Ouvido na Antena 2, o poema de Carlos Drummond de Andrade.
Pensei primeiro que o poeta se desiludia de lutar contra a opressão cultural e social, contra o uso da força pelos detentores do poder económico e financeiro.
Ilusão minha, claro, que a luta é contra as palavras, não com as palavras do nosso lado.
E também não é, parece, contra uma musa difícil de conquistar (ou melhor, musas difíceis de conquistar), sem ter de recorrer aos ais trovadorescos, embora pareça que é uma luta semelhante.
Mas pensando melhor, e se as palavras forem mesmo armas que os tais poderes económicos e financeiros não conseguem derrotar por mais intensa que seja a sua força?
Então, mais vale não calar, e ir falando, por mais grave que sejam, a crise e a solércia dos senhores governantes (ler o poema, por favor, para compreender o étimo) .
Falemos, pois.
Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
Insisto, solerte*.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue...
Entretanto, luto.
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
outra sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca
tudo se evapora.
O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
Ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas
a luta prossegue
nas ruas do sono.
Carlos Drummond de Andrade, o Lutador
*esperto, desembaraçado, ardiloso, "chico-esperto" em coloquial
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