sábado, 23 de abril de 2011

Dedicado aos refratários ao acordo ortográfico

Dedico este post aos que têm reservas relativmente ao novo acordo ortográfico.
Trata-se da primeira página de uma novela de Camilo Castelo Branco, que podem ler em
http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=1531292&pageno=2

Escrevia-se assim em Portugal, e muito bem, há 150 anos, antes da auto-estrada do Marão.
Punha-se o "h" antes do "ir".
Reparem como Camilo diz que só se pode matar um lobo em legítima defesa.
Mas não convem tomar a metáfora à letra, não vão pensar que estou a comparar a alcateia de lobos com outras criaturas.



Scenas Contemporaneas by Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco



Porto--TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA, _Rua da Cancella
Velha n.^o 62._
MORRER POR CAPRICHO.
I.
Os meus amigos, de certo, não sabem o que é caçar coelhos na neve?
Não admira.
Imaginem-se em qualquer aldêa, nas visinhanças do Marão. Olhem em redor
de si, e contemplem o quadro que os viajantes na Suissa lhes descrevem
todos os dias, supposto que nunca sahissem da sua terra.
A primeira impressão que recebem é a do assombro. Leguas em roda, nem na
terra nem no céo, se descobre uma crista de rochedo, a frança d'uma
arvore, a dobra d'uma nuvem, que não seja branca, alvissima, desde um
horisonte a outro horisonte.
E, depois, ha ahi em toda essa natureza amortalhada um silencio funebre.
Não cantam as aves, não balam os cordeiros, não silva o buzio de
pegureiro, não soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos.
Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, não vos afasteis
para longe da casa d'onde presenceaes, com o coração confrangido, esta
scena. É uma alcatéa de lobos, que descem famintos da serra, e serão
capazes de vos hirem buscar á cozinha, onde naturalmente tiritaes de
frio, sentados ao pé do tóro de carvalho.
Faço-vos esta recommendação porque sois uns homens afeminados, que nunca
sahistes dos salões, dos botequins, dos theatros, e das praças. Aposto
que se desseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces
inflammadas, antes que o lobo vos désse o cordial abraço da fome, já vós
tinheis perdida a sensibilidade, e consciencia da vida, e até o direito
que todo o homem tem de matar não só o seu semelhante, mas até um lobo,
em justa defeza!
Se eu podesse contar com o vosso animo, aconselhar-vos-hia, que em uma
d'essas manhãs de neve, com meio covado de altura nos terrenos chãos,
tomasseis um cajado, e, com duas finas cadellas de coelho, fosseis dar
na serra um passeio d'algumas horas.

O peor que podia succeder-vos era o desvio do caminho, que só com muita
pratica se acerta, e, quando mal vos precatasseis, resvalar n'um abysmo
de neve, onde nem as orelhas de fóra dissessem ao passageiro que um
moço, a todos os respeitos excellente, fôra alli absorvido por um
sorvete dos que a natureza offerece aos amantes de refrescos, com menos
economia que o _Guichard_.
Afóra este inconveniente, ainda ha o dos lobos, que muitas vezes tomam
conta das nossas cadellas, devoram-nas com uma perfeição e rapidez
fabulosas, e, quando Deus quer, fazem dos nossos corpos um supplemento
nutritivo ás nossas cadellas, deixando-nos a alma por muito grande
obsequio.
O terceiro percalço, affecto á caça do coelho na neve, aconteceu-me a
mim, ultimo dos mortaes, em 26 de Dezembro de 1844.
É o que tereis a bondade de procurar saber no capitulo seguinte.

Sem comentários:

Enviar um comentário