quarta-feira, 4 de julho de 2012

As castas, mutatis mutandis - ou a explicação por que não há revoluções na rua, apenas vaias aos governantes

Podemos colocar a hipótese de que, depois do 25 de Abril de 1974, o povo português foi desenvolvendo uma cultura política, segundo critérios pacíficos.

Também podemos pôr a hipótese de que, quem vai para a rua manifestar-se, o faz integrado em estruturas, ou respeitando as regras acordadas com estas estruturas e as entidades oficiais com que acordam a realização das manifestações.

Pelo que, apesar de tudo, o ambiente em Portugal é relativamente pacífico, e não se vêem revoluções na rua contra as difíceis condições económicas em que cada vez mais portugueses vivem.

Também podemos admitir uma hipótese menos idealista do que esta, embora mantendo o gosto pela paz nas ruas.

Uma grande fatia da população portuguesa teve de reduzir custos, embora sem afetar a área dos bens e serviços essenciais. Trata-se de trabalhadores por conta de outrem que viram os seus rendimentos diminuídos da ordem de 15 a 20%  (não foi só o corte de 14% nos salários através do corte dos subsídios de natal e de férias dos funcionários públicos e reformados; foi a redução do consumo destes cidadãso que afetou muitas ativdas privadas, nomeadamente restauração e turismo, foi a concentração nas poupanas, foi a cessação de apoios a familiares que trabalham em atividades privadas com a subsequente redução dos rendimentos, daí a estimativa de 15 a 20% para todos).

A questão não será muito grave para essa população, na medida em que parece que a procura dos particulares, isto é, o consumo, não terá caído mais de 5 a 8% (não tenho os dados corretos, nem confiança nos dados do INE, dada a pujança da economia paralela).

Porém, outra fatia crescente da população entrou na faixa das carências do essencial, incluindo os desempregados. Para alem das carências, há a acrescentar os efeitos do desemprego na psicologia das pessoas, diminuindo a auto-estima e contribuindo para perturbações do tipo de depressões, as quais atuam precisamente no sentido inverso de considerar o desemprego como uma nova oportunidade; isto é, as depressões diminuem as hipóteses de desenvolvimento de iniciativas particulares. Serão 20% da população.

Há ainda a contar com a faixa da pobreza, presa na respetiva armadilha (isto é, os rendimentos obtidos são insuficientes para investir em condições de aumento dos rendimentos – estão numa zona de rendimentos descrescentes apesar do valor dos seus rendimentos ser muito baixo). Acrescem os efeitos negativos da depressão . Serão 20% da população.

Temos então que a depressão e a consequente falta de estímulo e de iniciativa podem, por hipótese, justificar o clima pacifico em que se vive.

Podemos ainda admitir que 10% dos portugueses trabalha ou é empresário em atividades que estão em crescimento ou que não sofreram recessão, beneficiando dos preços baixos que o desemprego “segura”, de acordo com a lei de Philips, e das taxas de juro baixas (excessivamente, na minha humilde opinião) do BCE; apesar da ameaça da inflação devida aos custos da energia e dos alimentos e sustentando assim um razoável nível de vida de 25% de portugueses.

Admitindo que 5% dos portugueses são os donos de Portugal (na linguagem corrente) e suas famílias e círculos restritos, e que, com ou sem mérito, com ou sem ética, têm beneficiado do contexto, temos que a primeira fatia referida, a da classe média que viu os seus rendimentos diminuidos mas teve a felicidade de não mergulhar na faixa da pobreza ou da sua ameaça, terá a dimensão de 100% - (20 + 20 + 25 + 5)% = 30%

Admitamos as seguintes taxas de abstenção para as várias categorias, repetindo entre parênteses o peso da categoria, e recordando que um dos efeitos da depressão é o de ficar em casa em vez de ir votar:

(30% - classe média) --------  40%
(20% - desempregados) ----   50%
(20% - pobreza) -------------- 90%
(25% - beneficiários) --------  30%
(5% - donos de Portugal) ---- 20%

Admitindo que as três primeiras categorias castigarão em eleições a coligação do governo (20% de votos), mas as duas ultimas não (80% de votos) , teríamos como resultado das eleições, para o governo (igualando, para simplificar, a população ao universo dos eleitores):

0,3 x 0,2 (1-0,4) + 0,2 x 0,2 (1 - 0,5) + 0,2 x 0,2 (1 – 0,9) + 0,25 x 0,8 (1 – 0,3) + 0,05 x 0,8 (1 – 0,2) = 0,232

Isto é, o governo recolheria 23,2% dos votos dos eleitores inscritos, com uma abstenção de 0,3 x 0,4 + 0,2 x 0,5 + 0,2 x 0,9 + 0,25 x 0,3 + 0,05 x 0,2 = 0,485 , isto é, 48,5% de abstenções.

A percentagem de votos expressos de apoio à politica do governo seria assim de
100% (0,232/(1 - 0,485)) = 45%

Valor muito lisonjeiro para a coligação do governo, e que não garante uma alternativa melhor, no formalismo democrático existente e no dificil entendimento entre outras forças politicas. Pelo menos, enquanto não for alterado esse formalismo, no sentido de permitir a formação de governos integrando o maior numero possível de sensibilidades e representando o melhor possível todos os cidadãos e cidadãs.

No fundo, a hipótese não é simpática, porque me faz lembrar o problema das castas na Índia, mutatis mutandis, claro, claro, não quero ofender ninguém, embora quem se sentisse ofendido talvez estivesse tambem a sentir-se superior à cultura da India.
Até para instalar uma rede de águas as castas superiores protestaram, há uns anos, que não queriam estar ligadas à mesma rede a que estavam ligadas castas inferiores.

No nosso caso, muitos dos que se sentem bem talvez não vejam razão para mudar de política do governo; não sentirão a solidariedade de quem está pior, que a obrigação já foi cumprida quando doaram para o banco alimentar ("não vamos brincar à caridadezinha" de uma canção política de José Barata Moura, no princípio dos anos 70).

Por isso não gosto de ver os nossos intelectuais a criticar o “amorfismo” da população que não protesta mais organizadamente nas ruas.

Na realidade protesta, mas em manifestações sempre consideradas pouco frequentadas pelos destinatários das suas mensagens, ou em vaias a senhores ministros ou ao senhor presidente que, devendo ser respeitadas, facilmente são enquadradas pelo governo nos meandros de uma politica local.

Mas por isso, pelas hipóteses sobre a vontade de paz social, também não concordo com os apelos à luta, por mais que se diga que só com a luta se conquista aquilo que se merece.

Não discuto esse argumento, mas do ponto de vista estratégico dou mais importância à correlação de forças, e essa mostra a balança a pender mais para o lado do governo, que pode sempre invocar o contexto internacional desfavorável que impede o relançamento da economia, que agravam a quebra do consumo e das receitas, nomeadamente fiscais. E também hipocritametne, como fez a senhora do FMI a propósito das crianças do Níger, o governo pode sempre dizer que há outra parte da população que está ainda pior do que aquela que protesta (por exemplo, quando trabalhadores de empresas públicas de transportes fazem greve para defender os seus acordos de trabalho, o governo pode sempre dizer que a maior parte dos passageiros nem sequer beneficia de acordos coletivos, com a agravante de que o desemprego também fez diminuir a procura do transporte, apesar de alguma transferência do transporte individual para o coletivo).

Na insignificante opinião do escriba deste blogue, o esforço deveria concentrar-se na eficaz representação de todas as categorias sociais no governo (podia começar-se pelo Conselho de Estado, com obrigação de estarem representadas as minorias politicas) e na definição dos métodos de trabalho em equipa do governo e da sua ligação às freguesias, autarquias e à sociedade civil, excluindo o método atual de entregar a uma ideologia ou a uma orientação politica a condução de todos os negócios da coisa pública.

Poderá ser imodéstia, mas parece-me que seria uma luta mais eficaz, atendendo à atual correlação de forças, rever os princípios da democracia e da sua prática, analisando casos como o da Islandia, por exemplo, em que grupos de cidadãos participam ativamente na vida poltica, fora do contexto partidário.


PS em 5 de julho de 2012 - Nem de propósito, como se costuma dizer, hoje as notícias são a diminuição da taxa de juro do BCE, o que é um prémio para a classe média que reduz a prestação da casa, e a inclusão do subsidio de arrendamento social no rendimento das pessoas com rendimento social de inserção, levando assim à exclusão de parte significativa de beneficiários deste rendimento (uma vez que não consideram a renda como dedução) e deslocando a linha de separação dos rendimentos mais para o lado dos maiores rendimentos.
Trata-se de uma ideia cara a Friedman, castigar os pobres porque são uns incompetentes que não contribuem para o PIB, e premiar a classe média que tem emprego e sustenta o sistema político.
Existem, porém, várias questões, que ficam pendentes:
1 - o direito de mobilidade dos senhores governantes e presidente da República fica comprometido uma vez que a segurança proibirá deslocações a zonas de excluidos , o que contraria a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos;
2 - a decisão de baixar as taxas de juro do BCE é tomada por pessoas que não foram eleitas pelos cidadãos e cidadãs, apesar de ter implicações políticas, como se viu, quanto mais não seja no acentuar das desigualdades; isto é, a decisão é abusiva e ilegítima, os eleitores não delegaram nos senhores financeiros o poder de a tomar;
3 - contrariamente a uma ideia feita, o rendimento social de inserção não foi uma invenção de partidos de esquerda empenhados em exaurir as finanças públicas, mas funciona em países como os USA, entre outras razões, para garantir a obrigatoriedade da frequencia da escola pelas crianças

Questões a resolver, na verdade.

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