Naquele dia, manhã cedo depois da missa, o arcebispo substituto dos assuntos gerais entrou de mansinho, se bem que de um modo um pouco mais precipitado que o costume, interrompendo deliberadamente o conciliábulo do papa com o cardeal secretário de estado.
O assunto que o papa analisava com o cardeal era grave. O cardeal invocava toda a legislação pontifícia para se opor ao casamento dos padres, enquanto o papa mostrava abertura e até um certo desânimo, receando que, após a sua morte, o cardeal secretário fosse papa e mantivesse a proibição.
Porém, a urgência do assunto que o arcebispo substituto trazia justificava a interrupção.
O Vaticano acabava de receber a notícia de que numa nação do norte da Europa, de influencia predominante da corrente protestante, a mulher do primeiro ministro fora acusada de adultério.
O arcebispo substituto sugeriu ao cardeal que sugerisse ao papa que fizesse uma declaração.
O papa leu o texto da notícia e ficou pensativo por um longo momento, tão longo que o cardeal chegou a assustar-se, não fosse aquele ar contemplativo um sintoma adventício de Alzheimer.
Mas o papa apenas recordava a sua amiga de infância, que nunca mais vira desde que entrara no seminário. Fora a coincidência do nome Iris, da mulher do primeiro ministro Mr Robinson, e da amiga tão distante no tempo, que lhe despertara a recordação. Iris, nome da flor do lírio e do arco-íris, deusa de ligação entre Zeus e os mortais.
O papa deu instruções rápidas ao cardeal e ao arcebispo e no próprio dia fez a viagem de avião para o país do norte, levando na bagagem 5.000 DVDs com a gravação da ópera Stifélio, de Verdi, com José Carreras, 50.000 “packs” com o DVD do “The Graduate”, com Dustin Hofman e o CD da canção de Simon and Garfunkel Mrs Robinson, e 500.000 panfletos com a descrição do episódio do evangelho em que Jesus salvava da lapidação e perdoava a mulher adultera. Por email, o cardeal de Lisboa tinha entretanto recebido a incumbência, que cumpriu um pouco contrariado, de fazer chegar à embaixada do Vaticano no país do norte, pelo mesmo meio, um You Tube com o fado da samaritana
http://www.youtube.com/watch?v=VtUFbRYWlEc
e um poster no Facebook com uma versão bilingue do poema de Florbela Espanca
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar
Tudo isso seria distribuido por toda a população, com o apoio da comunidade católica.
O papa foi recebido no país do norte pelo cardeal católico, que o acompanhou na visita entretanto marcada com o reverendo unionista principal da igreja episcopal do país. O reverendo unionista recebeu o papa com a bíblia aberta no Levítico, na passagem em que a mulher adultera deve morrer, e brandiu-a enquanto o papa abria o seu sorriso e os braços. Assim estiveram o que pareceu uma eternidade aos clérigos assistentes, até que a cena foi interrompida pela ligação em teleconferência com o arcebispo de Canterbury, que comparou o papa a Paulo de Tarso e o reverendo unionista a Pedro, quando eles se encontraram pela primeira vez em Jerusalem; Paulo a explicar a Pedro que tinha de abandonar os seus formalismos tradicionais se queria sucesso para a sua igreja. O arcebispo conseguiu acalmar o reverendo, que já se contentava com um simples “clip” na televisão advertindo que a igreja episcopal anglicana não recomendava o comportamento poligâmico ou poliândrico, enquanto o papa se auto denominava perante os seus colegas protestantes como bispo de Roma e declarava que reconhecia a qualquer um o direito a viver conforme a sua consciência, desde que não exercesse violência sobre o próximo.
Da igreja episcopal o bispo de Roma correu para a embaixada, onde decorreu um banquete que ofereceu ao casal Iris e Mr Robinson. O banquete foi a oportunidade que o bispo de Roma encontrou para consolar os dois e dar-lhes a garantia de que ninguém tem nada com a vida particular de cada um e que cada um deve resolver os seus problemas particulares como muito bem entender desde que não exerça violência sobre o próximo. Outra coisa será a questão dos empréstimos e do eventual favorecimento de terceiros num concurso público que tem regras que devem ser cumpridas. Mas isso, como vem no evangelho, é com César, e a César o que é de César, pelo que será César a julgar o caso dos empréstimos e do favorecimento. Relações amorosas não, não é para ninguém julgar, nem a opinião pública, nem as igrejas, nem o estado, o que também vem explicado no evangelho no tal episódio com as pedras.
O bispo de Roma confessou-se farto daquelas confissões patéticas na televisão dos senadores e governadores norte-americanos, arrependidos, com as mulheres atrás dispostas a perdoar as aventuras dos maridos. Distribuiu aos dois alguns exemplares dos materiais que tinha trazido para disseminação pela população. Recomendou que vissem bem a ópera de Verdi, em que um reverendo protestante perdoa à sua mulher o ter escolhido outro companheiro. Comentou divertido que a canção de Simon and Garfunkel se chamava originalmente Mrs Roosevelt, e não Mrs Robinson para se compatibilizar com o filme com o Dustin Hofman, porque Eleanor Roosevelt teve aventuras, mas o que ficou dela foi o seu trabalho na luta pelos direitos femininos e pelos direitos humanos na ONU. E que se Deus quisesse que todos se comportassem bem teria determinado outras fórmulas químicas para a composição das hormonas e dos neuro-transmissores.
O bispo de Roma despediu-se calorosamente de Iris e de Mr Robinson, e fez a viagem de regresso contente, sentindo-se bem com a sua consciência.
Estava a pensar em profundas remodelações na sua igreja, que iriam até ao fundo da questão, perdendo-se, se necessário, para se encontrar.
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