terça-feira, 12 de abril de 2011

Islandia, Islandia

Ontem acordei islandês.
Ou melhor, pensei que tinha acordado islandês, porque o referendo tinha chumbado o plano de pagamento da dívida à Holanda e à Inglaterra.
Mas o paráclito não desceu sobre mim e rapidamente verifiquei que continuava a não entender uma só das palavras islandesas, e que nem sequer era capaz de as articular corretamente.
Senti-me antes um neandertal.
Que não acredito que a espécie se tenha extinto.
Não por falta de capacidade da espécie Homo Sapiens para extinguir a espécie dos primos, graças às habilidades estratégicas dos seus, deles Sapiens,  mais requintados neurónios,  que os habilitam até a sugar e exterminar os próprios irmãos.
Mas deve haver por aí ADN de Neandertais, pois se até descobriram o fóssil da menina da Lourinhã, com ADN do sapiens e do neandertal.
Talvez seja isso que nos caracteriza, em Portugal, gostarmos de nos misturar; por que haveria um Neandertal de não se apaixonar por uma Sapiens, se essa era uma atividade mais interessante do que partir a cabeça a um Sapiens ou ter a cabeça partida por ele?
Alem de que a Sapiens, com os seus hemisférios cerebrais em permanente comunicação, certamente teria habilidades de gestão logistica que as Neandertal não teriam, e saberia apreciar as particularidades que o Neandertal tinha que o Sapiens não teria.
Talvez que no resto da Europa os Sapiens achassem que os Neandertais não eram tão capazes como eles de se sustentarem a si próprios, de produzir alimentos, caçar animais e fabricar ferramentas e utensílios de forma rentável de modo a manterem as tribos Neandertais sem necessidade de pedir ajuda às tribos Sapiens.
Ter-se-ão cansado de ajudar os Neandertais e então estes pobres foram-se afastando até darem de caras com o mar.
Não se extinguiram, estou convencido, mas poucos Sapiens se aventuraram  aqui a ver perder a sua produtividade ao misturarem-se com os Neandertais lusitanicus.
Isto pensava eu enquanto ouvia um islandês dizer ao entrevistador na televisão que não queria pagar as dívidas dos donos do banco que falira, o Icesave.

E, na verdade, porque vamos exigir aos contribuintes islandeses que paguem os custos de um esquema de Ponzi, mais conhecido em Portugal por esquema de D.Branca, em pirâmide e altamente especulativo por si próprio e pelo investimento nas obrigações colaterais do "subprime" norte americano e das subsequentes obrigações securitárias?

Resposta: porque as leis das finanças internacionais são as mesmas que eram no fim da Idade Média, quando a família Fugger (os financeiros sucessores da família Medici, financiadores das campanhas eleitorais de Carlos V e dos monarcas europeus do século XVI) obteve do papa a legalização de taxas de juro elevadas, proibidas até então, o que permitiu o florescimento de atividades internacionais especulativas sem correspondencia com bens efetivamente produzidos. Dito em linguagem modernaça, permitindo a "alavancagem" (este termo não significa a utilização de uma menor força para obter a elevação dum peso graças a um braço maior, significa que estamos a investir ou a creditar sobre um bem que tem ou pode vir a ter um valor muito inferior).
Então a receita que a finança internacional gostaria de aplicar à Islandia baseia-se em duas tecnologias medievais:
Primeiro: aplicar taxas de juro elevadas, vulgo agiotagem (ver o Mercador de Veneza, de Shakespeare, para avaliar o que as pessoas de bem da altura pensavam dos emprestadores a juros elevados); notar que a taxa do referndo islandês, de 3,5%, pode ser considerada elevada para quem não investiu no banco Icesave;
Segundo: a sangria, que é o que se está a fazer aos setores de menores recursos da comunidade; a justificação dos físicos medievais era que chupando o sangue do paciente a tensão arterial baixava e o estado geral melhorava; é o que os economistas-financeiros da atualidade ainda acham.

Aconteceu que os senhores "investidores" ingleses e holandeses decidiram investir no Icesave porque os juros eram altos (ter-se-ão achado estes cidadãos superiores em inteligencia aos comuns dos cidadãos que têm por norma não investir as suas poupanças em fundos de risco? ou mais capazes, como os sapiens relativamente aos neandertais? ou será que não é só em Portugal que existem "chicos-espertos", na Inglaterra e na Holanda tambem existem? daqueles que ultrapassam a fila de automóveis parada nos semáforos?).
Quando o banco faliu, coitado, com o Lehman Bros, a Islandia nacionalizou o Icesave (é para isso que serve a teoria económica moderna, para socializar os prejuízos e privatizar os lucros?)
E ainda mais curioso, à semelhança do BPN, que também socializou os seus prejuízos enquanto a holding-mãe  SLN continua com os seus ativos, também a holding-mãe do Icesave mantem os seus (dela) ativos, o que leva os cidadãos que votaram "não" a sugerir que se vendam esses ativos para pagar a dívida.
Entretanto, de forma muito civilizada, os bancos centrais da Inglaterra e da Holanda indemnizaram os "investidores" (um Neandertal poderia pensar que esses "investidores" eram cumplices de um esquema em pirâmide que eles próprios alimentavam na expetativa de retirar lucros acima do normal, em claro prejuízo da comunidade, mas não foi esse o entendimento, historicamente mais sofisticado, dos bancos centrais e da jurisprudencia financeira vigente).

Porém, eu, apesar de Neandertal, sou contemporizador.
Lá por na cultura Neandertal se considerar crime uma taxa de juro de 3,5% ou a taxação dos rendimentos de faixas populacionais de menores recursos, não quer dizer que essa não possa ser a lei das sociedades modernas.
Penso que sim, que se tivesse participado no referendo islandês teria votado a aceitação dos termos do pagamento da divida; e agora que o referendo chumbou o plano, votaria pela continuação das negociações para ver se se obtinha uma taxa de juro menor e um prazo de pagamento maior.
É que eu sou um admirador da primeiro-ministro islandesa, a senhora Joana Sigurdardotir (Joana, filha de Sigurdar - estive a treinar a pronuncia e até acho que o nome é bonito), que propôs a aprovação.
Quiçá como contrapartida pelas vantagens da adesão à União Europeia.

Mas então, como amigo da senhora Sigurdardotir, cumpre-me testemunhar que as vantagens da adesão são relativas.
Que só vale a pena aderir se quem adere for tratado como parte integrante e igual da União.
Que, se a parte que adere, não for capaz de tratar do seu sistema educativo, do seu sistema de justiça, do seu sistema de saúde, do seu parque habitacional, alguem da União há-de vir explicar e ajudar a resolver a questão.
Que, se a parte que adere, tiver pescas e agricultura a funcionar, não vêm decisores, de tez não tisnada pelo sol e pelo mar e sem calos nas mãos, decidir que peixe e que culturas se abandonam.
Que , se a parte que adere, tiver dificuldade em produzir bens uteis ou em construir linhas de caminho de ferro, alguem da União há-de vir ajudar a fazer a seleção dos investimentos e a elaborar os projetos de execução.
Que os banqueiros da União hão-de preocupar-se mais em arranjar taxas de juro baixas para investimentos na produção do que taxas de inflação baixas e que possam emprestar diretamente aos Estados, sem protecionismos dos intermediários domésticos.
Que ninguém na União se lembrará de impor privatizações, da extração do aluminio, da produção hidro-elétrica ou geotérmica, ou dos bancos, quando foi exatamente por a Islandia ter deixado privatizar os seus três principais bancos em 2000 que se iniciou a escalada dos esquemas especulativos.
Se assim for, aderir à União vale a pena.
Se não, não.
Mas isto sou eu a pensar, como neandertal da peninsula ocidental.

Nota: dirão alguns economistas que o caso da Islandia (mais 10.000 km2 do que Portugal) é diferente porque são 320.000 cidadãos e cidadãs. Talvez, mas se disserem isso estão a ignorar o significado de uma amostra laboratorial e as regras da analogia, homotética ou não. O PIB per capita da Islandia é de cerca de 27.000 € contra 16.000 € em Portugal. PIB da Islandia: 8.500 milhões de euro; PIB de Portugal: 165.000 milhões de euro. Mais uma vez, uma questão de produtividade.

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