quarta-feira, 27 de abril de 2011

As pedras furadas, ou breves reflexões à volta da linha que nos divide


A linha que nos divide é a linha de Melo Antunes, mas não interpretem mal.
Ele queria que a linha nos unisse.
E para ser franco, eu também gostava.
Que a linha fosse sendo colocada onde mais útil fosse para a comunidade, delimitando os setores público e privado, em função dos casos concretos e da evolução da economia.
Mas estou a contraditar um dogma marxista, aquele que diz que a propriedade dos meios de produção condiciona as relações entre os fatores de produção, o capital e o trabalho, e assim torna inconciliáveis os interesses, por exemplo, dos grandes grupos económicos, que querem puxar a linha que nos divide para o lado deles, enquanto os sindicatos gostariam de ver aumentar a fatia do rendimento nas remunerações e nas regalias.
Sinceramente gostava que deixassem a linha definir-se bem.
Estas reflexões andam à procura das coordenadas da linha, e vou tentar encontrar algumas com a ajuda destas fotografias.
Na primeira fotografia, pode ver-se uma pedra de revestimento partida, junto da cobertura do edifício.



A causa da fratura da pedra e subsequente queda terá sido o regime de dilatação com o calor solar , encolhimento com o arrefecimento e agressão, eventualmente ácida, pela água das chuvas, com compressão das pedras de esquina ou contíguas, descolando e fraturando uma parte.
O pedaço de pedra deve ter caído com estrépito, assustando quem passava no local, felizmente sem consequências.
O prédio pertence, ou está alugado, ao Ministério da Educação.
Preocupado, quem superintende no edifício providenciou o isolamento da zona de provável queda de mais pedras com grades de vedação.
Como de pode ver na fotografia.


E assim se passou cerca de um ano, sem que nada mais caísse.
E eis que, terceira fotografia, são colocados meios em obra.
As pedras fraturadas são retiradas e todas as pedras são fixadas com buchas, como se pode ver na fotografia após a conclusão dos trabalhos.



O trabalho é arriscado, porque se os furos não foram bem feitos ou se não foram deixadas folgas para as pedras dilatarem, podem induzir-se novas tensões de fratura.
Mas vamos acreditar que o trabalho foi bem projetado e bem executado.
Já se retiraram as vedações, e as pedras de revestimento lá estão.




Que tem isto que ver com a linha de Melo Antunes?
Tem que no prédio contíguo, e em todos os outros prédios da praça, as pedras de revestimento lá continuam sem fixação adicional, fraturando pedaços, nos cantos das fachadas, nas esquinas, ou nos simples encontros entre prédios construídos em alturas diferentes.

A linha de separação: à direita, as pedras renovadas e fixadas à fachada

A situação nos restantes prédios
Pedaços que terão caído, felizmente também sem consequências, sem que se possa dizer que seja por falta de manutenção.
Será talvez por excesso de confiança do projeto, que não considerou o risco de solicitações sísmicas e o das amplitudes térmicas induzindo o envelhecimento da colagem e a queda das pedras de revestimento.
Para que conste, os edifícios em causa foram construídos há cerca de 45 anos.
Mais recentemente, caíram algumas pedras de revestimento do edifício dito do anjo, no Saldanha, e continuamos a assistir à execução de novos projetos com revestimentos de pedra colados.
Dir-se-ia que a entidade reguladora deveria interditar esta prática por motivo das solicitações sísmicas e da amplitude térmica, mas olhando para o parque habitacional e de serviços de Lisboa como ganhar coragem?
Então, temos que um serviço público se preocupou em reduzir o risco de acidentes, enquanto a prática habitual é não ligar a isso.
Poderá argumentar-se que deixou de haver dinheiro para fazer manutenção e que será mais económico pagar um seguro (claro que a argumentação agora dominante é que a seguradora deve ser privada, pelo menos parece ser essa a orientação da equipa tri-partida FMI-BCE-EU) ou as consequências do acidente.
Vou dispensar-me de recordar que a avaliação do risco é feita segundo a norma EN 50126 e não segundo o “bom senso” de dirigentes ou de cidadãos contribuintes, mas essa questão também não me diz por onde deve passar a linha de Melo Antunes.
Consideremos por exemplo o caso do Metropolitano de Lisboa, ainda uma empresa pública, pertencendo ao segmento complementar da administração pública, como se diz agora.
Há cerca de 3 anos, na sequencia de ações de manutenção não muito bem executadas pela empresa contratada para isso (como se sabe, a teoria dominante diz que as empresas publicas, para redução de custos fixos, não devem ter capacidade para executar todos os trabalhos de manutenção), algumas placas de vidro da estação Ameixoeira, por as fixações sujeitarem o vidro a esforços exagerados nos pontos de contacto, caíram.
Felizmente sem consequências. Imaginem o que seria, durante o dia, uma placa daquelas partir-se naquele poço, quando os passageiros passassem por baixo.
De modo que se seguiu o mesmo caminho do edifício das pedras furadas.
Puseram-se vedações, estudou-se a questão dss fixações dos vidros e, considerando as vibrações das escadas mecânicas vizinhas das placas de vidro, elaborou-se um caderno de encargos para substituição dos vidros por placas de poli-carbonato de boa resistencia ao fogo, mais leves e mais resistentes à fratura.
  que a obra era cara, o tempo foi passando e, como não caíram mais placas de vidro (teve-se entretanto mais cuidado com a manutenção das fixações dos vidros), retiraram-se as vedações.
É um risco elevado, não pela probabildade de ocorrência de um acidente, mas porque se, infelizmente e apesar da baixa  probabilidade, ele ocorrer, não poderá haver desculpas.
Se pensarmos na linha de Melo Antunes, ela acabou por ser deixada de fora da estação Ameixoeira; apesar de ser pública, a empresa, acabou por se comportar como privada.
Também podemos questionarmo-nos: que fazem os vidros numa estação de metropolitano?
A resposta é simples: o projeto de arquitetura da estação não pôde ser revisto de acordo com os critérios de economia de manutenção, porque a organização e a estrutura do metropolitano não o permitiam; ainda assim, alguns defeitos de arquitetura foram corrigidos, como a proteção lateral das escadas mecânicas, prevenindo acidentes com, por exemplo, crianças ao colo, mas os vidros ficaram.
Por outras palavras, foi dada carta branca ao empreiteiro e ao seu arquiteto.
Foi mais um exemplo (ressalvo que, do ponto de vista de engenharia de estruturas, a obra foi uma boa realização; estou a referir-me apenas aos defeitos de arquitetura) da grande dificuldade portuguesa de se organizar em equipa.
Esperemos que a linha de Melo Antunes não fique de fora noutros casos de maior interesse para os cidadãos e cidadãs, como por exemplo o direito de acesso aos serviços nacionais de saúde (afinal os teóricos da EU também acham que os cidadãos e cidadãs têm direito à saúde, apesar dos cortes nas despesas públicas).
É que os cuidados de saúde até são um dos setores transacionáveis a desenvolver, vendendo esses serviços ao estrangeiro; era uma das medidas contra a crise…

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