Ao DN
V/noticia de 2013-12-22, página 32, “Empresas públicas
gastam 368 milhões em suplementos”
Em primeiro lugar, desejo deixar bem claro que a notícia
referida é factual e reporta corretamente e de forma esclarecedora o facto da
DGTF ter elaborado um relatório sobre as componentes remuneratórias para além do vencimento dos funcionários
públicos e das empresas públicas.
É positivo que se faça este tipo de relatórios e que os
respetivos dados sejam disponibilizados publicamente.
Qualquer correção do que quer que seja exige que se disponha
de dados fiáveis e, de uma forma geral, estes parecem sê-lo.
No entanto, penso que o DN faria bem em voltar ao tema por
duas razões:
1 - porque a redação do título e do sub-título e a utilização
de alguns termos induzem no leitor, mesmo que sub-liminarmente, a ideia que o
Estado e as empresas públicas são gastadoras do dinheiro dos contribuintes
desperdiçando-o em pagamentos de regalias aos funcionários, que são assim
privilegiados relativamente à restante população;
2 - porque os factos relatados são apenas parte da verdade,
faltando esclarecimentos importantes para o leitor apreender o problema em toda
a sua extensão
Relativamente à razão 1, pode dizer-se que o “marketing” do
governo atual inclui a descredebilização dos funcionários públicos, como
elemento justificador da redução do peso do Estado e das suas funções, o que,
por sua vez, enforma o núcleo da sua ação política.
Igualmente faz parte desse “marketing” a criatividade
aplicada a medidas que facilmente põem portugueses contra portugueses, como
sejam empregados do setor privado contra funcionários públicos, funcionários
públicos de menores rendimentos contra funcionários públicos de maiores
rendimentos, trabalhadores do ativo contra pensionistas.
Aliás, esta prática foi claramente explicada por Maquiavel.
Neste sentido, insinuar, ou deixar que sub-liminarmente o
leitor associe os 368 milhões de euros dos “suplementos” das empresas públicas
à necessidade de fazer cortes de igual valor ou nas pensões ou no que quer que
seja que os contribuintes tenham de pagar para satisfazer os requisitos da
troika e do governo atual, parece-me indigno.
Penso que nesta altura de crise tem interesse recordar que
nem sempre o salário dos funcionários públicos e de empresas públicas foi
superior ao dos funcionários do setor privado. E seria bom notar que esse facto
se traduz também no cálculo das pensões.
Relativamente à razão 2, penso que será importante
centrarmo-nos nos seguintes factos:
1 – todas as
remunerações para além do vencimento base foram objeto, na definição dos seus
valores unitários e dos seus limites, de negociação em contratação coletiva.
Donde, os pagamentos feitos decorrem de um contrato entre empresas e prestadores
de trabalho, pelo que a sua cessação implicará a renegociação do contrato entre
as duas partes. Não se contesta a redução futura dos pagamentos, mas não
deverá ser um corte cego, mas sim resultado da renegociação dos contratos. Não
se contesta a recomendação de reduzir o número de tipos de remunerações
suplementares, mas salienta-se que o vencimento base deverá ser suficiente para
evitar o recurso a “subsídios” disto e daquilo, o que aconteceu no decurso dos
anos pelas razões do ponto seguinte
2 - todas as remunerações para além do vencimento base, à
exceção, julgo, das diuturnidades, não contam para o cálculo da pensão de
reforma. Por esse facto, constituem uma forma de remunerar de uma forma mais ou
menos justa num determinado momento,“poupando” nos encargos da segurança social
ou das aposentações no futuro. Por este motivo, quanto mais se tiver gasto em
remunerações extra, mais se terá poupado no cálculo das pensões
3 – no caso das horas extraordinárias, é comum as pessoas
que não tiveram de lidar com o problema nas frentes de trabalho considerarem
que a prestação de trabalho extraordinário poderia ser evitada mediante a admissão
de mais trabalhadores. Nuns casos sim, mas na maioria não, e é evidente que a
baixa de produtividade seria grande se se procedesse a essas admissões. Isto é,
não podemos condenar uma prática por gastadora, se o que ela evita for mais
gastadora.
4 – a isenção de horário de trabalho, apresentada na notícia
como uma regalia ou privilégio, é na verdade uma forma de reduzir o número de
horas extraordinárias; no caso de ser necessário prolongar o turno até um
determinado limite, o trabalhador não recebe mais por isso
5 – a “disponibilidade permanente”, apresentada também como
uma regalia, tem o mesmo fim da isenção de horário de trabalho, sendo certo que
a produtividade seria muito baixa se se previssem turnos de permanência no
local de trabalho. Agora basta imaginar os prejuízos que poderão decorrer da
interrupção de um serviço (equipamento hospitalar, transporte público…) se não
existisse esse turno ou se não estivesse contratada a “disponibilidade
permanente”
6 – relativamente aos 81 milhões dos complementos de reforma
convem referir que, para alem estarem previstos na contratação coletiva desde
1973, e portanto serem legais, seu
volume resulta duma política sistemática das empresas de propor reformas
antecipadas para diminuir os encargos com o pessoal
7 – especificamente no setor dos
transportes, por ser o que conheço, para avaliar o peso dos suplementos, desejo
referir dois casos típicos de vencimentos base e de remunerações totais: Um eletricista em meio de carreira tem um vencimento
base mensal de cerca de 1155 euros brutos. É verdade que
recebe vários subsídios, de refeição, de turnos, de assiduidade, de telefone de
emergência, o que dá um ordenado mensal de 1906 brutos; notar que
os valores dos subsídios não entram para o cálculo da pensão de
reforma. Notar ainda que um erro de ligações de um eletricista de sinalização
ferroviária pode provocar um acidente grave. É natural que a função exija
qualificações profissionais e que profissionais qualificados tenham
remunerações mais elevadas do que a média, sendo evidentemente desejável conter
a abertura do leque salarial.
Um
maquinista no nível anterior ao máximo tem um vencimento bruto de 1362 euros.
Com os subsídios que também não contam para o cálculo da reforma, atinge 2812.
Dirá que os subsídios de quilometragem e de agente único são muito generosos,
mas, dada a monotonia e o desgaste da condução, a falta de sistemas automáticos
de controle de velocidade que permitam corrigir eventuais falhas de atenção, e
a necessidade de exames médicos eliminatórios por razões de segurança, obrigando
a reformas antecipadas, justificarão a responsabilidade exigida. Notar que um
erro de condução pode originar um acidente grave. Veja-se o caso do acidente em Nova York de 1 de
dezembro: regras laborais muito flexíveis quanto a mudança de turno, grandes
tempos de condução, poucos dias de férias, perda de poder de compra ao longo
dos anos, desinvestimento em sistemas de segurança… é perigoso “poupar” nestas
coisas da segurança, quer em pessoal quer em equipamentos e isto não é
apreendido por quem faz contas apenas aos milhões que “se gastam”.
8 – ainda no setor dos transportes,
desejo referir outros dois casos típicos no metropolitano de Lisboa, agora relativos ao corte dos complementos de
reforma: um reformado, engenheiro, de 80 anos de
idade e 38 anos de descontos, cuja soma da pensão da segurança social mais o
complemento de reforma contratado é de 2000 euros , passar a receber 1000 euros
(valores brutos), ou um eletricista reformado (46 anos de descontos) que
recebia 1400 passar a receber 700 (valores brutos).
Eu penso
que é uma barbaridade, poucos terão sido tão penalizados, em
percentagem, nesta crise que vivemos. Se há pouco dinheiro, impõe-se
uma melhor repartição dos sacrifícios
Nota final – não se pede que se publique o
texto acima, que peca por excessivo, provavelmente porque a realidade que ele
pretende retratar seja complexa, apenas se exprime a opinião de que ficaria bem
ao DN esclarecer, no seguimento da notícia, que todos os suplementos referidos
fazem parte de contratos que, a serem renegociados, o deverão ser pelas duas
partes, e que muitos dos suplementos ou dizem respeito ao funcionamento regular
das empresas, ou foram implementados para conter custos.
Os meus cumprimentos
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