terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Citação do papa Francisco e o livro Escravos e traficantes no império português

1 - citação do papa Francisco: "Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento de um idoso sem abrigo não seja uma notícia como a descida de dois pontos da bolsa".
2 - "Escravos e traficantes no império portugues" de Manuel Caldeira, ed.Esfera dos Livros

Relaciono estes dois temas porque, graças à Antena 2, tive notícia da edição desse livro extraordinário, e por estranhar que a Igreja católica, parece-me, esboça a condenação dos princípios basilares do sistema capitalista que nos governa.
O livro é extraordinário por revelar aquilo que o ensino oficial esconde: que Portugal foi o principal país traficante de escravos.
Dum total de 12,5 milhões de escravos traficados de 1500 a 1866, 5,8 foram-no em navios de bandeira portuguesa ou brasileira.
Seguem-se a Inglaterra (3,3milhões), a França (1,4), a Espanha (1,1) e a Holanda (0,5).
Que o fez oficialmente, com inicio na casa de Lancaster/Infante D.Henrique e depois com a concessão a privados da exploração do comércio de escravos.
E que a escravatura só foi abolida em 1878.

A associação de ideias que faço é que no século XVI a escravatura era aceite moralmente, tal como os princípios basilares do capitalismo o são agora.
Há registo de muito poucas vozes condenando a instituição escravatura (na verdade, um fator de produção essencial à economia da altura, dada a incipiência da mecanização, pondo-se a hipótese de que a abolição da escravatura nessa altura estimularia o desenvolvimento técnico).
Mas havia quem fosse contra, como frei Fernando de Oliveira, 1507-1582, que passou uns tempos nas cadeias da Inquisição depois de escrever o seguinte: "...a razão humana não consente...comprar e vender homens livres e pacíficos, como quem compra e vende alimárias...os que vão buscar esta gente não pretendem a sua salvação...se lhes tirarem o interesse não irão lá".
O negócio dos traficantes seguiu as leis da economia, foi "regulado" em 1684 por ordem do rei D.Pedro II, fixando as normas minimas de transporte dos negros cativos no "Regimento sobre o despacho dos negros cativos de Angola e mais conquistas e sobre a arqueação (tonelagem) dos navios" , uma atividade perfeitamente "irregulável", tal como as atividades bancárias e financeiras da atualidade.
E foram constituidas sociedades por ações. Em França, um dos principais acionistas era Voltaire, o filósofo da liberdade.
Em Portugal o negócio atingiu o cume já no século XIX, com barcos de vapor (e contudo, a abolição da escravatura serviu tambem para o desenvolvimento industrial), quando os outros países declinavam o negócio.
O célebre conde de Ferreira, filantropo responsável por escolas e hospitais, era traficante, assim como os fundadores do banco Fonseca e Irmão (mais tarde Fonsecas e Burnay).
O palacete onde está o grémio literário, em frente do edificio abandonado do metropolitano para acesso por elevadores à estação Baixa-Chiado, na rua Ivens, foi mandado construir pelo traficante Angelo Carneiro Lisboa, conde de Loures. Os títulos nobiliárquicos revelam a promiscuidade entre o poder politico e o poder económico. Tal como nos tempos que correm.

Enfim, como diria Mr Spock, um livro fascinante.
Será que o papa Francisco está a fazer o mesmo que fez frei Fernando de Oliveira há 500 anos?
E que daqui a 500 anos não haverá escravatura, sob a forma da atualidade, de submissão de seres humanos a formas de trabalho forçado ou de remuneração incompatível com um nível de vida minimo?
Apesar de ainda haver quem se escandalize quando se fala em ordenado mínimo, como as mentes bem pensantes do século XVI se escandalizavam se pusessem em causa a licitude de comprar escravos nos mercados de escravos de África para os vender nas Américas.




1 comentário:

  1. Artigo, muito interessante. Acabei de ouvir a entrevista ao Prof. Manuel Caldeira no programa " Quinta Essência " sobre o seu livro que muito aconselho e estou muito interessado em ler.

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