domingo, 13 de janeiro de 2013

Cenas da vida quotidiana retiradas do DN, nos idos de janeiro de 2013


Estamos em plena fúria de cortes nas despesas do Estado, mas devia haver um departamento público a analisar as cenas da vida quotidiana, tentar as correlações com factos a montante, propor estudos mais aprofundados, com a intervenção de especialistas (sociólogos, psiquiatras, técnicos de serviço social…) e fazer hipóteses de soluções.
Mas este tipo de observatórios anda a ser mal visto.
Podiam então ser as universidades a fazer estes estudos (o presidente da Fundação Gulbenkian, Artur Santos Silva, até  sugeriu isso mesmo para analisar bem as questões do relatório da troika ou o repensar das funções do Estado).
Talvez o façam, mas não são disseminados com eficácia.
Também há think tanks ou Fundações como a Francisco Manuel dos Santos a tentar medir os fenómenos.
Mas continua a não se sentir o impacto na discussão coletiva.

E teria muito interesse, senão vejamos a amostra dos dias 12 e 13 de janeiro no DN:

1 – Luís Figo em entrevista a uma revista espanhola – Não tem fé em que os governantes nos tirem da atual conjuntura internacional ; “creio mais nos gestores profissionais. Devíamos copiar os suecos. Em Espanha temo que um dia haja uma revolta popular e uma guerra civil. Há que ser humilde e copiar aquilo que funciona”.
Seria interessante que os leitores dos jornais desportivos ponderasssem estas palaras sensatas.
Não é provável que a desregulação dos sistemas que conduziu à crise financeira internacional que submergiu a nossa pequena economia (70% da divida privada nacional é divida imobiliária) seja agora a receita milagrosa (minimização do Estado e das despesas sociais, ou pagamento da crise internacional com as pensões dos principais prejudicados).
Também me parece que seria interessante discutir com os escandinavos formas de colaboração em que humildemente pudéssemos beneficiar da sua experiencia. Podíamos pensar no exemplo de Francisco de Sousa Coutinho, embaixador português em Estocolmo em 1641, negociando o tratado comercial com a Suécia para ajudar a independência, em ambiente de falta de liquidez.

2 – 94 pessoas foram presas pela GNR desde novembro de 2012 no distrito de Portalegre por apanha ilegal de 17,6 toneladas de azeitona – Comparando com igual período do ano passado, o aumento de pessoas presas, a maioria de nacionalidade portuguesa,  foi de 3030%.
A explicação é simples. O preço da azeitona subiu, possivelmente pelo seu aproveitamento na produção energética (ver a estratégia ficcionada de produção de bio-diesel em

Os combustíveis fósseis baratos que têm alimentado a economia fizeram esquecer o enorme potencial energético da azeitona e do seu bagaço. As 94 pessoas presas e muitas outras pelo país fora, que vão apanhando ilegalmente palha para o gado, cortiça, alfarrobas, resíduos de bio-massa talvez tenham sido levadas a compreender o valor muitas vezes desperdiçado.
Claro que o que fazem é ilegal.

Mas a omissão pelos governos de medidas para dinamização dos produtos e resíduos agrícolas, à luz da declaração universal dos direitos humanos, que no seu artigo 23º garante à pessoa o direito ao trabalho, classificar-se-á como?

3 – Dois irmãos ligados à exploração de uma propriedade agrícola executaram a tiro um cidadão na via publica por suspeitarem sem provas ser o autor de um furto de cobre e de motoserras na referida propriedade -  Infelizmente, generalizou-se a ideia de que é legitimo andar armado para defender a vida ou a propriedade.
Não é, porque o direito a um julgamento imparcial é também um direito universal, e a execução é irreversível, independentemente do fundamento da acusação.
Mas tratar-se-á apenas de uma correlação entre o contexto económico de desemprego, de insucesso escolar anterior, ou de ausência de estratégia económica, neste caso de investimento agrícola que absorva os cidadãos que andam ilegalmente a recolher produtos ou equipamentos agrícolas.
Mais fácil clamar por mais policiamento e por mais dureza nos castigos.
É uma forma de fugir ao cumprimento da declaração universal dos direitos humanos, ao direito e à obrigação de ter trabalho.

4 – Assassínio na sequencia de uma discussão motivada por cães – Um reformado da GNR matou a tiro um cidadão que trabalhava na sua pequena oficina, numa garagem em Queluz.
São vulgares as divergências entre vizinhos devido a cães e aos incómodos que podem provocar.
Mas a posse de armas pode dar nisto, e qualquer cidadão está sujeito a que o interlocutor puxe de uma arma.
Assunto a merecer intervenção de sociólogos, psiquiatras e técnicos de serviço social (até que ponto o ambiente depressivo que se vive na sociedade portuguesa e nos cidadãos que não têm hipótese de sucesso na crise, determina ou cataliza estes tipo de comportamentos?).
Salvo melhor opinião, julgar  e prender o cidadão prevaricador não basta. Medidas preventivas deveriam tornar mais difícil que isto aconteça.

5 - A propósito destas 4 noticias, eu gostaria de ouvir os senhores governantes e os senhores comentadores e analistas políticos a discutir publicamente as medidas preventivas e de investimento (mais policiamento não chega) para corrigir estas disfunções, se possível com a lucidez de Luís Figo.
Mas será pedir demais, talvez. 

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