sexta-feira, 24 de maio de 2013

As escovas de carvão e o coletor

Pouco tempo antes de 25 de abril de 1974, um colega mais velho do metropolitano ensinou-me que não devemos estar muito seguros de certezas de que as coisas que funcionaram bem noutros países ou contextos  funcionarão bem, de igual modo, connosco.
O exemplo que ele escolheu para me mostrar isto foi o das escovas do coletor dos motores de tração de corrente contínua das antigas automotoras ML-7 (ainda existe uma unidade dupla de tração operacional, que circula em dias festivos).
As automotoras ML-7 eram um projeto ainda anterior à segunda guerra que o grande fabricante alemão forneceu em condições razoáveis ao metro de Lisboa no fim dos anos 50.
Com precisão o fabrico foi executado no calendário contratado até que se chegou à evidencia de que os atrasos na construção civil recomendavam que a entrega das automotoras fosse diferida.
O administrador principal achou que não devia renegociar-se o prazo de entrega e as automotoras estiveram armazenadas alguns meses no porto de desembarque, à espera da conclusão da linha.
Ainda hoje não se sabe se os custos de armazenamento foram maiores ou menores do que seriam os custos da renegociação, mas há quem pense que sim, que a renegociação teria permitido economizar alguma coisa, não fora a teimosia do decisor.
(Contava-se que a teimosia do decisor não se manifestava apenas na recusa de renegociações, mas também numa obsessiva preocupação com corte de despesas, no controle do papel higiénico, das esferográficas).
Naqueles tempos, a tecnologia da eletrónica de potencia do estado sólido não tinha ainda sido dominada.
Os motores de tração eram de corrente contínua, controlados por reóstatos de regulação da excitação.
A tensão contínua disponível no carril de energia era nos motores das automotoras aplicada entre duas escovas de carvão diametralmente opostas, premidas contra as laminas de cobre do coletor.
Cada par de laminas opostas estava ligado ao seu grupo de espiras do rotor que, por força da lei da indução eletromagnética em interação com os polos magnéticos do estator, induziam o movimento rotativo transmitido aos rodados.
E era aqui, no par de escovas, que a singularidade das coisas portuguesas se manifestava em todo o seu esplendor.
Os técnicos alemães verificaram pela experiencia da exploração que necessitavam de substituir as escovas mais frequentemente do que na Alemanha ou em qualquer país em que aquele modelo circulava.
O desgaste das escovas era devido ao fenómeno "flashover", ou salto de faísca ou arco elétrico quando a lâmina de cobre do coletor sai do contacto com a escova. A faísca salta porque a natureza não deixa que uma grandeza se anule instantaneamente, o que , a acontecer, induziria fenómenos a tender para amplitudes infinitas. Isto é, o principio da conservação da energia ensina-nos que nada se perde, tudo se transforma e, neste caso, a faísca, ou arco elétrico, vai mantendo a variação da corrente elétrica sujeita às leis do eletromagnetismo sem que se induzam forças eletromotrizes de grande amplitude. Só que a faísca vai derretendo o cobre da lamina do coletor e desgastando o carvão das escovas, e vai ionizando o ar. E tudo acaba num curto circuito entre laminas e entre escovas que reduz ou anula a força do motor e na necessidade de retificação das laminas do coletor.
(Esta catástrofe anunciada é uma metáfora que devia ser estudada pelos economistas da escola de Chicago, que induzem os jovens e idealistas estudantes a chegar a uma empresa, ou a um governo, e declararem que são todos uns incompetentes e a partir de agora tudo vai mudar de um dia para o outro e vai haver inovação e disciplina austeritária, sem cuidarem que os prejuízos da mudança podem ser superiores ao que se ganha com ela).
Tudo isto é agora evitado com a transformação da tensão continua do carril de energia em tensão trifásica, em pontes de transistores de potencia a bordo da automotora, e utilização de motores assíncronos de rotor em curto circuito, com manutenção mínima (felicidade para os economistas gestores, encantados por poderem reduzir os seus quadros de pessoal de manutenção).
Mas naquele tempo não, os motores de corrente contínua tinham mesmo de ter coletores e escovas.
E as escovas funcionavam bem em todos os países do mundo.
Menos em Lisboa, Portugal.
(Esta é outra metáfora, a de que as receitas que os economistas da escola de Chicago têm por muito eficazes em qualquer país, podem não ser eficazes em Portugal).
Não encontraram os técnicos alemães explicação para o fenómeno.
O meu colega mais velho atribuiu-o à contaminação da superfície das laminas do coletor por partículas devidas à desagregação dos cepos de travagem de encontro às rodas, e ao do desgaste provocado pelo atrito do contacto entre a face interior do carril e o verdugo da roda (saliencia periférica da roda que mantem o comboio carrilado) , e também pela presença de poeiras exteriores infiltradas no túnel.
Nada que não pudesse ocorrer noutros países, mas talvez que conjugadas as variáveis segundo outras composições.
Mais tarde, aprendi também que esta pode ter sido a manifestação de uma variante da lei de Murphy: uma solução que funciona bem num determinado país, pode não funcionar bem em Portugal; e se pode não funcionar, então certamente que não funcionará bem.
Consultados os manuais e experimentadas soluções na fábrica, resolveu-se o problema instalando escovas bi-partidas. A faísca contentava-se em saltar entre as duas metades da escova e poupava as laminas do coletor sem se resolver em curto circuitos entre escovas.
A lição a aprender era que, não havendo garantia de aplicação de uma solução pré fabricada, é necessário aplicar as etapas do método científico, da observação e quantificação dos fenómenos, à colocação de hipóteses,  à experimentação e à aplicação da solução.
Felizmente houve colaboração dos técnicos alemães nestas etapas.

Muito gostaria eu que os economistas alemães ou não alemães  (e portugueses?) que vão tomando decisões (ou não?)  sobre a economia portuguesa ao longo destes anos cinzentos do princípio da segunda década do século XXI considerassem, na sua ignorancia de como as coisas funcionam em Portugal ("como é diferente o amor em Portugal", dizia Julio Dantas, para grande escandalo de Almada Negreiros), que a curva dos rendimentos decrescentes, de que já se falou neste blogue,
http://fcsseratostenes.blogspot.pt/2012/07/falas-de-governantes-o-esquerdismo-de.html

mostra como o aplicar uma medida pode ser eficaz numa zona da curva e ser uma verdadeira armadilha de onde não se escapa noutra zona da curva, normalmente quando a grandeza do PIB é pequena.
Mas como o meu colega mais velho me ensinou, atribuo os efeitos a causas sem ter certezas, só hipóteses.



2 comentários:

  1. Caro SS...
    O que propões como solução é..."navegar à vista"
    mas, terá sido assim que chegamos a Goa...!???

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    1. Não, não, nada disso. A navegação à vista só deve fazer-se em situações particulares. De Moçambique para Goa é por navegação estimada, rumo à volta de 40º do canal de Moçambique e sempre mantendo o rumo estimado. Mas manter o rumo não é fazê-lo de forma cega. É preciso todos os dias fazer o ponto da latitude com o sol ao meio dia e com a longitude estimada (já que na altura ainda não havia cronómetros), isto é, monitorizar e corrigir, não confundir com navegação à vista.
      Aliás, mudando de ponto de perspetiva, o que admirava no caso das escovas não era as escovas inteiras não funcionarem em Lisboa. Era elas funcionarem nos outros metropolitanos. A teoria já tinha estabelecido que o correto, para evitar o flashover no coletor é elas serem partidas. Afinal isso só mostra que os grandes sábios estrangeiros deviam respeitar mais as leis da física que se manifestam melhor em Portugal, quer sejam eletrotécnicas quer sejam os multiplicadores austeridade-recessão. Talvez as escovas inteiras funcionassem bem em Berlim porque o metro de Berlim não gerava as poeiras que se geravam no de Lisboa, entre outras razões, por razões climáticas (só recentemente as estações do metro de Berlim passaram a dispor de ventilação forçada com introdução de ar fresco). Mas quanto a este assunto, a polémica está ultrapassada porque os motores de tração são agora assíncronos de rotor em curto circuito. Quanto aos multiplicadores austeridade-recessão é que a tecnologia da grande finança ainda não mudou. Mas espera-se sempre que venha a mudar.

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