como antigo ministro, a facilidade com que estabelecia contactos com as pessoas importantes para decidir e fazer avançar as coisas eram uma mais valia ao serviço da empresa para que trabalhava.
Mais tarde, os principais responsáveis da Goldman Sachs e da Reserva Federal dos USA, de atuação comprovadamente ineficiente e prejudicial durante a crise financeira de 2008, encontraram abrigo no seio  do próprio governo dos USA, numa evidencia em sentido contrário aos anteriores exemplos da promiscuidade entre cargos públicos e cargos de grandes empresas privadas.
Em Portugal, haveria depois outro exemplo deontologicamente condenável quando o presidente da empresa pública das estradas de Portugal, nomeado de acordo com as políticas do partido no poder, transitou para o conglomerado concessionário das auto-estradas a quem tinha adjudicado a exploração.
A deontologia pouco pode contra os interesses dos partidos políticos e das grandes empresas, mas é bom que todos os casos sejam amplamente debatidos, para que a opinião pública e os técnicos que dão o seu esforço nas empresas, quer públicas, quer privadas, aceitem como dado adquirido que os critérios políticos devem ser substituidos pelos critérios de isenção , objetividade e capacidade técnicas.
E que não são as nomeações de "salvadores de pátrias" nem as estratégias "top-down" que resolvem os problemas das empresas.
E que o trabalho das empresas deve ser o resultado do trabalho em equipa e da descentralização em rede dos processos de tomada de decisões.
É dificil e ate mesmo os melhores técnicos anseiam por quem "de cima" apareça a querer voluntariosamente avançar.
Mas o caminho é para ser percorrido por todos.
Por isso o debate tem de ser aberto e amplo e tem de se ir deixando pelo caminho o que é acessório e, especialmente, o "chico-espertismo" oportunista. 


E se falei no pudor dos gestores e de José Régio, aqui deixo a toada de Portalegre.




























TOADA DE PORTALEGRE,  José Régio


Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Morei numa casa velha,
Velha, grande, tosca e bela,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela ...
Cheia de bons e maus cheiros
De casas que têm história,
Cheia de ténue, mas viva, obsidiante memória,
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncio e de espantos,
- Quis-lhe bem, como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego.
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras,
Do vento soão queimada,
(Lá vem o vento soão !,
Que enche o sono de pavores,
faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão ...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morara nela,
Tinha então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante duma janela.

Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tolhe, gela,
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda e ciranda
De redor da minha casa,

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela !
Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e amarelos,
Salpicados de oliveiras,
E que o frio, ao vir, despa,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longinquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
De aquele silêncio imenso,
Eu sentia o chão fugir-me,
- se abriam diante dela,
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Na casa em que morei, velha,
Cheia de bons e maus cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos, cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos
À quel quis como se fra
Tão feita ao gosto de outrora
como ao do meu aconchego ...

Ora agora,
Que havia o vento soão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento soão
De se lembrar de fazer ?
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento soão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela
O testemunho maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer ?
Lá num craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus ...
E, louvado seja Deus !
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a ceta cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela ...
Como é que o vento soão
Que enche o sono de pavares,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me truxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere ... e consola
Com o próprio mal que faz ?
Coisas que tereis pidor
De contar seja a quem for
Me davam então tam vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
Coisas que tereis pidor
De contar seja a quem for
Me davam então tam vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Me davam então tal vida
- Não vivoida! Mas morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão –
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do vento soão
Já várias vezes tentara
Meus dedos verdes suados ...

Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Confia uma sementinha
Perdida entre a terra e céus,
E o vento a traz à varanda
Daquela
Minha janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morara nela !
Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acáciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu, dom de Deus !
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus
Como dedos apontados
De gigantes enterrados ...
Quem desespera dos homens
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar dos animais,
De humanizar coisas brutas,
Tais e tantas,
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for.

O amor, a amizade, e quantos
Sonhos de cristal sonhara,
Bens deste mundo, que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixado só, nulo, atónito,
A mim, que tanto esparara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que a morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver ...
E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos penhascos, oliveiras e sobreiros,
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncio e de espantos,
- A minha acácia crescia.

Vento soão ! obrigado
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado,
Sem eu sonhar, me chegava !
E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura ! ... mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que eu vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.

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