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Devo agradecer ao DN e ao Dinheiro Vivo o excelente artigo
de Paulo Querido na edição de 30 de Novembro, esperando que este meu aplauso
não seja prejudicial ao autor, que teve a coragem de escrever algumas verdades
incómodas a propósito da evasão fiscal via internet, numa altura em que o pobre
governo confessa a sua incapacidade de legislar sobre o jogo online (depois de
vários grupos de estudo proporem o que tinham a propor).
Por exemplo:
- entre 2009 e 2012 a Apple não pagou impostos sobre receitas
internacionais de 54 mil milhões de
euros
- o Facebook paga os impostos das operações internacionais
na generosa Irlanda
- os USA têm um problema de receitas de impostos, não de
despesa pública (onde já se viu este filme?)
- citando o economista Luís Bento: “é urgente refundar o
sistema de financiamento dos estados modernos, pois a manutenção de uma
estrutura de financiamento centrada em impostos e taxas sobre os rendimentos e
o património está esgotada”; “os estados constituíram ao longo dos tempos
largos setores empresariais que reprivatizaram, transferindo assim para o setor
privado industrias chave, perdendo uma fonte extraordinária de receitas” “como
o presidente da Google propôs, a quantidade de impostos e taxas devia ser
reduzida e simplificada para que as empresas pudessem pagar mais imposto com
menor custo”
- a ideia anterior devia ser aplicada à redução da economia
paralela (26% em Portugal segundo o Obegef, mas eu penso que é maior), sem
perseguições e imposições violentas.
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Mas a edição do dia 30 de Novembro tem duas coisas que muito
me desagradaram:
- uma , a habitual provocaçãosinha do senhor professor da
universidade de Columbia, para ver se as pessoas se irritam: “estudos mostram
que os jovens mais batoteiros são os que
mais desejam concorrer a um emprego na função pública”. Os ditos estudos são
experiencias com grupos; cada participante ficava fechado num compartimento a
fazer 42 lançamentos de dados e a anotar o número que saía; receberia um
pagamento igual ao somatório dos pontos anotados; a conclusão foi que os jovens
mais batoteiros eram os que queriam
muito um emprego público. Na verdade, não contesto o rigor da experiencia nem a
conclusão, especialmente se pensarmos nos cargos políticos como função pública.
Porém, trata-se também de um insulto para quem faz ou fez uma vida profissional
subordinada ao conceito de servidor público. Assim como os batoteiros querem um
emprego na função pública , também houve e há muitos que não são nem foram
batoteiros e também querem ou quiseram um emprego público. Pena não ter sido
feita a ressalva, por uma questão de elegância de quem escreve.
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- a outra, por parte do próprio diretor do dinheiro vivo,
que terá como atenuante a qualidade da informação da publicação que dirige; mas
que fez uma interpretação de Fernando Pessoa (mais precisamente de Bernardo
Soares no seu livro do desassossego) que me parece equivocada.
A propósito do
aparecimento de muitos pequenos empresários (claro que numa época de crise o
estímulo é maior) que aplaude, diz:
“Já não somos o Portugal dos mangas de alpaca, embora ainda
hoje os haja, como também ainda subsiste aquela espécie diabólica que justifica
o seu estado de torpor permanente e inação congénita apontando para as costas
do patrão Vasques, personagem de Fernando Pessoa”.
E cita a passagem do
livro do desassossego, texto 91:
” Lembro-me já do patrão Vasques no futuro com a saudade que
sei que hei de ter então. Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de
qualquer coisa, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e
buscarei, para a continuar a não a ter feito, desculpas diversas daquelas em
que hoje me esquivo a mim”.
Não me parece que a interpretação esteja certa. Fernando
Pessoa não estava a desmerecer no manga de alpaca que era o patrão Vasques,
antes se lhe refere de todas as vezes com consideração e respeito por quem
trabalha. Que não é uma espécie diabólica.
Veja-se a continuação do texto 91 do livro do desassossego:
“…Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da
derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram génios e não foram
mais do que mendigos com sonhos, junto com a massa anónima dos que não tiveram
poder para vencer nem renuncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão
Vasques, o escritório da rua dos Douradores, e a monotonia da vida quotidiana
será para mim como a recordação dos amores que me não foram advindos, ou dos
triunfos que não haveriam de ser meus”.
- excertos do texto 81: “…o patrão Vasques, o guarda livros
Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre queleva as
cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo – tudo isso se
tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar…” “ Tenho
amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar – ou talvez, também,
porque nada valha o amor de uma alma, e se temos por sentimento que o dar,
tanto dá dá-lo ao pequeno aspeto do meu tinteiro como à grande indiferença das
estrelas”.
- excerto do texto
113: “…fui pagar a Cascais uma contribuição do patrão Vasques, de uma casa que
tem no Estoril. Gozei o prazer de ir, uma hora para lá, uma hora para cá, vendo
os aspetos sempre vários do grande rio e da sua foz atlântica..o comboio
abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.”
- excertos do texto 114: “…tive grandes ambições e sonhos
dilatados – mas esses também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque
sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de conseguir ou o
destino de se conseguir connosco…””…bem sei que há ilhas ao sul e grandes
paixões cosmopolitas…”
Poderemos dizer que Fernando Pessoa, aliás era ele que o
dizia, atravessava um período de depressão quando escreveu isto, mas daí a
considerar os “mangas de alpaca”, cuja pele vestia, como uma espécie incapaz e
diabólica, parece-me desajustado e fora do contexto cronológico.
A menos que se dê mais importância à descrença
em si próprio ou a consciência de que se atingiu o limite que Bernardo Soares
descreve, do que à lucidez da interpretação da dualidade da realidade por Fernando Pessoa.
CONCLUSÃO
Torpor permanente?
O diretor do dinheiro vivo não terá
interpretado bem a definição de incompletude dos desígnios que é uma das ideias
força de Fernando Pessoa.
E que qualquer simples mortal experimenta sempre que
anseia por mais do que o que pode.
E em que todo um povo pode cair (ou pelo menos uma parte dolorosamente significativa), sofrendo a
acusação de viver acima das possibilidades, quando na verdade por múltiplas e
complexas razões vive muito abaixo das suas capacidades.
Veja-se este excerto do texto 36 do livro do desassossego:
“…que os deuses todos me conservem o instinto da minha
inimportancia, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz”.
e este, de um dos poemas em língua inglesa (II) de Fernando Pessoa, “ever the sea”:
“…Tomorrow
will tire us of all! But we lack heart to be tired indeed
The purpose our souls
came for is lost and never stared at...
Let us at least by the
shore construe our aches for a deed
Into a meaningless ache
and a desolate and purposeless greed...
Become we one with the sea's lost
purpose and dream and wish nothing but that …”
(“… amanhã cansar-nos-emos de tudo! mas falta-nos a coragem
para ficarmos
verdadeiramente cansados
o propósito que nos guiou até aqui perdeu-se e nunca mais o
veremos…
deixem-nos ao menos à beira mar transformar a angustia de querer agir
numa dor sem sentido e numa ansia desolada e sem objetivo…
Tornemo-nos no desejo perdido do mar e não sonhemos nem
desejemos mais nada
senão isso…”)
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