segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O embuste, se as premissas estão corretas, e a obrigatoriedade de mudar de fornecedor


Se as premissas que utilizo estão corretas, e em consciência não encontro razão para que não estejam, obrigarem-me a mudar de fornecedor de eletricidade é um embuste.

As premissas são:
- o conceito de energia como bem essencial à vida, com um valor estratégico para a comunidade e com impacto em qualquer cidadão independente do seu nível de rendimento ou do seu local de habitação, que não deve ficar dependete da estratégia das empresas privadas;
- as condições de produção, transporte, distribuição e aplicação da energia elétrica, que são incompatíveis com a otimização da gestão da exploração (é verdade que a normalização permite compatibilizar operadores distintos, mas a um custo superior se se quiser seguir uma estratégia integrada ao serviço da comunidade e não subordinada ao interesse dos acionistas das empresas);
- o provável prejuizo da qualidade de um bem, essencialmente caraterizado pela sua natureza técnica, como consequência dos  mecanismos da concorrência e do lucro impostos por economistas a partir da central burocrática europeia .

Ultimo dia do ano. Falhou-me a botija do gás butano do aquecedor. Dia frio e imprevidência minha, que há dias não substituí a de reserva quando se esgotou. São quase 13:00, hora do fecho da loja da GALP do bairro. Não creio que a esta hora me venham trazer as botijas a casa e por isso vou até lá. O casal de velhinhos do ultimo verão de Chabrol também preferia ir buscar as botijas de gás à loja. Costuma ser muito rápido, o atendimento. Mas hoje não, surpreendentemente a loja está cheia e há um aviso na porta a dizer que não se atendem mais clientes.
Ah, é verdade, são pessoas a querer mudar de fornecedor de eletricidade, que a partir de 1 de Janeiro as tarifas de quem não o fizer ficam mais caras quase 2%. A GALP agora também fornece eletricidade.
Diversificou, aproveita a liberalização dos  mercados.

É a obrigatoriedade da passagem ao mercado liberalizado.
Podemos continuar com o fornecedor de há anos, a quem os senhorinhos que decidem por nós chamam agora o fornecedor de serviço universal (eufemismo provinciano, chama-se universal porque se os outros fornecedores sonegarem o serviço este é obrigado por lei a fornecê-lo), ou de tarifas reguladas.
Reguladas, palavra mágica de convívio suspeito ao lado da palavra liberalizado.

Para regular o que quer que seja é necessário dispor de “know-how”. 
Se os senhorinhos burocratas soubessem o que é uma problemática de engenharia  saberiam que para ter “know-how” é preciso ter meios materiais, equipamentos a funcionar,  e experiencia real suscetivel de ser  medida.
Ou não haverá regulação, haverá apenas a vontade dos carteis.
Dito de outro modo, o nível de investimento num regulador, para a regulação não ser apenas teórica ou académica,  é semelhante ao do fornecedor.
E não há nenhuma razão técnica, do ponto de vista das engenharias,  que dê vantagem à exploração por vários fornecedores.

Nenhuma razão técnica justifica que a mesma entidade pública que gere a produção de energia não possa distribuir a energia.
Pelo contrário, a mesma entidade publica pode fazer a gestão integrada e abrangente de toda a problemática.
Tem é de se  melhorar os critérios de seleção dos dirigentes das empresas publicas e de garantia do exercício das competências técnicas pelos técnicos da empresa. As vantagens da concorrência que se manifestam noutras áreas de atividade não são aqui aplicáveis dado  o peso do interesse público, a escassez de energia barata (ou dificuldade de acesso a fontes de energia não importada) e as externalidades (ou impactos negativos nesta área sobre quem não beneficia de uma atividade).
E se se diz que a concorrência baixa os preços, não é isso que a experiencia tem mostrado (a energia e as telecomunicações têm carateristicas ótimas, pela dispersão geográfica e pela complexidade das questões técnicas, para uma cartelização discreta, imune à fiscalização do regulador de recursos limitados).
Não ocorrerá aos senhorinhos que é um paradoxo, obrigar as pessoas, através de aumentos das tarifas reguladas, a mudar para as tarifas definidas pelo mercado, dito livre, das empresas fornecedoras, ou pelos oligopólios, como me ensinou o professor Daniel Barbosa?
Paradoxo, obrigar as pessoas a liberalizarem-se.
Mas também o universo está cheio de paradoxos.
Só podemos ser felizes no futuro se nos sacrificarmos agora, não era a mensagem do mistério do mediterrâneo oriental para conquistar os simples, as mulheres oprimidas e os escravos?
Também era um paradoxo, só possível de levantar se tivesse prevalecido a capacidade organizativa romana e a lógica grega, afinal incapazes de convencer as multidões que era possível centrar a felicidade no momento presente, como diz a constituição da união norte-americana, mas com outra organização social, evidentemente.
E os cidadãos, porque não são obrigados a conhecer as problemáticas das energias, lá vão aceitando a verdade martelada, que e necessário passar para o mercado liberalizado. Constantemente massacrados pela ideia de que “o Estado não tem vocação para gerir” (claro que não tem; quem gere são pessoas, não o Estado; mas o Estado também não deveria ter vocação para distribuir a gestão de bens públicos por empresas particulares).
Apesar de, pelo menos nos tempos imediatos, os preços do mercado liberalizado subirem sempre acima dos preços regulados.
Lá está o paradoxo, para termos preços mais baixos da eletricidade vamos ter de os subir.

Jogo com as palavras?
Não, não jogo, limito-me a recolher informação disponível sobre a experiencia histórica. Há quase dez anos, o meu colega do metro de Berlim bem se queixou, tinham saído do mercado regulado para o liberalizado e a fatura subiu; eram os oligopólios do professor Daniel Barbosa a funcionar; bem transmiti a informação à administração do metro de Lisboa, mas a lei obrigava a fazer concursos para o fornecimento de energia elétrica e assim se fez, subindo a fatura, evidentemente.
Este objetivo de impor a concorrência no fornecimento da energia (que pela sua associação às externalidades deveria ser um bem público, como se disse, sujeito à gestão de técnicos escolhidos, esses sim, por prestação de provas em concursos) é aliás cristalino – trata-se das estruturas públicas (neste caso a comissão europeia) beneficiarem as grandes empresas, distribuindo as fatias da produção de energia por umas, e a transmissão e distribuição por outras.
Temos assim razoável numero de acionistas e entidades financeiras de suporte por trás, gerindo de forma interesseira e particular bens que deveriam ser públicos.
Curiosíssimo aquele episódio em que um apagão de toda a Alemanha, dividida em dinâmicas empresas, foi evitado in extremis pela rede estatal francesa (o problema clássico das redes malhadas e das potencias de curto-circuito, com deslastragem de circuitos e sobrecarga dos que vão ficando com as suas proteções  sucessivamente a abrir).
É verdade que do curso de engenharia dos anos sessenta do século passado a componente de teoria económica que dele fazia parte era rudimentar, pese o brilho com que o professor Daniel Barbosa tratava a curva da oferta e da procura e nos prevenia contra o perigo de querer fixar preços. Não, isso nunca deveria fazer-se, deveria atuar-se sempre do lado das quantidades a oferecer. Mas não poderia adivinhar a expansão das ideias de Hayeck e de Friedman, de anulação da intervenção da comunidade organizada (o Estado) e da eliminação das barreiras alfandegárias e cambiais. Nem estaria preparado para o ataque das forças deflacionarias e para as grandes campanhas de privatizações, possivelmente porque a deflação caminha de mãos dadas com o desemprego. E quem quer que o desemprego e as privatizações ganhem expressão, não sendo émulos de Hayeck, Friedman, Reagan ou Thatcher?
Também era rudimentar a componente de economia elétrica na cadeira de aplicações de eletricidade:
- fundamento dos custos fixos , dos custos variáveis e dos custos marginais das tarifas;
- financiamentos e amortizações dos investimentos para as infraestruturas de produção , transmissão e distribuição de eletricidade;
- fusões de empresas para ganhos de economia de escala (o contrário da pulverização dos mercados liberalizados, certo?);
- estratégia das empresas subordinadas ao interesse nacional (na altura isso conseguia-se com o condicionamento industrial, uma forma de oligopólios, também, mas garantindo sempre o controle estratégico dentro das fronteiras).
Não defendo o sistema, que era eminentemente anti progresso por limitar novos investimentos, apenas me centro no ponto de vista técnico de engenharia de eletricidade, apresentado como determinante das opções a tomar, nunca deixando que o fizessem senhorinhos economicistas, sem a mínima ideia de como as coisas se produzem.

E para provar que não jogo com as palavras, vou contar a história da Enron.

Lembram-se de ouvir nos noticiários que a grande companhia elétrica Enron tinha sido condenada nos USA por práticas de manipulação de mercado?
Um cidadão ouve e fica de consciência tranquila e sede de justiça satisfeita.
Manipulação de mercados deve ser uma coisa muito feia, mesmo.
Infelizmente as noticias não explicaram o que era manipulação dos mercados.
Mas eu vou tentar, apesar de, como técnico de eletricidade, me repugnar, é a palavra certa, o comportamento de outros técnicos de eletricidade nesta história (não existe juramento de Hipócrates na profissão de engenharia, mas os senhorinhos que acham que tudo se resolve pondo o interesse do lucro à frente de tudo e que assim até os impostos podem baixar, deveriam pensar que Madame Curie nos tratamentos de radioterapia e  Jonas Salk na vacina da poliomielite nunca quiseram direitos de patente pelo que fizeram) : no seguimento do triunfo das ideias neo-liberais da livre concorrência e da redução do papel do Estado, saiu nos USA em 1996 a ordenação 888 da Federal Energy Regulatory Commission intitulada “Electric utility industrial restructuring act -promoting wholesale competition through open-access non-discriminatory transmission services by public utilities”.
O título diz tudo e a primeira aplicação da ordenação foi na Califórnia. As companhias dividiram o mercado, comprando no mercado spot (bolsa especial de energia), como os senhorinhos gostam de chamar, energia umas às outras e a companhias de outros estados e impuseram tarifas que estabilizaram em 3 centimos por kWh no período entre 1998, ano da entrada em vigor da nova lei e 2000, ano em que a crise rebentou. Em 2000 as tarifas subiram para 15 centimos/kWh e atingiram o máximo de 35 centimos/kWh. Em 2001 as tarifas baixaram para 20 centimos e estabilizaram no fim do ano em 4,5 centimos /kWh.
O que as companhias faziam, e nisso a Enron se destacou, foi criar artificialmente escassez no fornecimento de energia (sonegando a produção de energia a pretexto de manutenção dos geradores, ou jogando com os prazos de compra no mercado spot) e limitações de transmissão de energia nalguns pontos da rede (os tais riscos de apagão devido às potencias de curto-circuito das redes  malhadas) para receberem compensações do estado da Califórnia para comprar energia a companhias de outros estados ou receber indemnizações por impossibilidade de venda de energia. Houve também casos de venda de energia a companhias de outros estados em períodos de abundância a preços baixos e recompra posterior de energia a preços elevados, pagando o estado da Califórnia o prejuízo.
Como nos USA é complicado defender a nacionalização de companhias, assistiu-se nos anos seguintes à suspensão da lei , à correção de muitas das suas disposições e à aplicação de multas a companhias (entretanto a Enron falira). No entanto, ficou para a história que, em consequência da desregulação e da liberalização dos mercados, as tarifas subiram até 2006 em 17 estados até à suspensão da lei da desregulação. No caso do estado da Virgínia, voltou-se às tarifas reguladas.
Evidentemente que o que se descreveu não é uma lei universal. Mas serve para ilustrar a lei da selva que é o sacrossanto principio de privilegiar o lucro para os acionistas das empresas.
A experiencia ensina que, sempre que há alterações, os senhorinhos e os génios das empresas encontrarão expedientes para prejudicar o interesse público, quer se trate de PPP, de privatizações, de concessões, de desregulações, de liberalizações, de rendas ou indemnizações compensatórias.

A história está contada, e talvez ajude a perceber melhor as intervenções de distintas personagens em programas como o Prós e Contras, e o seu ar sério e compenetrado com que falam de questões técnicas de energia, da insuficiência das rendas e da hibernação de centrais, do horror que sentem pelas energias renováveis, das maravilhas das eficiências das centrais de gás natural e de carvão (e até são eficientes, mas não deviam impedir o desenvolvimento das centrais renováveis).

Sobre as consequências da desregulação dos mercados de energia podem ler-se mais pormenores e abundante bibliografia em “Energia para o futuro – como resolver a crise energética e abastecer a sociedade do futuro” de Robert Laughlin, prémio Nobel de Física, ed. Monitor            http://www.bertrand.pt/ficha/energia-para-o-futuro?id=13998956


Quase 13:00 do dia 31 de Dezembro e a loja da GALP do bairro fechada com gente dentro.
Vamos tentar o posto de combustíveis da Avenida Gago Coutinho.
Bingo. Vende botijas de gás butano. Simpática a senhora que atende, na mesma caixa da gasolina. Grita lá para dentro que venha alguém abrir o cadeado das botijas. Também posso levar um saco de lenha se quiser, mas não, são só as duas botijas. Muito obrigado. A loja da GALP do bairro ganhou clientes do mercado liberalizado de eletricidade (que não é o negócio “core” da empresa) e perdeu um cliente de botijas de gás (que é um negócio “core” da empresa).

Posso falhar, se as premissas estiverem erradas.
Mas se não estiverem, e já apresentei argumentos, é um embuste, é um monumental engano em que se trazem as pessoas, que um mercado liberalizado de energia é bom para os seus interesses; repetindo muitas vezes as pessoas acreditam;  bom é, certamente, para os interesses das grandes companhias.

Sem comentários:

Enviar um comentário